blog do ozaí: "Sobre os intelectuais
Publicado: 25/09/2010 por Antonio Ozaí da Silva em política, práxis docente, universidade
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Desde a antiguidade que os intelectuais se colocam a soldo dos governantes e colaboram para a conservação do poder e do status quo.[1] Por outro lado, sempre existiram os contestadores da ordem e do poder político vigente, os inconformistas e instabilizadores; os que construíram novas ordens e produziram novos contestadores e defensores da ordem instituída.
O intelectual deve tomar partido diante dos dilemas do seu tempo? Deve engajar-se na política ou abster-se de participar do poder? Deve assumir o papel de conselheiro do príncipe? Qual o seu compromisso social?
Sartre, modelo de intelectual engajado, celebrizou este debate ao defender que o intelectual-escritor não é neutro diante da realidade histórica e social. “O escritor “engajado” sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão tencionando mudar”, afirma.[2] No contexto capitalista é impossível manter a imparcialidade diante da condição humana. Para ele, “a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele”.[3]
O intelectual, porém, tende a separar a palavra do mundo, o conceito da realidade. As palavras dissociam-se da vida real, das contradições, sofrimentos e esperanças dos que vivem o mundo. Como assinalou Paulo Freire: “Em última análise, tornamo-nos excelentes especialistas, num jogo intelectual muito interessante – o jogo dos conceitos! É um “balé de conceitos”.[4]
Não se trata apenas de refletir sobre o mundo, de desvendá-lo aos olhos dos incrédulos, mas de arrancá-los da consciência feliz, isto é, da sua ignorância perante o mundo e a condição humana neste, tencionando-os para transformá-lo. Se a palavra é ação, esta não é contemplação: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”.[5] A discussão sobre a relação teoria e prática, contemplação e transformação, permanece atual.
Sartre observa que o intelectual moderno é um homem-contradição, um ser dividido entre a ideologia particularista (fatores econômicos, sociais e culturais que condicionam sua vida) e o universalismo (exigência intrínseca da sua atitude como técnico e pesquisador). “Um físico que se dedica a construir a bomba atômica é um cientista. Um físico que contesta a construção desta bomba é um intelectual”.[6] Eis o paradoxo do intelectual moderno na acepção sartreana.
O especialista não questiona as condições em que se dá a pesquisa, o resultado ou o uso que se faz dela. Mas é precisamente no momento em que o pesquisador “se mete no que não é da sua conta e que pretende contestar o conjunto das verdades recebidas, e das condutas que nelas se inspiram em nome de uma concepção global do homem e da sociedade” que ele se torna um intelectual. [7]
Tocqueville, no século XIX, censurou os intelectuais, os quais teriam desempenhado um papel negativo na Revolução Francesa.[8] Em contraposição, Sartre argumenta que os filósofos iluministas tiveram a missão de desenvolver os pressupostos teóricos que legitimaram a ideologia burguesa, a qual se tornou universal e hegemônica. Os filósofos eram intelectuais orgânicos, no sentido gramsciano.[9]
Se somos feitos à imagem e semelhança de Deus, o ideal iluminista nos fez à imagem e semelhança do homem burguês. Os intelectuais modernos, técnicos do saber prático, encontram-se presos às amarras do humanismo universalista burguês e às contradições do seu ser social, enquanto membros de uma categoria social vinculada à ideologia dominante. Então, coloca-se a necessidade de construção de um novo humanismo, outra universalidade. Esta é, na acepção sartreana, a tarefa histórica dos intelectuais.
[1] “Embora com nomes diversos, os intelectuais sempre existiram, pois sempre existiu em todas as sociedades, ao lado do poder econômico e do poder político, o poder ideológico, que se exerce não sobre os corpos como o poder político, jamais separado do poder militar, não sobre a posse de bens intelectuais, dos quais se necessita para viver e sobreviver, como o poder econômico, mas sobre as mentes pela produção e transmissão de idéias, de símbolos, de visões, de ensinamentos práticos, mediante o uso da palavra (o poder ideológico é extremamente dependente da natureza do homem como animal falante)”. Ver: BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Editora UNESP, 1997, p.11.
[2] SARTRE, Jean-Paul. Que é Literatura. São Paulo: Ática, 1993, p.20.
[3] Idem, p.21.
[4] FREIRE, Paulo; SCHOR, Ira. Medo e ousadia – O cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 131.
[5] MARX, Karl. Teses Sobre Feuerbach. In: Marx & Engels, Obras Escolhidas, v. I. Lisboa: Edições “Avante”; Moscou: Edições Progresso, 1982, p. 03.
[6] SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994, p. 08.
[7] Idem, p. 14-15.
[8] Tocqueville, observa o Prof. Zevedei Barbu na apresentação de O Antigo Regime e a Revolução, definiu os intelectuais de sua época como “penseurs de cabinet”, isto é, críticos da sociedade tradicional, mas cuja alternativa se limitava a sonhos e fantasias. “Na visão de Tocqueville, o pecado capital cometido por essa intelligentsia foi o de pensar e escrever a respeito de uma nova sociedade sem possuir qualquer experiência em assuntos públicos. Assim, a intelligentsia constituía um protótipo de marginalidade, ficando sempre suspensa entre a sociedade real, que ela rejeitava, e a sociedade de seus sonhos, que era irrealizável”, comenta. (Ver: TOCQUEVILLE, Alex de. O Antigo Regime e a Revolução. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, p.16).
[9] Segundo GRAMSCI: “Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo e de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político: o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc., etc.” (In: GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a Organização da Cultura. São Paulo, Círculo do Livro, s. d., p. 7).
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