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domingo, 23 de janeiro de 2011

 

: "O Século XXI Amarelou
Rudá Ricci

Dirão que este artigo é saudosista. Não vou rebater. É bem provável. Mas ele pretende falar sobre como a política e a cultura brasileiras ficaram mais caretas e comerciais, como cederam às tentações da mesmice. E como se transforma transgressão em ordem sem que poucos saiam machucados. A inspiração veio de uma entrevista de Fernando Gabeira para a revista de Joyce Pascowitch. Embora a entrevista trate carinhosamente a figura de Gabeira, o texto não o perdoa. Sugere que nas diversas rodas do Rio de Janeiro se afirma que Gabeira “amarelou”, que ao perceber que seu passado e sua sunga de crochê tiravam votos do eleitorado conservador, resolveu forçar a barra e jogar fora sua ousadia. Gabeira tenta se safar deste rótulo e joga a batata quente nos colos de José Dirceu e Franklin Martins. Afirma que os seus dois adversários é que se esqueceram do que lutavam para se manter no poder. O que é uma péssima resposta e lembra o estilo texano, que responde uma pergunta com outra. Mas foi daí que nasceu a pista para este artigo. José Dirceu e Franklin Martins teriam, efetivamente, jogado fora seu passado. Mas Gabeira também. O que teria acontecido dos anos 1980 para cá? Esta pergunta me martelou a cabeça após ler a entrevista. Por qual motivo, afinal, o início do século XXI parece um caso de “amarelamento” geral, tanto na política, quanto na cultura.

Começo pelo saudosismo. O que foram os anos 1980 para o Brasil? Uma descarga emocional fortíssima, uma catarse, que possivelmente não envolveu a maioria da população, mas grande parte dos até então clássicos formadores de opinião. Por este motivo, os meios mais intelectualizados lideraram as mudanças mais profundas. Foi uma década com sinais trocados. De um lado, a libertação do país de uma ditadura que cerceou comportamento, pensamento e ação de qualquer natureza contestatória. Não apenas cerceou, mas perseguiu e aniquilou. O que motivou Leonel Itaussu a afirmar que não tivemos, naquele momento, uma redemocratização, mas uma liberação pelo alto. Mas de outro lado, o Brasil se viu mergulhado em uma crise econômica profunda que começava a trilhar pela mudança da base tecnológica. Era o início da era da informação, da velocidade da biotecnologia e robótica. Para a economia, a década foi denominada de “perdida”. Mas não foi, nem de longe, perdida, como nenhuma década foi na nossa história. Enfim, a possibilidade de mudança a partir de um cenário de crise e contenção.
Uma década que começou com o atentado do Riocentro e que passou, já na sua metade, pelo trauma da morte de Tancredo Neves, fechando com a promulgação de uma nova Constituição Federal.
Os dois pólos, da liberação de costumes e da política e, de outro, de cerceamento econômico e mudanças sociais causadas pelas inovações tecnológicas, se conflitaram durante todo o período.
Os anos 1980 foram explosivos. Neles emergiram os novos movimentos sociais, tendo no local de trabalho e moradia seu lócus. Que tiveram na autonomia a senha de seu comportamento, desconsiderando autoridades públicas e temendo fóruns de negociação permanente como passíveis de cooptação. Uma reação politicamente adolescente, de auto-afirmação. Novos movimentos sociais que impuseram uma lógica política distinta da tradicional em nosso país, a tomada de decisão em assembléias, a democracia participativa como contraponto à representativa. Mais tarde, o conceito ficaria mais nítido como democracia deliberativa e não apenas participativa, porque se contrapõe ao elitismo democrático, limitado ao seu formalismo. E porque a forma se relaciona justamente com o resultado desejado. O método era a política, enfim. Mas ainda levava o toque adolescente, tribal. Os novos movimentos sociais eram comunitários. Almejavam uma grande comunidade de excluídos. Um grande Woodstock. Sendo um mundo paralelo, não dialogava com o mundo institucional. Antes, o pressionava na sua direção, na sua aceitação. Mas não logrou se constituir como alternativa de poder. E o método não se constituiu em estrutura social e política. Permaneceu como método.
Mesmo assim, naquela década, o paralelo parecia campear o novo na política. As oposições sindicais criaram estruturas paralelas, ou mesmo para-sindicais, contestando hierarquia e sistemas de financiamento da estrutura sindical oficial (em especial, o imposto sindical). A CUT, inclusive, nasceu a partir de um racha entre forças sindicais, até então acolhidas nas CONCLATs, em função da legitimação das oposições sindicais como organizações de representação sindical.
Mas não foi só de movimento social que a década de 1980 se alimentou. Foi também a década da descoberta da rua e de suas diferenças. Foi a década da campanha pelas diretas, do orçamento participativo. Nada mais lógico, portanto, que lutas contra as paredes e apartheid. E o movimento antimanicomial foi, neste sentido, uma das expressões mais fortes desta lógica. Lógica que trouxe consigo Arrigo Barnabé e os experimentalismos musicais, Wilhelm Reich, Félix Guattari, as exibições de filmes de Zé Celso sobre as revoluções africanas da década anterior, o Rock in Rio, o Sambódromo, e as bandas de rock (Legião Urbana, Ultraje a rigor, Engenheiros do Hawaii, Titãs, RPM) e sua MTV. Mas, possivelmente, a expressão mais nítida de comportamento do período tenha sido as rave. Porque ela exprime uma contradição específica: a da permissividade à loucura e prazer em dimensões privadas, mas permitidas pela ordem, envolvendo uma massa de jovens que procura superar a noção de tempo. Nem dia, nem noite, nem mesmo a separação entre dias, a rave se estende até onde o cansaço e o extasy permitirem. Tenho a impressão que as raves encerraram a festa iniciada em 1968, embora tenham uma intenção próxima. A diferença é que, agora, a linha de separação entre espaços públicos e privados é quase invisível. Mais: nas raves, muitas vezes, o espaço público era capturado pela alegria privada, ocupando e fechando hotéis, sítios, praias, imensos espaços. O privado queria ganhar as ruas, se revelar. Esta parece ter sido a intenção inconfessa de Caio Fernando Abreu ou Marcelo Paiva, dois ícones da década.

Contudo, pela situação sombria da economia, a explosão de luz da cultura e política foi se dissipando. É verdade que o fim da ousadia também teve na AIDS um de seus pilares. Mas não só. Pelo caminho da reengenharia, Margaret Thatcher e Ronald Reagan se transformaram em referências da ação governamental. Chegamos a ler nos jornais que o mercado era a expressão mais democrática de todas dimensões sociais, justamente porque a relação se dá entre iguais (sic): consumidores e fornecedores do desejo privado. Norberto Bobbio foi um dos poucos a ter a coragem de sustentar que tal formulação colocava em risco a própria democracia, porque desconsiderava o papel do Estado e gasto público como movidos pela demanda de segmentos populares que se sentiam excluídos socialmente. Estado, nos lembrava, não é empresa, não vive de contas que se encaixam, não tem como planejar desconsiderando a tortuosa aventura humana. Caminhávamos, pela economia que engolia os governos, para um mundo com parte da humanidade considerada como supérflua. Um ex-primeiro ministro alemão chegou a formular esta tese, com todas as letras, numa visita ao Brasil.

E foi por aí que a caretice foi tomando lugar e destruindo a ousadia. Foi por aí que a música experimental foi banida de vez e o consumo fácil de massas entrou pelas janelas, portas da frente e dos fundos. Foi por aí que entrou a cultura country, este jeito do agronegócio dize que é chique e nada tem a ver com a cultura caipira. Porque, como Carlos Rodrigues Brandão nos ensinou num texto delicioso, a cultura caipira é um amálgama de saberes religiosos, da lógica dos ecossistemas, algo original. Mas a cultura country é algo no mínimo estranho às nossas tradições. Nada que a desobrigue a ingressar no nosso mundo. Afinal, a cultura, como tudo o que é produzido pela humanidade, é dinâmica. E a fila andou. Mas andou para o conservadorismo. Para a ira e o reacionarismo estampados nos ataques sem propósito de Caetano Veloso – muitas vezes corrigido por sua mãe – ou de Ferreira Gullar. Uma fila que alçou à condição de insights geniais meros artigos opinativos de Arnaldo Jabor. Ou mesmo os textos do bem intencionado Paulo Coelho. Artigos e textos que lembram aqueles que se escrevem quando acordamos, registrados nos diários pessoais. Mas, como já comentei acima, na virada dos anos 80, o mundo privado tentou invadir os espaços públicos. Mantendo sempre os “direitos” do mundo privado. É desta linhagem mais uma contradição pós-80: a internet e as redes sociais. As structural holes já formam opinião, mas mantém os direitos do mundo privado. É a falsa intimidade deste século estranho que mal começou.

Se nos hábitos e comportamentos sociais ficamos mais caretas, o que dizer da política. A ousadia se transmutou em correção da ordem. A velha aparência de transgressão sem romper com a ordem. Como sugerir algo distinto de um período que tinha Raúl Afonsín, Brizola, Gorbachev, Ulysses Guimarães, Papa João Paulo II, Tancredo Neves, Ronald Reagan, Lech Walesa, Indira Gandhi, para um século que se inicia com Berlusconi e Sarkozi, José Serra e Dilma Rousseff, Bento XVI e outros quetais?
Como explicar como PT e PSDB se parecem tanto e assumiram o rumo do país? E como explicar que os dois partidos tentam, desesperadamente, aparentar diferença? E, ainda: como explicar que os eleitores ainda caem neste jogo de aparência e não percebem que são o mesmo com tons levemente distintos? Como explicar que tantas ONGs, antes baluartes da contestação, se tornaram eficientes empresas que oferecem serviços terceirizados a baixo custo (para governos de todos tipos e estilos)?

Como dizia Vianinha: nem tudo que é novo é revolucionário! Demos um passo para trás.

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