Justiniano Clímaco nasceu preto e pobre e se tornou doutor
      sab, 31/08/2013 - 15:03              
Espetáculo  patético. Médicos estrangeiros são obrigados a cruzar um corredor  polonês de manifestantes em jalecos brancos gritando slogans que julgam  ser de grande elevação espiritual - "Revalida!", "volta pra casa",  "escravo, escravo...". A nau dos insensatos parecia ecoar no dia  seguinte, na imagem publicada de um médico cubano, negro, visivelmente  constrangido pelo protesto de que era alvo, em Fortaleza. E as  insanidades prosseguiram: da tuiteira que indaga como lidar com médicas  parecidas a domésticas a comentaristas tratando os vaiados como "agentes  cubanos". É triste, bate até um desalento. Não funciona dizer que é  culpa do governo, saída fácil a escamotear o pior. Trata-se de  preconceito. 
Sabemos  não é de hoje que a medicina no Brasil se fez uma profissão tão branca  quanto a roupa que distingue seus profissionais - apenas 1,5% deles se  declaram negros, segundo o IBGE. Dado estatístico, de uma constatação  empírica - afinal, quantos clínicos ou cirurgiões negros você conhece?  Não é de hoje que este país sofre da má distribuição de seus médicos, o  que faz com que vastidões continuem desassistidas para o atendimento  básico, o que dizer então dos casos em que se requer atendimento  especializado. Como não é de hoje que, embora tenhamos o SUS, predomina  em nossas vidas, bem como em nossas expectativas de futuro, a visão  mercadológica da medicina, no sentido de que o melhor estará sempre  reservado a quem pode bancar. Mas, ainda que saibamos de tudo, vale  indagar se os atores do protesto terão vaiado apenas os profissionais de  fora, inscritos no programa oficial.

 Farmácia  Maria Isabel na Avenida Paraná em Londrina. Na porta, o médico Dr.  Justiniano Clímaco da Silva. Década de 1940. Autor:  desconhecido.  Fonte: História de Londrina
Saiu  vaiada a medicina social brasileira. Como saíram vaiados profissionais  que deram e dão duro para fazer com que a saúde seja um direito de todos  neste país. Hoje pretendo usar este espaço para lembrar de um deles,  por coincidência negro e, mais coincidência ainda, neto de escravos.
Chamava-se  Justiniano Clímaco da Silva, mas a clientela o tratava como "Doutor  Preto". Fez história no Paraná, precisamente em Londrina, onde trabalhou  até morrer, em 2000, aos 93 anos. Destacou-se numa cidade muito pobre  até idos de 1930, depois enriquecida pela cafeicultura - cidade em cujos  anais consta a saga vitoriosa dos colonos brancos, de origem europeia,  nem tanto a força de trabalho dos negros libertos. E não foram poucos -  no século 19, os escravos representavam 25% da população do Estado.
Pois  bem, Justiniano Clímaco nasceu preto e pobre em Santo Amaro da  Purificação, na Bahia, em 1908. Filho de carpinteiro e criada doméstica,  cismou de imitar o Dr. Bião, médico da cidade. Queria ser como ele.  Então virou preto, pobre e pretensioso. Tanto fez que lhe arrumaram  estudos num seminário e cama na casa de uma tia em Salvador. Daí, preto,  pobre, pretensioso e persistente, não virou padre, mas bacharel em  Ciências e Letras. Depois virou professor do ginásio, deu aulas de  matemática e latim, o que pagaria o preparatório para a Faculdade de  Medicina da Bahia. Entrou. Fez o curso. Formou-se em 1933 numa classe  com 95 alunos, contabilizados aí uma única mulher e ele, o único negro.  Topou com a notícia de que a Companhia de Terras Norte do Paraná, firma  inglesa que loteava uma vasta área do Estado, recrutava braços para a  lavoura, apesar do avanço do tifo e da febre amarela. Pensou: se tem  doença, precisa de médico. É lá que eu vou.
Assim  começa a maior viração do Doutor Preto, 50 anos de clínica, mais de 30  mil pacientes, fundador de hospitais na região e tema de trabalho  acadêmico de Maria Nilza da Silva, da Universidade Estadual de Londrina  (UEL). A pesquisa da socióloga, da qual participou a aluna Mariana  Panta, dá conta de um "escravo da medicina", usando expressão do médico  cubano vaiado em Fortaleza. Justiniano Clímaco chegou em 1938 a uma  Londrina sem luz elétrica para acionar o infravermelho que trouxe de  Salvador. Fervia e flambava os próprios instrumentos, não tinha raio X,  anestesiava os pacientes com máscaras de clorofórmio, rastreava tumores  por apalpação, ouvia pulmões e corações longamente. Dizia: "Clínica  geral tem que ser feita assim: sem pressa". Foi pioneiro no uso da  penicilina ao tratar doenças sexualmente transmitidas, que proliferavam  numa fronteira agrícola com gente de tudo quanto é lugar. Com o tempo,  arrumou um Ford 28 para atender na roça e levar casos graves até  Curitiba - 400 quilômetros por terra, dois dias de viagem.
Cobrava  de quem tinha para pagar. E aceitava uma leitoinha, ou um queijo  caseiro, por serviços prestados. Da clínica que abriu inicialmente, Casa  de Saúde Santa Cecília, passou a se articular com os mais influentes  para criar instituições como a Santa Casa de Londrina e a Sociedade  Médica de Maringá. Chegou a arrancar do presidente Dutra os tostões  necessários para um hospital de tuberculosos em Apucarana, depois  transferido para Londrina. Hoje ali funciona o Hospital Universitário,  centro de referência médica do norte do Paraná. Um belo dia Doutor Preto  achou que seria bom provar do poder. Disputou uma vaga como deputado  estadual, foi o quinto mais votado, mas odiou os anos na política,  vividos solitariamente numa pensão em Curitiba. Queria voltar para a  clientela. E dela não mais se separou.
Voltou  também para a garotada do ginásio, ele que se tornara poliglota -  falava além de grego e latim, alemão e francês. Perguntavam-lhe por que  dar aulas, afinal, já suava o jaleco. "Docendo discitur", respondia.  Ensinando é que se aprende. Só um dia perdeu as estribeiras com  paciente.
O  sujeito marrento o interpelou no corredor do hospital, perguntando pelo  Doutor Clímaco. Ouviu um naturalíssimo "sou eu". E rebateu com um  insultuoso "não vem não, negão, vai logo chamar o médico". Preconceito  não só fere, como turva os sentidos. Justiniano Clímaco agarrou o homem e  jogou-o no rua. Sem consulta. Fez cardiologista seu único filho,  adotivo, e doou tudo para a cidade, inclusive a maleta de médico. A casa  onde morou até morrer foi derrubada, mas seu nome continua de pé numa  unidade básica de saúde. Neto de escravos, Doutor Preto teria algo a  dizer aos médicos brasileiros que hoje vaiam médicos cubanos.
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