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quinta-feira, 1 de maio de 2014

Contabilidade tétrica, por Luis Fernando Veríssimo

Blog de Ricardo

Contabilidade tétrica, por Luis Fernando Veríssimo

Quem
defende as barbaridades cometidas pelo o regime militar no Brasil
costuma invocar os mortos pela ação dos que contestavam o regime. Assim
reduz-se tudo a uma contabilidade tétrica: meus mortos contra os seus.

Pode-se
discutir se a luta armada contra o poder ilegítimo foi uma opção
correta ou não, mas não há equivalência possível entre os mortos de um
lado e de outro. Não apenas porque houve mais mortes de um só lado, mas
por uma diferença essencial entre o que se pode chamar, com alguma
literatice, de os arcos de cumplicidade.

O arco de cumplicidade
dos atentados contra regime era limitado à iniciativa, errada ou não, de
grupos ou indivíduos clandestinos. Já o arco de cumplicidade na morte
de contestadores do regime era enorme, era o Estado brasileiro.

Quando
falamos nos “porões da ditadura” onde pessoas eram seviciadas e mortas,
nem sempre nos lembramos que as salas de tortura eram em prédios
públicos, ou pagas pelo poder publico — quer dizer, por todos nós.

A
cumplicidade com o que acontecia nos “porões” em muitos casos foi
consentida, mesmo que disfarçada. Ainda está para ser investigada a
participação de empresários e outros civis na chamada Operação
Bandeirantes durante o pior período da repressão, por exemplo. Mas a
cumplicidade da maioria com um Estado assassino só existiu porque o
cidadão comum pouco sabia do que estava acontecendo.

A
contabilidade tétrica visa a nivelar o campo dessa batalha retroativa
pela memória do país e igualar os dois arcos de cumplicidade. Não
distingue os mortos nem como morreram. Todas as mortes foram
lamentáveis, mas os mortos nas salas de martírio do Estado ou num
confronto com as forças do Estado na selva em que ninguém sobreviveu ou
teve direito a uma sepultura significam mais, para qualquer consciência
civilizada, do que os outros. O que se quer saber, hoje, é exatamente do
que fomos cúmplices involuntários.



Luis Fernando Veríssimo é escritor.

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