domingo, 30 de outubro de 2011

Internet e Pós-Capitalismo

Internet e Pós-Capitalismo

Internet e Pós-Capitalismo

A convergência digital, a blogosfera e a comunicação compartilhada não ameaçam apenas a oligarquia da mídia corporativa. Também requerem um novo projeto para democratizar o jornalismo, e outros mecanismos para remunerar os produtores culturais

Antonio Martins

1.Nos últimos anos, graças a certas ferramentas tecnológicas, mas especialmente a algumas mudanças de paradigma, os antigos conceitos de liberdade de informação e propriedade intelectual estão sendo superados. Em seu lugar, surgem idéias como comunicação compartilhada, inteligência coletiva, fim da passividade do receptor, direito à intercomunicação. Essas mudanças têm enormes repercussões em nossa vida social, econômica, política e simbólica. Estão, por sua vez, relacionadas a sinais de que uma outra lógica de organização das sociedades – capaz de superar a que está baseada no lucro e na competição – é possível e necessária.

2.Um dos problemas-chaves a resolver é, precisamente, a produção de símbolos — arte, comunicação, literatura — num mundo em que a vida continua sendo comprada e vendida como mercadoria. Em outras palavras: se queremos que as obras culturais circulem e sejam apropriadas e recriadas por todos; se queremos fazer de cada ser humano um criador cultural, como remunerar o trabalho do artista? Como permitir que, sendo livre seu trabalho, possa ele alimentar-se, vestir-se, habitar, viajar, equipar-se – em suma, satisfazer suas múltiplas necessidades e desejos.

3.Um dos pontos essenciais para encontrar uma resposta foi oferecido em conferência pronunciada no ano passado, durante o Fórum Cultural Mundial, por Gilberto Gil. Vivemos num mundo em transição e em transe. São tão profundos quanto os que marcaram a passagem do mundo feudal à modernidade e geraram, entre outros fenômenos, o Renascimento europeu.

4. Alguns dos mecanismos sociais que marcaram a modernidade e representaram, em sua época, liberdade, transformaram-se em prisões. O ser humano medieval recuperou a moeda e ampliou os mercados para se libertar das relações obrigatórias e limitadas que o prendiam à terra, ao senhor, aos afazeres que haviam sido repetidos por seus ancentrais desde muitas gerações. A cidade e o mercado eram os espaços em que cada um podia oferecer livremente seu trabalho – ou seja, encontrar uma alternativa à obrigação de permanecer no feudo, trocando favores pessoais com o senhor, sempre subordinado, sempre sem liberdade de escolher seu próprio destino pessoal. A moeda era o que permitia a tal ser humano “livre” ganhar o mundo e comprar sua vida sem o limite dos vínculos de favor.

Quando os mercados, que o ser humano desenvolveu para se livrar do mundo feudal, passam a dominar seu criador

5. Ocorre que o mercado é, por natureza, um espaço marcado pela competição, pela desigualdade e por um tipo de alienação que leva à hipervalorização do produto e apagamento do produtor. Se produzo laranjas, ou fios de cobre mais baratos, serei o vencedor. O mercado ignora se meu vizinho é obrigado a lavrar terras mais áridas, ou se as relações sociais na fábrica em que trabalha são mais humanas. Algo muito semelhante se dava no mundo da indústria cultural, onde os padrões de belo, bom e agradável eram definidos por um sistema onde alguns grandes operadores tinham enorme poder de definir, por exemplo, que estilo de produção cinematográfica, ou que enfoque de cobertura midiática, tinham o poder de encantar ou convencer.

6.No terreno da produção simbólica, o período que vivemos é marcado por duas tendências contraditórias. Alguns fatores tendem a padronizar os produtos de forma cada vez mais intensa . Garantir a circulação de um jornal diário em papel, na escala e nos padrões de “qualidade” requeridos pelo mercado, exige investimentos de dezenas de milhões de reais. As produções cinematográficas tradicionais consomem uma parcela cada vez maior de seu orçamento com publicidade.

7.No entanto, dois fatores combinados têm servido como uma contra-tendência formidável, que questiona a própria idéia de mercantilização da produção simbólica. A primeira é tecnológica: a internet começou, a vários anos, a erodir a receita da indústria cultural. Primeiro, veio o compartilhamento de música, sem contrapartida financeira. Depois – e ainda mais interessante e transformador – surgiram as possibilidades não apenas de trocar o que já está pronto, mas de criar em conjunto, a partir de múltiplos pontos do planeta.

8. Estes enormes passos tecnológicos teriam pouco sentido e efeito se não coincidissem com um profundo mal-estar em relação aos paradigmas que marcaram a modernidade – em especial a mercantilização do mundo. Tem crescido – o Fórum Social Mundial é expressão disso – a consciência de que o mercado, embora surgisse como uma ferramenta de libertação do ser humano, se não cotrolado, domina seu criador. Já não somos o que somos, mas o que compramos. O mais interessante é que surgem, em paralelo, alternativas. Afirma-se a lógica dos direitos. Debate-se, nos Fóruns Sociais, a idéia de que certos bens e serviços, necessários para assegurar vida digna, devem ser oferecidos a todos os seres humanos do planeta, independentemente de sua capacidade de pagar por eles. Acesso à terra, água potável, eletricidade, renda básica da cidadania, saúde de qualidade, educação, internet, bens culturais. A lista vai se refinando, felizmente, e é possível vislumbrar o dia em que essa lógica se desdobrará no direito a viajar para ter contato com novas culturas, ou no direito à psicanálise.

Tecnologia é fator secundário. Conhecimento livre é movido pela busca de nova lógica social e desencanto com oligopólio das narrativas

9. É precisamente nesse contexto que surgem o direito à intercomunicação, a inteligência coletiva, o fim da passividade do receptor, o conhecimento livre. Graças à tecnologia — mais especialmente à busca de um mundo organizado segundo uma nova lógica social —, está se esfacelando um dos grandes instrumentos de dominação da era capitalista: o oligopólio das narrativas e discursos. Embora partidária do neoliberalismo, a revista Economist apontou, num estudo publicado em meados de 2006, que está se encerrando a era da comunicação de massa. Iniciada com a invenção dos tipos móveis, por Gutemberg, ela foi marcada pela produção de um volume cada vez mais maciço de bens simbólicos, por um número cada vez mais reduzidos de emissores. Em seu lugar, está surgindo a era da comunicação pessoal e participativa. Sua marca será o poder que uma parcela cada vez maior da humanidade terá para se livrar da condição de mero consumidor, e tornar-se, também, produtor de bens simbólicos. As transformações serão tão profundas que Economist chega a prever o fim do jornal diário impresso, ainda na primeira metade do século atual.

10. A mudança de paradigma, extremamente positiva, cria dois problemas complexos. O primeiro é a necessidade de recriar espaços públicos de debate, para evitar que a multiplicação dos produtores de conteúdo gere apenas um caos multifônico. O fato de cada ser humano ser um produtor de narrativas e discursos não deve significar que cada um se satisfaça consigo mesmo e dispense o diálogo. Nesse caso, estaríamos diante de uma nova forma de incomunicação e alienação. Para evitar o risco, é importante criar outros nós na grande rede, certos lugares onde os produtores de símbolos se encontram, se reconhecem e estabelecem trocas. Isso não se faz de forma piramidal, nem com base em relações mercantis, nem sob a batuta de um editor todo-poderoso – mas a partir de recortes e pontos de vista compartilhados por uma comunidade. No Brasil, um exemplo desbravador é o site de jornalismo cultural Overmundo. Centenas de leitores, muitos dos quais mantêm seus próprios blogs, ou produzem vídeo ou áudio – ou seja, já são produtores de conteúdo cultural – sentem-se atraídos para contribuir também para o Overmundo. Por que surgiu um nó, onde é possível estabelecer diálogos mais amplos. Lançado em outubro, o Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique persegue um objetivo semelhante, no terreno do pensamento crítico e da busca de alternativas políticas. Num primeiro momento, ela reunirá colaboradores já reconhecidos por sua capacidade de análise, ou por atuar em iniciativas transformadoras e refletir sobre elas. Numa segunda etapa, como em Overmundo, a participação estará aberta a qualquer leitor que se tenha pontos de vista relevantes a expressar.

Uma possibilidade radical: desmercantilizar o trabalho humano, desvinculando o direito à vida digna de um emprego assalariado

11. O segundo grande desafio é o da remuneração e sobrevivência dos novos produtores de símbolos. De certa maneira, a liberdade de conhecimento e de produção cultural é profundamente utópica, no melhor sentido do termo: o de antecipar um futuro possível. Ela aponta para a possibilidade da desmercantilização mais radical: a do próprio trabalho humano. Produzir comunicação, cultura ou arte não deve ser algo que dependa de remuneração, mas um prazer e algo inerente à própria condição humana. Outras atividades, cada vez mais numerosas, deveriam ter o mesmo status: cuidar da natureza, educar as crianças, mostrar nossa cidade a visitantes que não a conhecem. No caso de muitas outras atividades, o desenvolvimento da tecnologia poderia ser visto como um alívio, não como um drama – desde que houvesse outras relações sociais. Se novas máquinas permitem fabricar computadores empregando muito menos operários, ou se é possível automatizar a coleta de lixo, isso não deveria ser visto como ameaça de desemprego, mas como redução do tempo de trabalho, eliminação das tarefas humanas mais penosas e desagradáveis. A condição é nos dispormos a imaginar a ultrapassagem da sociedade-mercadoria e do trabalho-mercadoria. Uma decisão-chave é reconhecer que, na época em que vivemos, a garantia de uma vida digna não pode mais estar associada a um emprego remunerado. Por isso, é tão decisivo o debate sobre a criação de uma Renda Cidadã internacional – e mesmo medidas muito tímidas nesta direção, como o Bolsa-família brasileiro merecem todo apoio.

12. Mas como viveremos nós, enquanto continuarmos imersos nas relações capitalistas? Em primeiro lugar, é preciso afastar a idéia de que uma nova sociedade pode ser construída num único ato, a partir do qual as relações sociais transformam-se por encanto. Durante muito tempo, teremos de ampliar o espaço das relações de solidariedade e compartilhamento, estando, contudo, obrigados a aceitar as relações de mercado, a vender nossa capacidade de produzir bens simbólicos. Uma grande arte haverá em equilibrar esses dois aspectos de nossa vida social.

13. Isso exige, ao mesmo tempo, imaginar e testar desde agora novas relações. Se o trabalho necessário para produzir Overmundo é remunerado graças ao apoio de uma empresa pública, mediante patrocínio, devemos ter a ousadia de debater com a sociedade que se trata de uma relação muito mais avançada que vender o conteúdo do site aos que podem pagá-lo.

14. No Brasil, uma importantíssima janela de oportunidades em favor da comunicação compartilhada e de novos mecanismos de remuneração dos produtores culturais está se abrindo, há vários meses. Certas atitudes políticas adotadas quase em bloco pelo oligopólio que controla a mídia provocaram um grave desgaste de sua legitimidade, principalmente entre a parcela mais esclarecida e politizada de sua audiência. Surgiram, em paralelo, sinais de articulação embrionária entre publicações e produtores de conteúdo que atuam na blogosfera, o que poderia ser, no futuro, uma rede – horizontal e não-hierárquica – de novas iniciativas de comunicação independente.

Tiro pela culatra: o oligopólio da mídia tenta manipular duas vezes a opinião pública, e sai com credibilidade arranhada

15. Em pelo menos dois episódios, a mídia comercial tentou manipular acontecimentos importantes, servindo-se do controle que julgava ter sobre a opinião pública para produzir fatos políticos que interessavam a si própria e às correntes políticas com quem se identifica. Às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais de 2006, ela envolveu-se com a campanha do candidato conservador, e com setores da Polícia Federal, para produzir ilegalmente fotos, que foram apresentadas como comprometedoras de outro candidato – o então presidente da República, que acabou se reelegendo. Mais tarde, no primeiro semestre de 2007, o oligopólio tentou tirar proveito de uma tragédia – um desastre aéreo com 200 mortes – para fabricar apressadamente uma suposta causa (problemas na pista do aeroporto de Congonhas), responsabilizar o governo federal e vitaminar um movimento de oposição de direita liderado por grandes empresários, auto-denominado “Cansei”.

16. Em ocasiões anteriores, campanhas promovidas em bloco pelo oligopólio foram capazes de sensibilizar a sociedade e produzir os efeitos desejados. [1] Para ficar apenas em dois exemplos: por meio de campanhas semelhantes, o oligopólio obteve, em 2002, a inviabilização da candidatura presidencial de Roseana Sarney, então líder nas pesquisas de opinião pública; e conseguiu abortar, em 2004, a criação do Conselho Nacional de Jornalismo e da Agência Nacional de Cinema e Audivisual

[2] Vale a pena ler, em especial, a reportagem em que Raimundo Pereira (em Carta Capital) descreve a construção, pela mídia e pela candidatura de Geraldo Alckmin, de uma versão que comprometia Lula, no chamado “escândalo da compra do dossiê”.

Folha.com - São Paulo - Feministas ucranianas usam a nudez para protestar - 30/10/2011

Folha.com - São Paulo - Feministas ucranianas usam a nudez para protestar - 30/10/2011

Feministas ucranianas usam a nudez para protestar

CHICO FELITTI
DE SÃO PAULO

Inna Shevchenko, fundadora do grupo Femen, conta o que há na cabeça por trás dos corpos que chamam a atenção do mundo para a Ucrânia.

"O pior de tudo é voltar para casa. Toda vez que fico pelada para protestar, sou levada para a delegacia. Mas prefiro enfrentar os policiais, que, como você pode ver em vídeos, me pegam à força e me batem, a encarar minha mãe.

Ela chora muito. Grita que eu sou louca. Ela não entende, viveu a vida toda na União Soviética, nunca pôde dizer o que pensava. Na semana passada, ela brigou comigo, disse que eu só queria chamar a atenção.


Sergey Dolzhenko/Efe
Grupo de ativistas ucranianas do Femen usa a nudez para lutar contra o turismo sexual no país
Grupo de ativistas ucranianas do Femen usa a nudez para lutar contra o turismo sexual no país

E é isso mesmo que eu quero: chamar a atenção. Só que não para mim. Uso o corpo para mostrar o que está errado. Há tanto de errado na Ucrânia.

A começar por nosso país ser destino de turismo sexual. Não é o tal do corpo ucraniano que eles buscam? Pois nós o mostramos de graça.

Por um ano e meio, protestamos sem tirar a roupa. Mas você me conhece porque passamos a protestar de peito de fora. O mundo nos conhece como uma organização de tetas. Também fazíamos fotos lindas com roupa, mas ninguém olhava. Se não estivéssemos usando nosso estilo de protestar, não teríamos atenção.

Isso não é por causa dos corpos nus. As pessoas olham para o paradoxo de mulheres lindas que não estão em revistas, e sim na rua com cartazes. Mulher pelada não serve só para anunciar carro e cerveja. Serve para propaganda política.

Conheci a líder do grupo, Anna Hutsol, há três anos e juntas começamos o Femen. Gostei da ideia, queria fazer algo radical. Na época, estudava jornalismo na Universidade Nacional da Ucrânia e também trabalhava como jornalista no governo municipal.

Depois de uma performance que fiz semi-nua perto de um ministério, fui presa. Voltei ao escritório no dia seguinte e a chefe me recebeu com fotos minhas do protesto, com os peitos à mostra. Perdi o emprego. Decidi me dedicar só ao grupo.

GUERREIRA

Femen é o poder de jovens mulheres da Ucrânia. Queremos mudar a situação de um jeito radical. E nossa técnica é usar nosso erotismo, nossa beleza.

Mulheres são lindas, têm corpos lindos. E servem para mais coisas do que clipes de rap.

Percebemos que aqui só isso traria atenção ao nosso problema. Nosso governo não se importa com a opinião do povo. Mas temos nossos corpos e vamos usá-los sem medo.

Fazemos fotos provocantes. Então nos importamos com nossa aparência porque nos importamos com quão atraentes serão as fotos. Somos nós que ficamos peladas, mas é a política ucraniana que fica com vergonha do nosso nu.

Nós que tiramos a roupa somos "as guerreiras". Somos 20. Mas há muitas outras por trás, na organização da logística. No total somos mais de cem mulheres. Agora passamos a aceitar homens também. Eles ainda não tiram a roupa, acho que nem vão.

Meu trabalho é convidar os ativistas, treiná-los e organizar as performances. As reuniões são feitas em bares ou no McDonald's. Sou a única das guerreiras que fala inglês, o que limita nosso contato com a imprensa de outros países. Mas o trabalho tem uma linguagem bem universal, não?

Agora, está mais fácil aderir ao Femen. Todos sabem da nossa existência, e meninas do país todo vêm se juntar a nós. Mas, há um ano, eu tinha que convencer desconhecidas na rua a aderir à nossa causa.

PROFESSORA OU PROSTITUTA

Ser uma garota na Ucrânia é muito difícil. Ninguém ensina às mulheres daqui que elas têm direitos e possibilidades. Ninguém ensina às mulheres ucranianas que elas podem estar na política ou nos negócios. A obsessão nacional das jovens daqui é se casar com um estrangeiro, com um europeu.

Há só duas possibilidades de trabalho: ser professora e ganhar 200 dólares por mês, como minha mãe, ou ser puta e ganhar cem dólares por noite.

Esse é um país de homens e para homens. Ninguém aqui faz nada pelas mulheres.

Não temos chance de usar nossos recursos, nossa mente, nosso poder. Nosso governo tem interesse no mercado da prostituição e do turismo sexual.

Quando você pega um mapa gratuito, com emblema do governo, lá estão endereços de casas de massagem e bares-bordéis. Pela lei, prostituição é ilegal. Mas eu falo com você de um café no centro de Kiev. Há três estabelecimentos vizinhos que são bordéis. Todo o mundo sabe. Ninguém faz nada. As jovens são como carne para os tigres, que são os turistas.

O FUTURO

Disseram que deveríamos criar um partido para as próximas eleições. Não faremos isso. Nunca quisemos ser uma organização feminista clássica. Mas nos chamam de feministas e tudo bem. Estamos criando um novo feminismo, mais interessante para os dias de hoje. O feminismo clássico morreu fora de livros e de conferências.

Nós somos contra a copa Euro 2012 na Ucrânia. O senso comum diz que seria bom para nosso país, criaria infraestrutura. Não acreditamos nisso.

Os turistas virão atrás de sexo. Há discussão dentro do governo para legalizar a prostituição até lá. Não queremos que a Ucrânia vire um bordel institucionalizado. Funciona na Suécia, mas não aqui.

Queremos viajar pela Europa fazendo um grupo da Femen em cada capital. Agora levantamos dinheiro para essa turnê. Em dois ou três anos, Femen será um estilo de vida para mulheres europeias. Essa será uma nova cultura feminina."

Folha de S.Paulo - Vinicius Torres Freire: Indignados e desanimados - 30/10/2011

Folha de S.Paulo - Vinicius Torres Freire: Indignados e desanimados - 30/10/2011

VINICIUS TORRES FREIRE

Indignados e desanimados


Maior tumulto econômico em décadas suscitou apenas mais conformismo e protesto ingênuo e menor


OS "INDIGNADOS" e ocupantes de praças em Nova York, Madri e alhures dão o que pensar. A gente pensa no fracasso, na ruína e na evaporação das ideias inconformistas e críticas nos últimos 40 anos, assim como dos movimentos políticos que poderiam ter dado sentido a elas. Trata-se aqui de países ricos, do universo euro-americano.
Nos anos 1960 e 1970 parecia haver grande revolta no centro do mundo. Enterravam-se várias tradições culturais e comportamentais (1968 etc.), maneiras da classe dominante antiga eram vilipendiadas pela difusão de hábitos "pop", contestavam-se as relações sociais autoritárias mais cotidianas.
Os sindicatos operários davam seu último grande suspiro de protesto, o que afinal não foi pouco, pois firmaram e blindaram o contrato do Bem-Estar Social, que, mal ou bem, mas cada vez mais mal, civilizou a vida e dura até hoje.
Em seguida vieram a "grande (para eles) inflação", as recessões e, enfim, a grande liberalização financeira e maciça transnacionalização da grande empresa, coisas que ajudaram a moldar o mundo tal como ele é agora. Um molde trincado.
Isto é, um mundo de tumulto financeiro quase contínuo, de redução do poder dos governos nacionais, de despolitização desanimada diante de poderes imperiais e globais tão imensos que tornam derrisória a maioria dos movimentos políticos de protesto. A ironia da crise econômica do final dos anos 1970 e do começo dos 1980 é que ela redundou no fortalecimento das "forças da ordem", na ruína até da centro-esquerda, no mercadismo, no aumento do poder da finança, na indiferenciação cada vez maior dos partidos maiores, quase todos transformados em social-democratas conservadores.
Mas ainda naquele tempo havia a fantasia de revoluções, ideias críticas, esperanças de nova ordem, ingênuas ou selvagens que a maioria delas fosse, não importa. Havia espírito de dissenso e misérias bastantes para suscitar protesto. O que, porém, foi completamente irrelevante para a vitória fácil dos adversários desse tal espírito crítico.
A emergência do complexo asiático, da entrada no mercado mundial das massas de trabalhadores de China, Índia e cia. comprimiu ainda mais a margem de manobra política e econômica no mundo euro-americano. Tal movimento só começa -há uma outra China quase inteira para entrar no mercado.
Depois de 30 anos, um novo tumulto atinge o restante do centro econômico mundial. O nível de conforto material cresceu no mundo rico desde então. A desconfiança ou desalento com a irrelevância da política também.
Mesmo com a ruína teórica e moral de vários aspectos do mercadismo, recessões imensas, desemprego etc., a reação por ora é quase só cinismo ou a ingenuidade dos acampados e indignados de Nova York, Madri e alhures. Existiria um limiar de conforto a partir de qual a vontade de protestar se reduz a zero?
O mundo rico estaria apenas sujeito ao risco de uma lenta degradação, a fuga contínua de empregos para Ásia, emergentes e cia., o que, aos poucos, reduzirá o nível de conforto de seus habitantes, em particular na Europa do bem-estar? Um suspiro, nada de explosões, nenhuma ruptura mais?

sábado, 29 de outubro de 2011

Carta Maior - Katarina Peixoto - Protocolos dos sábios do Sião, aqui, não!

Carta Maior - Katarina Peixoto - Protocolos dos sábios do Sião, aqui, não!

DEBATE ABERTO

Protocolos dos sábios do Sião, aqui, não!

Tem gente querendo reprisar a farsa dos Protocolos dos Sábios de Sião na política brasileira. Pouco importa que haja emprego e que as crianças pobres do Recife não expilam lombrigas pela boca nos sinais de trânsito. A farsa está na invenção de um inimigo bestial a ser revelado e denunciado como responsável por uma suposta onda gigantesca de corrupção.

Há uma grande conspiração em curso no Brasil. Trata-se da conspiração do PT e da esquerda em geral para assaltar o bolso das famílias, para imporem um modo politicamente correto de pensar, para censurarem o machismo, a homofobia, o sexismo e o nosso direito de andar armados. Essa gente quer assaltar os cofres públicos para nos fazer pagar impostos, com os quais eles só fazem roubar e enriquecer, enquanto eu me sinto vilipendiado e cada vez mais envergonhado. Nunca houve tanta corrupção neste país, nunca. É aquela coisa do pobre que jamais teve algo e que agora se lambuza, minha avó já dizia. Aqui, comediante é levado a sério, só porque é fascista, homofóbico, machista e age contra a lei, enquanto os políticos, ah, os políticos, esses seguem sem ser levados a sério. Por isso eu gosto mesmo é do Bolsonaro, inclusive. Ele vem sendo vítima do festival de autoritarismo e corrupção que assolam este país. Esses petralhas que estão mais preocupados em atacar a liberdade de imprensa do que em governar o país. Sim, porque o país só vai bem graças a Fernando Henrique, que não fosse ele, esses petralhas iam ver. O PT não faz nada que preste e só rouba o nosso dinheiro. O filho de Lula é milionário, Dilma sabe e acoberta Orlando Silva, aquele moleque safado que está podre de rico, caiu porque é culpado, óbvio.

Outro dia um jornal muito importante disse no seu editorial que o país precisava de uma limpeza ética! Eu concordo! Cresce no país a consciência de que chega de tudo isso que aí está! E ainda querem mais imposto para a saúde, e fraudam até provas de ensino médio, que são de alta importância para os nossos filhos! Como eles terão certeza de que entrarão por seus próprios méritos na Universidade? Não basta ter direitos negados pelas vagas dadas de presente – às nossas custas – a quem se diz negro (como se houvesse racismo no Brasil, ora essa!), aos desqualificados das escolas públicas e, pasmem, para indígenas. Chega! Está na hora da nossa marcha, da marcha pela dignidade, contra essa gente que quer mandar em nós, que quer controlar o nosso modo de pensar, que pretende ganhar dinheiro às minhas custas e fazer demagogia com os impostos que eu e minha família e você paga!


Diariamente a Carta Maior recebe comentários de leitores que compartilham o balaio de enunciados contraditórios acima. Essa babilônia de crenças incompatíveis, que não sobrevivem a um inquérito minimamente lógico a respeito da relação entre uma e outra reina na mídia e, até aqui, parece apavorar setores poderosos do governo. Trata-se de uma onda de depravação consciente e deliberada, que convida a barbárie para uma grande orgia semântica, voltada para criar uma farsa. Não porque é contra o PT ou o governo ou a esquerda. A farsa está na invenção de um inimigo a ser revelado e denunciado como responsável pelas ameaças e fragilidades que o poder vem enfrentando. Mas que poder? O da mídia, o do tal do PIG, o da CIA e do FMI? E que fragilidades?

O Protocolo dos Sábios de Sião é uma farsa criada por um serviçal do Czar Nikolai II para tentar, sem sucesso, enfrentar as ameaças ao seu poder. Essa farsa, da virada do século XIX para o XX, denuncia a existência de um grupo de judeus que se reúnem e deliberam como controlar o mundo. Eles traçam planos e estabelecem metas para a empreitada. O texto é tão autêntico que todo judeu denega a sua veracidade, revelando, assim, a sua força, dizem as sumidades de todo tipo que acreditam nessa mentira.

O modelo desse embuste é muito simples e imbecilizante: ele mobiliza o medo do lobo mau que habita as memórias infantis apontando um inimigo ao mesmo tempo genérico e específico que introduz, contamina e assegura a permanência de todo o mal na floresta, quer dizer, na sociedade. Na Rússia czarista, eram os judeus. Depois, no nazismo, eram os judeus comunistas, porque, como se sabe, a Revolução de 17 foi coisa de judeu, segundo nos disse Hitler, o sábio. Já na década de 30, quando as trevas do stalinismo assaltaram o Partido Comunista, os Protocolos foram recuperados, porque ali estariam claros os planos trostskistas – portanto judeus – para atacar o guia dos povos.

Quando os delinquentes argentinos que agora estão sendo condenados (finalmente) deram o golpe de estado em 1976, com a missão de exterminar a esquerda, usaram essa bíblia de oligofrenia e irracionalidade para levarem a cabo o extermínio de aproximadamente 30 mil pessoas. Talvez fosse o caso dizer que, no caso da Argentina dos anos Videla-Massera – com o auxílio de refugiados nazi –, da Alemanha nazista e da barbárie stalisnista os tais sábios de Sião tenham aumentado um pouco o número. Porque somando esse horrores se chega na casa dos milhões de “sábios”. Mas não é o caso dizer, quando se respeita a verdade e a razão que viabiliza o seu acesso.

A Política e a inocência são e devem ser inimigas desde a gestação. Disso obviamente não se segue que a Política seja coisa de bandidos; só as pedras são inocentes, disse Hegel, dessa vez com razão: disso se segue que a defesa da inocência é a defesa de uma quimera, não apenas do reino que seria próprio às coisas do poder, mas do da razão. A origem da reclamação de inocência e pureza no mundo está na crônica mítica do pecado original, a primeira corrupção que teve sua CPI vendida pelo governo de Deus, no caso em tela.

Até hoje há gente séria da teologia que debate se Adão levou a serpente a sério por curiosidade intelectual ou por desejo. A primeira vertente de interpretação defenderia que o livre arbítrio dos homens deriva da sua racionalidade; a segunda vertente, que deriva do seu desejo. Mas a coisa mais importante é que a liberdade dos homens, na qual, aliás, veio a se fundar a Política, não deriva nem pode derivar da inocência. Já na sua origem, a liberdade tem a ver com as condicionalidades da contingência.

É claro que não é por isso que o Ministro x ou y cai ou não; por isso se torna evidente, apenas, que a gritaria por inocência não é nem pode ser inocente: ou tem alguma racionalidade, ou tem um desejo incontrolável. Em ambos os casos, é o poder, e não a inocência e a pureza de intenções, que organiza a sua inteligibilidade.

Essas observações também vigoram quanto ao PT e aos seus aliados, em tempo. Não são poucos os que se lembram dos anos 90, no Brasil. Mas eu lembro como se fosse ontem do quanto me indignava com o PT, com o PCdoB e com muitos outros da oposição ao governo Fernando Henrique e Paulo Renato, no MEC de então, naqueles anos tristes. Enquanto a Vale do Rio Doce era entregue à iniciativa privada com financiamento do BNDES, enquanto a CSN e as companhias de energia elétrica eram entregues, enquanto bancos públicos estatais eram praticamente doados, enquanto tudo isso acontecia com o discurso de que era para se qualificar o Estado e este, no período em que o dinheiro das supostas vendas de patrimônio público deveriam estar entrando nos seus cofres, definhava, com os banheiros nas universidades fedendo e os professores doutores ganhando salários ridículos, o que fazia a esquerda, em geral?

Denunciava a corrupção e berrava por CPIs, no Congresso. Eram poucos os que, à esquerda, investigavam e buscavam, amiúde, diagnosticar a destruição que estava em curso no país e que apontavam as dificuldades que viriam pela frente, não apenas para um eventual governo do PT, mas para o país mesmo - este que não se resume ao bolso e ao imaginário classe média cuja vida é do tamanho do sábado com uísque e os amigos, para reclamar do que a revistinha semanal declara.

No início dos anos 2000 e no começo da primeira gestão de Lula na presidência ficou claro que essa tática tinha sido inconsequente: a destruição do Estado, o definhamento da República e o sequestro de seu financiamento pela política parasitária do sistema financeiro causaram uma gigantesca confusão em muitos que, como eu, tinham apostado na interdição do horror que assolou o país nos anos 90. A confusão não acabou, mesmo que muito daquele horror tenha sido revertido, pelo menos quanto ao futuro ou às gerações posteriores às dos beneficiários do Bolsa Família, quanto ao futuro da pesquisa, da Universidade, da ciência, do financiamento público-estatal por meio dos bancos públicos do Estado, do PAC, do Minha Casa, Minha Vida, da redução das desigualdades, enfim, de tudo isso que se tornou o Brasil, dos últimos 6 anos para cá, ao menos.

E qual é a inconsequência, mesmo? É trazer a farsa dos Protocolos dos Sábios de Sião para a cena Política. A inconsequência, que emergiu na mais regressiva e violenta campanha eleitoral da jovem democracia brasileira, em 2010, é convidar o adão de antes da maçã para juiz das coisas do poder. Pouco importa que ditadura alguma leve a sério a pesquisa e a universidade, como se leva a sério no Brasil, hoje. Não interessa à imbecilidade que não entendeu o que aconteceu há quinze anos, saber o que realmente aconteceu no Ministério dos Esportes hoje ou no do Planejamento, em 1995. Pouco importa que haja emprego e que as crianças pobres do Recife não expilam lombrigas pela boca nos sinais de trânsito. Nada importa que a abundância tenha se tornado regra até para a classe média, mesmo que nos cartões de crédito. Não se preocupam com o valor, sobretudo nas próprias vidas, do automóvel, desde que se angustiem com os impostos a pagar. Desde que os Sábios de Sião sejam os culpados.

É desnecessário e inútil dizer o quanto esse convite à orgia semântica dos Protocolos dos Sábios de Sião é depravado e perigoso. É desnecessário porque na mídia das oito famílias abundam declarações com documentos e atas das reuniões dos Sábios que conspiram para prejudicar as pessoas de bem deste país. E é inútil porque parte do PT aceitou esse convidado indecente, o adão de antes da maçã, para juiz da Política. Então, não é útil, aqui, lembrar que não adianta denunciar a mídia das 8 famílias, nem lembrar que houve, sim (mesmo que seja verdade), um gigantesco e brutal saque do erário no processo de privatização. Não se combate a criação de monstros com uma briga de arquibancada. Na melhor das hipóteses, a briga contra o tal do PIG enche o saco de quem pensa e quer saber o que diabos está acontecendo, até mesmo quando não se tem mais muita esperança de que se vai, afinal, ter alguma ideia do que realmente ocorreu com aquela licitação ou com aquela fraude declarada numa manchete daquele panfleto com papel jornal.

A história dos Protocolos dos Sábios de Sião não parece nem próxima do fim, mas isso não implica que o seu uso seja ou deva ser triunfante. Porque a única vitória dessa irracionalidade é a destruição e o empobrecimento, a morte e a barbárie. No início dos anos 2000, o Rio Grande do Sul foi sequestrado pelos profetas que denunciavam uma grande conspiração petista para destruir a propriedade, os valores das famílias de bem e as mentes das criancinhas. O que aconteceu aqui não se compara à tragédia argentina nem ao horror alemão e nem mesmo ao stalinismo, obviamente.

Mas é um bom exemplo de um estado que, “livre dos Sábios de Sião”, empobreceu, destruiu suas escolas, sucateou os serviços públicos, empobreceu no campo e dilacerou-se nas cidades, com o aumento da violência e do tráfico. É um exemplo de emburrecimento midiático, de estupidez cultural, de indigência literária, de depauperamento geral.

Não dá para dizer quem é o Nikolau II da vez, no Brasil. Quem está exatamente frágil e quem se sente ameaçado, porque a confusão não é pouca e porque o governo não parece estar contribuindo muito para elucidar o estado do que é racional e do que não pode sê-lo. Mas dá para dizer, e se deve dizer, que essa imbecilidade dos balaios de crenças contraditórias e incompatíveis deve ser combatida.

Aqui, na Carta Maior, essa farsa não tem vez.


Katarina Peixoto é doutoranda em Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: katarinapeixoto@hotmail.com

A vida entre os 1%

A vida entre os 1%

A vida entre os 1%

por Michael Moore

Cena o Occupy Wall Street. Amigos:

Terça-feira próxima farão 22 anos do momento em que estava com um grupo de operários, estudantes e desempregados no centro da minha cidade natal, Flint, Michigan, a anunciar que a Warner Bros, estúdio de Hollywood, comprara os direitos para distribuir por todo o mundo o meu primeiro filme, "Roger & Me". Um repórter perguntou-me: "Por quanto você o vendeu?"

"Três milhões de dólares!", exclamei com orgulho. Houve uma salva de palmas de gente dos sindicatos em meu redor. Era absolutamente inédito que um de nós da classe trabalhadora de Flint (ou de qualquer outro lugar) recebesse tamanha soma dinheiro a menos que roubasse um banco ou, por sorte, ganhasse o prémio da lotaria de Michigan. Aquele dia ensolarado de Novembro de 1989 foi como se eu tivesse ganho a lotaria – e o pessoal com quem eu vivia e lutava em Michigan ficou emocionado com o meu êxito. Era como se a boa fortuna houvesse finalmente sorrido para um de nós. O dia acabou em festas e "hurras para o Mike!". Quando você vem da classe trabalhadora tem raízes entre todos e quando um vai bem, ou outros vibram com orgulho – não só pelo êxito da pessoa, mas pelo facto de que a equipe também venceu, derrotando o sistema que era brutal e implacável e que efectuava um jogo com regras feitas contra nós. Nós sabíamos as regras e estas diziam que nós ratos de fábricas da cidade não podíamos fazer cinema, ou dar entrevistas à televisão ou conseguirmos fazer ouvir a nossa voz num cenário nacional. Devíamos ficar calados, de cabeça baixa e voltar ao trabalho. Se, por algum milagre, um de nós escapasse e tivesse acesso a uma audiência em massa e um bocado de dinheiro – bem, santa mãe de Deus, cuidado! Uma posição de influência e bastante dinheiro para fazer barulho – isso era uma combinação incendiária e só significava perturbação para os de cima.

Naquele momento, eu sobrevivia com o subsídio de desemprego, recebendo US$98 por semana. Previdência. A caridade. Meu carro morrera em Abril e há sete meses não tinha veículo. Os amigos levavam-me para jantar, sempre com uma desculpa para celebrar ou comemorar alguma coisa e depois levantavam-se e pagavam a conta para me poupar a vergonha de não poder dividir a conta.

E agora, subitamente, eu tinha três milhões de dólares! O que faria com ele? Houve homens de fato e gravata a fazerem-me sugestões e pude ver como aqueles sem um forte sentido de responsabilidade social podiam ser facilmente arrastados para o caminho do "EU" e muito rapidamente esquecer o do "NÓS".

Assim, em 1989 tomei algumas decisões de fundo:

1. Primeiro pagaria todos os meus impostos. Disse ao rapaz que fazia a minha declaração de rendimentos para não efectuar quaisquer deduções além da hipoteca e que pagasse todos os impostos federais, estaduais e municipais. Orgulhosamente contribui com quase um milhão de dólares pelo privilégio de ser um cidadão deste grande país.

2. Dos US$2 milhões restantes, decidi dividir do modo como o fazia o cantor e activista Harry Chapin: "Um para mim, um para o amigo". Então, peguei metade do dinheiro – US$1 milhão – e criei uma fundação para distribuir o dinheiro.

3. O milhão que sobrou foi usado assim: paguei todas as minhas dívidas, paguei as dívidas de alguns amigos e membros da família, comprei um novo refrigerador para os meu pais, estabeleci um fundo de educação para sobrinhas e sobrinhos, ajudei a reconstruir uma igreja negra que se incendiara em Flint, distribuí um milhar de perus no Dia de Acção de Graças, comprei equipamento de filmar para enviar aos vietnamitas (minhas próprias reparações pessoais para um país que havíamos devastado), comprei todos os anos 10 mil brinquedos para dar no Natal ao [programa] Toys for Tots, comprei para mim uma nova Honda fabricada dos EUA e liquidei uma hipoteca de um apartamento em Nova York.

4. O que sobrou foi para uma conta-poupança simples, com juros baixos. Tomei a decisão de nunca comprar uma acção (nunca entendi o casino conhecido como Bolsa de Valores de Nova York, nem acredito em investir num sistema com o qual não concordo).

5. Acreditava que o conceito do dinheiro que gera dinheiro criara uma classe gananciosa, preguiçosa, que nada produzia, só miséria e medo para a massa do povo. Eles inventaram meios de comprar empresas e então encerrá-las. Conceberam esquemas para jogar com fundos de pensão do povo como se fosse dinheiro deles próprios. Exigiram que as empresas se mantivessem a registar lucros (o que era cumprido através do despedimento de milhares de trabalhadores e a eliminação de benefícios de saúde para os que permaneciam empregados). Decidi que se ia 'ganhar a vida', isso seria feito com o meu próprio trabalho, meu próprio suor, minhas ideias e minha criatividade. Eu produziria algo tangível, algo que outros pudessem possuir ou entreter-se ou aprender alguma coisa. Meu trabalho, sim, criaria empregos, bons empregos com salários de classe média e todos os benefícios de saúde.

Continuei a fazer filmes, a produzir séries de TV e escrever livros. Nunca iniciei um projecto a pensar "quanto dinheiro posso ganhar com isso?". Nunca deixei que o dinheiro fosse a força motivadora para qualquer coisa. Simplesmente fiz exactamente o que queria fazer. Essa atitude mantém o trabalho honesto e firme – e, ao mesmo tempo, acredito que tenha resultado em milhões de pessoas a comprarem bilhetes para estes filmes, a sintonizarem meu programas de TV e a comprarem meus livros.

Isso é exactamente o que leva a direita à loucura em relação a mim. Como é que alguém da esquerda consiga uma audiência tão vasta?! Isto não pode acontecer (Noam Chomsky, infelizmente, não é registado The View de hoje e Howard Zinn, de modo chocante, só chegou à lista dos mais vendidos do New York Times, depois de morto). Eis como a máquina dos media está armada. Não se pode ouvir aqueles que mudariam o completamente o sistema para algo muito melhor. Só liberais tolos, que pressionam por cautela, compromissos e reformas suaves conseguem dizer algo nas páginas editoriais dos jornais ou nas entrevistas de TV nas manhãs de domingo.

De certa forma, encontrei uma brecha na muralha e meti-me por ela. Sinto-me muito feliz por ter esta vida – e não tomo nada como garantido. Acredito nas lições que aprendi na escola católica – que se você acabar por sair-se bem, tem uma responsabilidade ainda maior para com aqueles que não têm a mesma sorte. "Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos". Uma espécie de comuna, eu sei, mas a ideia era que a família humana devia partilhar as riquezas da terra de um modo justo a fim de que os filhos de Deus tivessem uma vida com menos sofrimento.

Sai-me bem – e para autor de documentários, sai-me extremamente bem. Isso, também, leva os conservadores ficarem desvairados. "Você está rico por causa do capitalismo!" – gritam par mim. Hummm... Não. Não assistiram aulas elementares de Economia? O capitalismo é um sistema, um esquema piramidal de pouco valor, que explora a vasta maioria de modo a que os poucos no topo possam enriquecer-se mais. Ganhei meu dinheiro à moda antiga, de modo honesto fabricando coisas. Nuns anos ganho uma montanha de dinheiro. Noutros anos, como no ano passado, não tenho trabalho (nenhum filme, nenhum de livro) e então ganho muito menos. "Como é que você afirmar estar a favor dos pobres, quando é o oposto de pobre?!" É como perguntar: "Você nunca fez sexo com outro homem! Como pode ser a favor do casamento gay?!" Penso tal como aquele Congresso só de homens que votou pelo direito de voto para as mulheres, ou o grande número de pessoas brancas que marcharam junto com Martin Luther King (quase posso ouvir esses direitistas a berrarem ao longo de toda a história: "Hei! Você não é negro! Você não está a ser linchado! Por que é que está com os negros?!). É precisamente esta desconexão que impede os republicanos de entender porque alguém dedicaria seu tempo ou dinheiro para ajudar aqueles menos afortunados. Isso é simplesmente algo que os seus cérebros não podem processar. "Kanye West ganha milhões! O que é que ele está a fazer no Occupy Wall Street?!" Exactamente – ele está ali a exigir que os seus impostos sejam aumentados. Isso, para um tipo da extrema-direita, é a definição da insânia. Todos os demais ficam gratos por pessoas como ele posicionarem-se, mesmo se e especialmente porque isso é contra os seus próprios interesses financeiros pessoais. É especificamente aquilo que a Bíblia, que os conservadores tanto alardeiam, exige daqueles que estão bem.

Naquele dia distante de Novembro de 1989 em que vendi o meu primeiro filme, um grande amigo meu disse-me: "Ele cometeram um erro enorme ao darem a um grande cheque a alguém como você. Isso o tornará um homem perigoso. E prova aquele velho ditado: 'O capitalista lhe venderá a corda para enforcá-lo se pensas que pode ganhar com isso".

Atentamente,
Michael Moore
MMFlint@MichaelMoore.com

27/Outubro/2011

O original encontra-se em http://www.michaelmoore.com/words/mike-friends-blog/life-among-1

Esta carta encontra-se em http://resistir.info/ .

O Tea Party original e o nosso

O Tea Party original e o nosso

O Tea Party original e o nosso

Mede-se o grau de desenvolvimento político de um país pela transparencia
de suas disputas cotidianas. Neste sentido o universo político americano é mais avançado do que o brasileiro.

Um bom exemplo é o Tea Party. Trata-se de um grupo de extrema direita fanatizado, que tem um respeito absoluto e reverente pelo mercado.

Diz acreditar que o indivíduo é a principal alavanca do progresso humano. Condena o Estado acima de quase todas as coisas — menos para realizar guerras de conquista. Afirma, querendo ser levado a serio, que toda medida destinada a criar um regime de bem-estar social não passa de um esforço na direção de uma ditadura comunista.

É ridículo, como cultura política, e regressivo, como fenômeno histórico. A crise economica dos EUA, grande parte provocada por essas idéias, é uma demonstração do caráter nocivo deste condomínio conservador. Mas é mais honesto do que ocorre no Brasil.

Nosso Tea Party é difuso, anti-social e não se apresenta como tal. Esconde sua visão de mundo atrás da bandeiras extremistas, que fingem não ser de direita nem esquerda.

Está presente nos partidos políticos, mas também em artigos da mídia e em gabinetes de alto poder econômico e decisiva influencia política.

Seu discurso considera o Estado é uma entidade mal-assombrada que só deveria existir para perseguir os desajustados e os inconformados. Combate toda idéia que poderia levar a uma melhoria na proteção social e denuncia qualquer esforço para diminuir a concentração de renda.

Agindo num país muito mais pobre e desigual do que o original americano, nosso Tea Party faz uma tradução adaptada e empobrecida da mesma retórica. Procura se esconder atrás de causas universais para esconder que se move em nome de interesses bem particulares.

Nessa versão tropicalizada, alega que tudo o que sobrevive às voltas do Estado não é embrião de comunisno mas fruto de um roubo. Como os originais americanos, nosso Tea Party adora o setor financeiro. Seus integrantes falam como se fossem anarquistas de direita mas, num tributo (sem ofensa) às mazelas nacionais, seus verdadeiros líderes e inspiradores tiveram vários flertes e até muito mais do que isso nos tempos da ditadura militar.

Em matéria de liberdades públicas, nosso Tea Party confunde liberdade de expressão com direito de venda. É contra todo e qualquer protecionismo, a menos que se destine a proteger seu mercado.

Mas alimenta uma doutrina contra uma intervenção dos poderes públicos, mesmo que patrocinada por autoridades escolhidas pelo voto popular, para modificar a distribuição de renda e assegurar benefícios aos brasileiros que não tem renda para adquiri-los. Acham que combater a desigualdade social é ir contra a natureza humana.

Por coerencia, nosso Tea Party é contra um regime de saúde pública, que considera errado num país grande e baixa renda per capta como o nosso. Os sistemas públicos tendem a nivelar as pessoas e, de seu ponto de vista, isso é ruim.

Os mais atirados dizem que o SUS é uma utopia socialista, inviável em função de nossa renda per capta — seguindo um raciocínio que leva a crença de que o salve-se quem puder deveria virar artigo da próxima Constituição.

Os mais preparados preferem a linha policial. Alegam que todo aumento de gasto nessa área será desviado e roubado. É irracional e irreal mas funciona. Um número impressionante de brasileiros acredita nisso sem fazer contas simples.

É difícil saber quem rouba de quem quando se constata que nossa saúde privada consome 55% de todos os gastos com saúde do país mas só atende 25% da população. É um imenso e escandaloso programa de transferencia de renda ao contrário. Todo dinheiro gasto com saúde pelo cidadão comum pode ser descontado do imposto de renda, privando o Estado de recursos que seriam úteis para a educação, para as obras públicas e até para a saúde. Mas estamos falando de ideologias, não de realidades.

Uma pessoa que tem um plano de saúde privado razoável irá gastar em torno de R$ 400 por mes ou mais. São R$ 4800 por ano. Nem em dez anos deixaria uma quantia equivalente se tivesse de pagar uma contribuição de 0,1% em sua movimentação financeira como contribuição a saúde.

Continuaria tendo direito a assistencia médica mesmo que perdesse o emprego e não tivesse um centavo no banco. E faria parte de um sistema onde aqueles que tem mais pagam mais. Pode não ser correto do ponto de vista da igualdade alimentado pelo Tea Party. Mas é o justo conforme o padrão ético de muitas pessoas e toda escola progressista de diminuição da desigualdade.

Com frequencia, sempre que tem de enfrentar uma cirurgia delicada o cliente de um plano privado tem de travar uma longa batalha para valer seus direitos, que nem sempre serão respeitados. Nem todos os remédios nem tratamentos que sua doença exige serão oferecidos de forma gratuita. Como acontece também no SUS, poderá ser forçada a lutar por eles na Justiça. Mas o cidadão do plano privado não acha que está sendo roubado quando paga sua mensalidade.

Tampouco fica inquieto quando seus médicos fazem greve para denunciar ganancia patronal. No fundo, recusa-se a acreditar numa realidade matemática: os planos de saúde só podem ficar de pé enquanto não precisam entregar os serviços que cobram. No dia em que você precisa mesmo desses serviços, é expelido dos planos, ou forçado a pagar mensalidades inviáveis para a maioria das pessoas da mesma faixa de risco. Não é maldade. É plano de negócios.

Um raciocínio parecido aplica-se a Previdencia Social, cuja falencia é anunciada periodicamente como uma fatalidade técnica — mas que tem apresentado uma contabilidade menos complicada ano a pós ano, graças a uma política oficial que faz o óbvio e apenas ele: defende os empregos formais, facilita o registro em carteira e multa a empresa que não cumpre suas obrigações.

Nesse terreno dificil, o Tea Party deixa no ar a sugestão de que a aposentadoria privada é uma alternativa séria e que a Previdencia, quanto menos dinheiro tiver, menos roubará. O problema é que as previdencias privadas até podem ser úteis para quem pode pagar por elas, mas todo analista sério sabe que nenhuma oferece os mesmos benefícios, pelo mesmo preço, como o INSS.

Há uma boa razão para nosso Tea Party assumir uma identidade esquiva e fugidia. Seu discurso pode até existir nos Estados Unidos, país com uma história muito diferente da nossa, onde a economia privada atingiu uma força sem paralelo na América ou no Velho Mundo. No Brasil, com uma condição histórica muito diferente, um grau de desigualdade maior e carencias também maiores, o Estado oferece um padrão mínimo de assistencia que não é desprezível, embora seja totalmente insuficiente. Nesse geografia, o Tea Party só pode atuar na sombra, procurando causas universais para interesses bastante privados.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Conferências de saúde? Para quê?

Conferências de saúde? Para quê?

Conferências de saúde? Para quê? Versão para impressão Enviar por E-mail
(0 votos, média de 0 em 5)

Share
Brasil - Sanidade
Quinta, 27 Outubro 2011 00:56

271011_confCorreio da Cidadania - [Daniel Chutorianscy] Em primeiro lugar, o que são as Conferências de Saúde? As municipais, que deveriam ser realizadas em todos os municípios do país; as estaduais, em todos os estados; e a nacional.


Todas acontecem a cada quatro anos, há aproximadamente cinqüenta anos, com três segmentos: os profissionais de Saúde, os trabalhadores de Saúde e a população, sendo os delegados eleitos paritariamente ao final de cada Conferência, da municipal para a estadual e desta para a nacional.

Mas conferenciar sobre o quê? A cada Conferência que se segue, é cada vez mais complicado e difícil o acesso e a divulgação; a cada Conferência faz-se uma listagem imensa de reivindicações justas, que geralmente não são atendidas pelos gestores ou pelos governos municipal, estadual e federal, gerando uma imensa frustração a cada quatro anos, ou seja, o que se reivindicou virou de "cabeça para baixo". É o mal-estar causado pela Saúde que a população deseja, contra a ganância dos lucros através da Doença.

Não vejo mais sentido sobre o que conferenciar, basta do diálogo unilateral e ultrapassado de antigas e justas reivindicações que nunca acontecem, ou melhor, acontecem justamente no sentido inverso: a privatização e extinção do Serviço Público com as famigeradas OSS (Organizações Sociais(?) de Saúde), que nada mais são do que empresas privadas.

Não vejo mais sentido sobre o que conferenciar quanto à crescente falta de verbas para a Saúde, a Educação, a Cultura etc. etc., com a antiqüíssima justificativa "não temos recursos", porém, com o pagamento de mais de 50% do PIB (aquilo que todo o país produz) para os banqueiros e multinacionais. Para isso, nunca faltam recursos e o pagamento é feito sempre no prazo certo.

Conferenciar sobre o quê? A corrupção desenfreada na área da Saúde, o mar de lama e esgoto, de desvios astronômicos, sem nenhuma punição? Como se fosse a coisa mais normal do mundo desviar recursos da Saúde, sem a menor fiscalização? Será isso por acaso? A população que reivindica atenção primária, secundária e terciária nas Conferências continua sendo aviltada, massacrada, com o que resta das instituições públicas, totalmente decadentes, "caindo aos pedaços", além dos salários indignos dos funcionários. A imensa corrupção não deixa chegar na "ponta" (as Unidades de Saúde) o mínimo: gaze, esparadrapo, filme de raio-x...

Como o mais votado delegado no setor Trabalhadores de Saúde na última Conferência Municipal de Saúde de Niterói-RJ, fui eleito para a Conferência Estadual, no momento em que o governo do estado do Rio de Janeiro e a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro aprovaram leis que privatizam os serviços de Saúde, o que vai desencadear uma cascata de leis de igual teor e terror nos demais estados brasileiros, desembocando no Governo Federal. Mídias adestradas, câmaras de vereadores e deputados obedientes só facilitam esse processo de adoecimento das instituições e da população.

Conferenciar sobre o quê, se as administrações dos hospitais e Unidades de Saúde serão privatizadas e terão "duas entradas, duas portas" – uma para quem possui recursos, outra para o "povão"?

Não é preciso conferenciar para saber o que vai acontecer... Não é preciso conferenciar para entender que o hospital público funcionando adequadamente fecha qualquer instituição privada a sua volta. Portanto, para o modelo capitalista-neoliberal, adoecer e "cancerizar" a instituição pública é necessidade vital.

Chega de enganação, de ficar "ganhando tempo". A minha posição pode parecer radical, respeito as demais, mas não faz sentido ir a mais uma Conferência. Nego-me a ir.

Conferenciar, dialogar com quem? Com aquele que necessita da doença, da barbárie, da dor, da perversidade, do lucro, da ganância, pressupondo nossa alienação, pressupondo nossa total ou parcial perda de consciência, em um país onde há a mais alta taxa de juros do planeta, salários aviltantes, justiça precaríssima, doenças crônicas e sócio-sanitárias em escalas assustadoras, falta de informação, prevenção, medicamentos, equipamentos?

País campeão mundial em acidente vascular cerebral, em consumo de agrotóxicos, mas que para as elites proporciona cada vez mais conforto, recursos, boa educação, bons laboratórios, medicamentos, equipamentos... Um outro mundo?

Chega de Conferências, queremos "pular a cerca", derrubá-la, romper o arame farpado que nos separa da Saúde. A minha forma de protestar pode não ser a da maioria, que respeito, é assumir e resguardar as nossas Unidades de Saúde antes que nos sejam tomadas definitivamente. Não é conferenciando com alguém "invisível", que nunca nos deu atenção, nem vai dar, e que só quer ganhar tempo e nos desgastar, nos "adoecer".

A nossa saúde clínica e social depende da posição que tomarmos. Vamos à luta. O que perderemos? Poderemos perder se ficarmos paralisados. Aí, sim, estaremos perdidos. Ir à luta nas ruas, nas unidades de saúde, repetindo o papel de mil cidades no mundo, que protestaram e assumiram sua posição contra a opressão do capitalismo selvagem que barbariza este planeta.

Não será conferenciando eternamente com o inimigo que se vai resolver a questão. Ninguém quer adoecer, mas esse inimigo perverso e cruel precisa e quer nos adoecer.

A população brasileira quer, ou melhor, exige que as unidades de saúde públicas funcionem como devem, com bons serviços, voltadas para a justiça social, para a democracia, excluindo os "chupadores de sangue", gananciosos e sedentos de lucros.

A população brasileira quer, ou melhor, exige que seja cumprido o primeiro princípio do Direito: a vida. Vida é Saúde, Saúde é transformação social e as transformações exigem sacrifícios.

Já conferenciamos demais. Agora, é hora das ações.

Daniel Chutorianscy é médico.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

IHU - Instituto Humanitas Unisinos

IHU - Instituto Humanitas Unisinos

Tranquila e infalível como Bruce Lee
"Enquanto a taxa nacional média de esclarecimento de homicídios dolosos é de 8%, o país entope penitenciárias de jovens pobres, não violentos", escreve Luiz Eduardo Soares, antropólogo, autor de "Justiça" (Nova Fronteira, 2011), ex-secretário nacional de Segurança Pública (2003), em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 25-10-2011.

Eis o artigo.

Os primeiros nove meses do governo Dilma, na segurança pública, foram decepcionantes.

A decepção decorre do contraste entre as expectativas suscitadas pelos excelentes nomes escalados para enfrentar o desafio e a postura da presidente, que prefiro descrever a qualificar, por respeito ao cargo e à sua biografia.

O começo foi alvissareiro, com a nomeação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que encheu de esperança até os céticos.

O primeiro ato do novo ministro justificou o otimismo. Foram convidados Regina Mikki e Pedro Abramovay para as secretarias de segurança e de políticas para as drogas.

Escolhas irretocáveis, cujos significados prenunciavam avanços. Some-se a isso uma vitória do ministro ao obter o deslocamento da secretaria responsável pela política sobre drogas para o Ministério da Justiça. Ainda que o ideal fosse inseri-la no Ministério da Saúde, tratava-se de um passo positivo da maior importância.

Na sequência, mais um alento: em entrevista ao "O Globo", Pedro mostrava quão perversa vinha sendo a escalada do encarceramento no Brasil, cujas taxas de crescimento já eram campeãs mundiais: desde 2006, o tipo penal que concentrava o foco das ações repressivas correspondia à prática da comercialização de drogas ilícitas sem armas, sem violência, sem envolvimento com organizações criminosas.

De meados dos anos 90 até hoje, passamos de 140 mil a mais de 500 mil presos. Em termos absolutos, só perdemos para a China e para os Estados Unidos. Era preciso mudar a abordagem do problema.

Por aí ficou Pedro, mas já era suficiente para disseminar o entusiasmo em tantos de nós.

Enquanto a taxa média nacional de esclarecimento de homicídios dolosos é de 8% (92% dos homicidas permanecem impunes, nem sequer são identificados nas investigações policiais), o país entope penitenciárias de jovens pobres, com baixa escolaridade, não violentos, que negociavam drogas no varejo.

Ao condená-los à privação de liberdade em convívio com grupos profissionais e organizados, que futuro estamos preparando para eles e para a sociedade?

Não há uso mais inteligente para os R$ 1.500 mensais gastos com cada jovem preso que não cometeu violência? É preciso impor limites, mas também ampará-los na construção de alternativas.

Veio a primeira frustração: a presidente ordenou ao ministro que desconvidasse Pedro Abramovay. A ordem presidencial caiu como um raio, fulminando a confiança que se consolidava e expandia.

Enquanto isso, o Brasil continua sendo o segundo país do mundo em números absolutos de homicídios dolosos - em torno de 50 mil por ano -, atrás apenas da Rússia.

Para reverter essa realidade dramática, uma equipe qualificada do ministério trabalhou todo o primeiro semestre na elaboração de um plano de articulação nacional para a redução dos homicídios dolosos, valorizando a prevenção mas com ênfase no aprimoramento das investigações.

Um plano consistente e promissor, que não transferia responsabilidades à União, mas a levava a compartilhar responsabilidades práticas. Em meados de julho, chegou a data tão esperada: o encontro com a presidente. O ministro passou-lhe o documento, enquanto o técnico preparava-se para expô-lo.

Rápida e eficaz, tranquila e infalível como Bruce Lee, a presidente antecipou-se: homicídios? Isso é com os Estados. Pôs de lado o documento e ordenou que se passasse ao próximo ponto da pauta.

Conjur - Justiça Tributária: Judiciário não deve gastar tempo com processo morto

Conjur - Justiça Tributária: Judiciário não deve gastar tempo com processo morto

Judiciário não deve gastar tempo com processo morto

Por Raul Haidar

A quantidade de processos de execuções fiscais em andamento no país todo é absurda. São milhões de casos ocupando armários, edifícios e o tempo de servidores e juízes, com o objetivo de cobrar créditos pertencentes à fazenda pública em todos os seus níveis e também relacionados com autarquias incumbidas de fiscalizar profissões regulamentadas (CRC, CREA, CRECI, etc.).

Estudos recentemente divulgados estimam que o custo administrativo de cada um desses processos atinge a cerca de R$ 1.500,00 em média. Trata-se do custo que o poder público deve suportar apenas com o uso de instalações e prédios, material de uso e consumo (pastas, por exemplo) e salários de funcionários.

Qualquer advogado que atue na área tributária conhece a precariedade das instalações onde são colocados os cartórios encarregados desse trabalho. Para que se tenha uma ideia disso, basta dizer que recentemente em Praia Grande(SP) o forro do salão onde funcionava o cartório das execuções caiu sobre as mesas, arquivos e computadores, apenas por falta de manutenção, obrigando a suspensão dos trabalhos por vários dias.

Na Praça Dr. Almeida Lima, na capital paulista, há dois prédios utilizados pelo chamado Anexo Fiscal. Em um deles teriam surgido trincas ou rachaduras nas paredes, apenas com o peso dos milhares de volumes que para lá foram enviados.

Por alguma razão desconhecida, os anexos fiscais são colocados no pior local possível em todos os fóruns do Estado. Em Poá, o anexo fica do outro lado da cidade, num porão com ventilação e iluminação precárias. Se fosse uma empresa privada, certamente o Ministério Público já teria pedido a interdição do local, totalmente inadequado para qualquer atividade humana, colocando em risco a saúde dos servidores. Seria engraçado um anexo completamente separado, mas nesse caso não há graça alguma. Há apenas falta de respeito com os servidores, submetidos a condições degradantes de trabalho.

Em qualquer local do Estado de São Paulo (que se diz o mais importante da federação), as instalações destinadas a dar andamento a cobranças fiscais são as mais precárias e não recebem adequada atenção do credor, principalmente a fazenda pública.

Todavia, não há necessidade de qualquer mutirão, campanha ou evento midiático para que a maior parte desses processos acabem rapidamente. Basta uma decisão simples de cada juiz responsável em cada um desses cartórios. Tal decisão consiste em reconhecer, de ofício, os casos de prescrição.

A Súmula 314 do STJ diz:

“Em execução fiscal, não localizados bens penhoráveis, suspende-se o processo por um ano, findo o qual inicia-se o prazo da prescrição quinquenal (cinco anos) intercorrente”.

Quando o juiz não toma a providência, o advogado deve promovê-la, invocando a Súmula 393 do mesmo STJ:

“A exceção de pré-executividade é admissível na execução fiscal relativamente às matérias conhecíveis de ofício que não demandem dilação probatória” (Rel. Min. Luiz Fux, em 23/9/2009).

O juiz não só pode como deve reconhecer a prescrição de ofício. Como se sabe, o primeiro dever de qualquer magistrado é cumprir a lei. A Lei 11.280 de 16/2/2006 dá nova redação ao parágrafo 5º do artigo 219 do CPC, determinando que “O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição.” Assim, prescrita a ação de execução fiscal, deve o juiz , por dever de ofício, pronunciá-la.

A ocorrência da prescrição não depende de nada além de saber contar até dez. Os juízes podem delegar tais verificações a seus auxiliares, de tal forma que o cartório já traga ao magistrado o despacho pronto para assinatura.

Assim agindo, num espaço de tempo muito curto teremos eliminado milhares (talvez milhões) de processos. Os servidores que hoje cuidam de processos mortos poderão ser destacados para funções mais úteis. E provavelmente alguns prédios no interior e na capital poderão ter destino mais relevante do que servir de abrigo para papéis que não valem nada.

Manter em andamento execuções fiscais prescritas não só é ilegal como é totalmente imoral. O princípio da moralidade está explícito no artigo 37 da Constituição, como um daqueles que são de observância obrigatória pela administração pública.

A fazenda pública é obrigada a promover a cobrança dos tributos previstos em lei. Não pode negligenciar nessa cobrança. Para essa função são contratados advogados. Caso tais profissionais deixem de adotar as providências necessárias à cobrança, não pode o devedor permanecer eternamente sob os efeitos de uma execução.

A prescrição não é um favor que se concede ao devedor, nem é um perdão da dívida. Trata-se de uma forma da extinção do débito, em decorrência da inércia do credor. Até mesmo o trabalhador que não recebeu seu salário tem prazo para queixar-se. Se não se queixar no prazo, nada receberá.

O instituto tem como objetivo a segurança jurídica. O débito extingue-se exatamente porque o devedor não pode permanecer com seu nome vinculado para sempre a processo onde figure como inadimplente.

Se houve um prejuízo para o poder público, cabe à administração ou aos demais institutos democráticos de controle do estado (tribunal de contas, por exemplo) apurar eventuais responsabilidades e se for o caso punir quem tenha deixado de cumprir seu dever.

Ocorre que o país está hoje diante de enormes desafios. Um deles é ter um Poder Judiciário eficiente para que os brasileiros não possam, por exemplo, envergonhar-se de ter de explicar a um estrangeiro porque existem julgamentos que demoram 20 anos.

Ora, um Judiciário eficiente não pode ocupar-se com processos mortos ou casos extintos. O que deveria estar no lixo deve para lá ser levado. Papelada que serve apenas para reciclagem deve ser destinada a isso mesmo: reciclagem.

Todos esperamos que o Judiciário deixe de utilizar seus servidores e seus recursos materiais com essas causas encerradas de fato. Juízes conhecem a lei e justamente por isso devem aplicá-la. Não é muito o que a sociedade pede.

Raul Haidar é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

Revista Consultor Jurídico, 24 de outubro de 2011

Blog do Alon

Blog do Alon

Deu errado (24/10)


A ideia de terceirizar serviços públicos para Organizações Não Governamentais pode ter sido movida a boas intenções, mas deu errado. Transformou-se em ralo para drenar dinheiro público e reforçar maus hábitos na política

As ONGs (Organizações Não Governamentais) estão em xeque. A cada novo episódio de rolo com dinheiro público revela-se a deformação de um mecanismo nascido benigno, para transferir recursos oficiais a entidades qUe executam ações complementares às do Estado.

Os fatos reforçam a atualidade do velho ditado, de que as boas intenções lotam o inferno. A intenção na origem era boa. Comparadas à máquina estatal, as ONGs ganham em agilidade e foco, permitem a mobilização rápida e flexível de conhecimentos específicos indispensáveis.

Essa é a teoria. Na prática, o universo das ONGs é fonte recorrente de notícias sobre irregularidades e desvios.

Pululam as maneiras espertas de contornar normas e regulamentos, os expedientes para prevalecer o interesse privado e espúrio sobre o público. É sempre complicado generalizar, mas o número de casos nebulosos e escândalos permite o diagnóstico de um problema sistêmico.

Pode-se argumentar que o modelo é bom, que os problemas devem ser tratados como tal, que generalizar é perigoso e injusto, que os erros não devem servir de pretexto para condenar o sistema no todo.

É uma argumentação razoável, desde que venha acompanhada da proposta de solução. Qual é então o remédio para extirpar os focos problemáticos?

Uma estrutura de vigilância capaz de controlar a destinação do dinheiro público que vai para as ONGs? Aí seria o absurdo ao quadrado.

Pode-se imaginar qual deveria ser o tamanho dessa estrutura para funcionar a contento. Para monitorar milhares de ONGs sem deixar espaço ao malfeito. Ou pelo menos para minimizar o risco.

Provavelmente seria uma máquina gigantesca, uma megaburocracia para corrigir uma estrutura cujo objetivo inicial era fugir da burocracia. Aí não dá.

E por que não submeter então as ONGs às mesmas regras rígidas aplicáveis à despesa pública propriamente dita? Nas compras e contratações, para evitar que a maior flexibilidade abra portas e janelas ao erro.

Bem, nesse caso a pergunta é imediata. Para que então as ONGs? Por que não fazer a coisa por meio do Estado e ponto final?

É um beco sem saída. Na verdade, o impasse é produto de uma deformação estrutural. De um antagonismo conceitual.

As Organizações Não Governamentais surgiram como novidade para dar expressão à sociedade civil, às novas formas de protagonismo, às correntes sociais à margem dos partidos políticos, do Estado e das instituições tradicionais.

Eram novos atores, organizados para inocular vida na fossilizada política institucional, um oxigênio muito bem vindo.

Finalmente, a política deixaria de ser monopólio dos profissionais e as demandas coletivas teriam novos canais de expressão.

Mas para que fosse efetivamente assim um detalhe seria imprescindível. As ONGs deveriam buscar os meios de subsistência na sociedade, e não no Estado. Mas simplesmente não aconteceu.

Na prática, os governos, partidos e políticos acabaram tecendo cada um sua rede-satélite de ONGs, financiada com os recursos da atividade político-estatal e orientada a facilitar a reprodução do poder de quem a sustenta.

Bem ao contrário do que deveria ser. E quando uma boa ideia resulta no contrário da intenção original está na hora de avaliá-la com rigor e tomar providências.

O Mal do Brasil - Ricardo Noblat: O Globo

O Mal do Brasil - Ricardo Noblat: O Globo

O Mal do Brasil

Desde o século XIX, quando começamos a nos definir como país, começamos a procurar a raiz de nossos males. A construção de uma identidade nacional brasileira é inseparável dessa busca.

É como se, entre o destino imaginado de potência e a realidade mesquinha que se percebia, se interpusesse um obstáculo. Corretamente identificado e tratado, ele poderia ser removido, assim permitindo que nossas vocações fossem plenamente realizadas.

A história do pensamento social brasileiro é marcada por sucessivas tentativas de encontrar essa raiz, a partir da qual todos os problemas se tornariam inteligíveis.

Ninguém se iludiu achando que havia só uma, mas foi comum a convicção de que era possível descobrir a causa fundamental do drama nacional (no máximo, a combinação das duas ou três que o explicavam).

A saúva, formiga que poucos, hoje em dia, sequer conseguem identificar, já foi candidata ao posto. Ficou conhecida quando Saint Hilaire, um dos mais importantes viajantes estrangeiros a percorrer o Brasil e que aqui esteve nos anos 1810 e 1820, declarou que “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”.

Duzentos anos depois, nem uma coisa, nem outra aconteceu. O Brasil não terminou e as saúvas ainda aborrecem os agricultores.

Mas a verdadeira fama do inseto veio no século passado, quando Macunaíma formulou seu catastrófico diagnóstico: “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são!”. Mário de Andrade brincava com a frase do viajante francês e fazia uma crítica ao chamado higienismo, característico do pensamento médico e de alguns setores conservadores do período.

Para os higienistas, o atraso do Brasil era consequência das doenças que tornavam os brasileiros indolentes, passivos e resistentes à modernização. Somente uma revolução sanitária poderia salvar-nos, difundindo novos comportamentos, erradicando tradições e medicando a população.

Como dizia Monteiro Lobato, a principal voz literária do movimento, era preciso acabar com a “velha praga”, o “piolho da terra”, o “funesto parasita”, o Jeca Tatu.

A ideia de que a doença (entendida nesses termos) é o “mal nacional” se parece a outras que conhecemos antes e depois em nossa história política e intelectual. A miscigenação, a herança ibérica, o psiquismo transmitido pelos portugueses, a desnutrição, já ocuparam o lugar.

E todas tiveram sua implicação terapêutica. Se o problema, por exemplo, era o “peso exagerado” de “raças inferiores” (como acreditava Oliveira Vianna), o remédio seria encorajar a imigração de europeus do norte.

Se éramos subdesenvolvidos pela tradição ibérica de desvalorizar a iniciativa individual (como queria Tavares Bastos), podíamos importar instituições norte-americanas. Se tudo decorria da falta de nutrientes na dieta dos brasileiros (como imaginava Josué de Castro), podíamos distribuir merendas balanceadas aos escolares.

Hoje, só aumenta a proporção dos que acham que conhecem a causa do “problema brasileiro”. No senso comum, a corrupção se tornou a grande vilã, a culpada por tudo que acontece de ruim.

As pessoas pouco informadas são as que mais acreditam nisso. Nas pesquisas, as menos interessadas e de menor participação política é que mais tendem a concordar com teses simplistas.

A ideia de que a corrupção é a raiz de nossos problemas costuma andar de braços dados com a impressão de que o governo pode tudo e só deixa de fazer o que deveria por sua causa.

Quem pensa assim supõe que a saúde, a educação, a segurança, são precárias porque há corrupção. Se não, haveria dinheiro para elas.

A oposição sabe que a tese é falsa. A mídia oposicionista deveria sabê-lo. Mas ambas a sustentam, pois acham que isso enfraquece o governo.

Em apoio, usam estatísticas sem pé nem cabeça. Como a da FIESP, que estima, usando metodologia inteiramente questionável (pois se baseia nas percepções do empresariado captadas em pesquisas de opinião), que o custo anual da corrupção no Brasil seria de R$ 70 bilhões (isso, se tivéssemos zero de corrupção, o que não existe em nenhum país do mundo).

Na explicação de porque a população não tem boas políticas de saúde, educação ou qualquer coisa, as causas são diversas. Perde-se (muito) mais por falta de planejamento e administração, por não qualificar e pagar melhor os servidores, pela incompetência e a burocracia crônicas, que com a corrupção.

Lutar contra ela é tarefa cotidiana de todo governo. Mas dizer que a corrupção é o mal do Brasil apenas desvia a atenção. O problema brasileiro (e de todo país) é que não há um só problema.

Marcos Coimbra é sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi

domingo, 23 de outubro de 2011

redecastorphoto: LECH & LULA

redecastorphoto: LECH & LULA

LECH & LULA

DO ELETRICISTA AO TORNEIRO, O CHOQUE QUE MOLDOU IDEOLOGIAS

Raul Longo observa o seu legado
Raul Longo

Lá pro final do governo Lula distribui pela internet um texto (O Legado do Cara), onde abri comentando que desde Spartacus, nos anos 60 a. C., muitas lideranças populares de ambos os sexos fizeram por merecer o reconhecimento da humanidade, mas poucas foram tão distinguidas quanto o torneiro mecânico Lula da Silva.

Pra quê? Um tal de Marcus ou Marco Gutermann do blog do Estadão, entendeu ou quis entender que eu estaria comparando Lula a Spártakos (em grego) ou Spartacus (em latim) que o Gut aportuguesou para Espártaco (quando não em inglês, eles aportuguesam para facilitar aos seus ledores).

Daí foi uma borbulhante feira de indignações. Os ledores (leitor é classificação que não convém ao caso) do Estadão, boquiabertos, buscando fôlego ao que entenderam como uma comparação de Lula da Silva ao escravo romano da Trácia (atual Bulgária).

Peixes fora d’água! Se eu quisesse comparar Lula a algum herói das lutas populares, não iria buscar nos Balcãs e evocava mesmo era o Zumbi dos Palmares, ali de Alagoas, ao lado de Pernambuco. Só me referi ao Spartacus por ser o mais antigo líder popular de que tenho memória.

Os ledores do Estadão sempre foram assim mesmo: eruditos! Se chamar de puta, se ofendem. Mas chamou de messalina, ficam coquetes e oferecem o número do telefone.

Já pra quem é leitor de fato, não preciso nem explicar que liderança popular sequer precisa ser de esquerda, posto que as de direita também há. E deixa o blog atrasado do Estadão pra lá. Atrasado não de anacrônico, mas porque antigo, lá do ano passado. Embora desde antes do ano passado Lula já fosse uma das mais distinguidas lideranças populares da história da humanidade, querendo o Marcus Gutemberg e Guarabyra, ou não.

Hoje Lula sem dúvida alguma, é a mais citada, falada, documentada, honrada e premiada personalidade política, pra desespero do aquário.

E se for olhar no aquário do Estadão daqui a alguns dias, estará lá os bichinhos de guelras inchadas pelo título deste texto propondo comparação de Lula com o único líder popular da história que eles aplaudem depois do Spartacus. Walesa pelo que entendem de ideologia, o trácio pelo que creem por erudição. Já o brasileiro, nem debaixo d’água!

É uma calamidade, coitadinhos! O mundo capitalista se inundando de Lula e esses alevinos brasileiros no seco do abandono pelo cardume buscando em Lula o canal por onde sair do encalhe.

Que situação! Não bastasse os 96% de aprovação dos brasileiros e ainda vem o pessoal do Conselho de Davos a conferir ao homem o título de Estadista Global! Já aí o Estadão se confirmou estadinho, mas o Guto ainda insistiu ao me reprender pelo Spartacus que seria cedo para julgar se a herança lulista era bendita ou maldita.

Cedo pro Gutinho, porque Lula já era mais que bem agraciado por títulos honoris causa do que se poderia ter imaginado cinco anos antes. Depois do Instituto Sciences, uma entidade da Sorbonne, ficou ainda mais evidenciado que em menos de uma década a direita brasileira ficou mais de século atrás da direita do restante do mundo.

Marcel Proust foi um dos raros homenageados por este título que ao longo dos 140 anos de existência do Sciences só foi entregue a 16 personalidades internacionais, sendo a última e única da América Latina o brasileiro Luís Ignácio Lula da Silva. E o Guto preocupado com que eu esteja comparando Lula a Spartacus!

Esses caras não perderam... Eles despencaram do trem da história!

Quem mandou surfar onde não deve? Ora vejam! Eu é que moro no fim do mundo e o Mauricinho Gutterman é quem banca o suburbano.

E podis crê que vai pegar o bonde errado outra vez, assim que souber que falei do Lula e do Walesa. Mas a culpa não é minha! É do próprio Lech Walesa que ao entregar o prêmio “Lech Walesa” pro Luís Ignácio Lula da Silva pediu desculpas e deu explicações pelas críticas que fez ao colega brasileiro no passado, aquelas mesmas em que O Estadão insiste, apesar de -- que eu saiba -- só em setembro o mundo ter distinguido Lula com três grandes honrarias.
Apesar de todo esse embasamento, Walesa não conseguiu se reeleger em 95 e nas eleições do ano 2000 obteve apenas 1% dos votos. Em 2006 rompeu com o Solidariedade, o sindicato que havia criado.


Como presidente do sindicato de metalúrgicos de São Bernardo do Campo, em 1977 Lula liderou movimento grevista por reposição salarial. Em 1980 fundou o Partido dos Trabalhadores e em Diadema organizou o 1º comício pela redemocratização do país. O movimento se estendeu pelo ABC paulista, mas sem adesão de convidados de outros partidos políticos.

A última de que tive notícia foi em Iowa, nos Estados Unidos, mas teve a do eletricista de Gdansk que deu um choque na ideologia socialista nos anos 80.

Se O Estado de São Paulo me permite, Lech Walesa possibilita interessante comparação com Lula e não apenas por ambos terem sido líderes da classe trabalhadora e presidentes de seus países, mas pela trajetória de cada um dentro do histórico das sociedades a que pertencem.

Durante 123 anos a Polônia foi dividida entre a antiga Prússia, a Rússia e a Áustria, se tornando independente em 1918. 21 anos depois, em 1939, foi invadida pelos nazistas e depois da Segunda Guerra ali se instalou um dos mais cerrados governos aos moldes soviéticos.

Em 1980 Lech Walesa liderou o movimento grevista considerado precursor da queda do regime soviético não apenas na Polônia, mas em todo o leste europeu. Aclamado como herói no Ocidente (inclusive pelo Estadão) e, sobretudo na Polônia, recebeu o insofismável apoio do patrício e Papa Carol Wojtyla; além do Prêmio Nobel da Paz em 1983. Em 1990 foi eleito o primeiro presidente da história da Polônia, com ampla maioria de votos.

Apesar de todo esse embasamento, Walesa não conseguiu se reeleger em 95 e nas eleições do ano 2000 obteve apenas 1% dos votos. Em 2006 rompeu com o Solidariedade, o sindicato que havia criado.
Lech & Lula
Como presidente do sindicato de metalúrgicos de São Bernardo do Campo, em 1977 Lula liderou movimento grevista por reposição salarial. Em 1980 fundou o Partido dos Trabalhadores e em Diadema organizou o 1º comício pela redemocratização do país. O movimento se estendeu pelo ABC paulista, mas sem adesão de convidados de outros partidos políticos.

Por fim, em 83 o Senador Teotônio Vilela lança o Movimento das Diretas Já por um programa da TV Bandeirantes e com a participação de todos os partidos de oposição as manifestações se espalharam pelo país ao longo de 2 anos, finalizando com uma passeata no centro de São Paulo que se constituiu na maior manifestação pública da história do país: hum milhão e meio de participantes.

No entanto, os oposicionistas acordaram com os militares mais uma eleição indireta. O PT absteve-se de participar desta eleição e somente em 1989, quando depois de 25 anos o povo brasileiro pôde voltar a escolher seu presidente, Lula concorre com um político que apesar de desconhecido em pouco mais de um ano foi transformado pela mídia brasileira em mítico caçador de marajás.

Dois anos depois o caçador é cassado por um impeachment e, substituindo-o no cargo, Itamar Franco indica o sociólogo Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Economia. A mesma equipe que já formulara anteriores planos econômicos para o Brasil e a Argentina cria nova moeda congelando o câmbio e os salários. Dessa forma se obteve imediato controle da inflação que, então, era o mais agudo problema da economia popular. O entusiasmo pelo Real garantiu a vitória de Fernando Henrique sobre Lula em 1994 e o efeito se manteve em 1998, após a emenda constitucional que possibilitou sua reeleição.

Neste segundo mandato do que se chamou de “Era FHC” o custo do Real foi cobrado em privatização de grandes empresas estatais e serviços estratégicos. Reflexos de crises financeiras de países de outros continentes agravaram a fragilidade econômica do Brasil e se deu uma triplicação da dívida externa. O país estagnou e os níveis de desemprego cavaram profunda crise social. Fatores que garantiram a vitória de Lula em 2002, por reduzida margem de votos acima do candidato de Fernando Henrique: José Serra.

Apesar de desde a campanha de 1989 o ex metalúrgico ser apontado como anacrônico trânsfuga do regime soviético, “ralé e besta quadrada que se chegar ao poder o país vai virar uma grande bosta” (Paulo Francis); indicado como racista que abandonou a própria filha (Miriam Cordeiro); e seu partido, o PT, ser responsabilizado pelo sequestro do empresário Abílio Diniz (Pão de Açúcar), entre centenas de outras acusações; ao longo dos primeiros 4 anos de seu governo se conseguiu intensificar e rebaixar ainda mais o nível dessas críticas. Se propôs impeachment, se o acusou de bêbado, apedeuto, anta (Diogo Mainardi) e se o ameaçou de tapas na cara em plenário do Senado (Arthur Virgílio) e da Câmera Federal (Antônio Carlos Magalhães Neto).

No entanto, apesar da maior concentração de esforços dos meios de comunicação para a derrubada de um presidente de que já teve notícia no mundo, Lula foi reeleito em 2006 e desde aí seu nome atingiu projeção internacional entre as mais diversas correntes ideológicas. Apontado por Barack Obama como o mais popular presidente entre as nações, Lula terminou seu segundo mandato com 96% de aprovação, elegendo sua sucessora, também vitimada pelo mesmo teor de acusações e ofensas pessoais.

Ao contrário do previsto em 1989 pelo então presidente da maior entidade patronal brasileira, a FIESP, Lula não espantou os empresários do país. Apesar de se assumir como socialista desde o início de sua militância política, hoje é o conferencista mais bem pago e mais convidado pelas maiores empresas do mundo.

Exatamente no socialismo de Lula o ex-líder de Gdansk baseou suas desculpas pelas críticas do passado, lembrando que, então, a Polônia buscava uma saída ao socialismo proposto pelo líder do ABC paulista, mas que hoje entende que o modelo de socialismo de Lula é bem outro do o que se impôs àquela nação.

Ou seja, se os ledores do blog do O Estado de São Paulo pretendem continuar chocados, que o fiquem com o Walesa. Mas se querem saber quem tem andado por aí, da África à Europa e América do Norte, dando sugestões para se moldar o ocidente e todo um mundo melhor, que se tornem leitores e busquem por outras fontes de informações porque eu não tenho nada a ver com isso.

Só gosto de me divertir um pouquinho como os Gutos da mídia brasileira.