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domingo, 9 de agosto de 2015

Frei Betto

'Eu temo que a presidente Dilma renuncie', diz frei Betto - 09/08/2015 - Poder - Folha de S.Paulo



'Eu temo que a presidente Dilma renuncie', diz frei Betto


Ricardo Mendonça













Amigo da presidente Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula, de quem foi
assessor especial no início do mandato, Carlos Alberto Libânio Christo, o
frei Betto, já admite temer pela renúncia da mandatária, hoje com o recorde de 71% de reprovação no Datafolha.





"A minha pergunta íntima hoje não é o impeachment [...] É se a Dilma,
pessoalmente, aguenta três anos pela frente", afirma ele. "Ou ela dá uma
mudança de rota [...] ou ela pega a caneta e fala 'vou pra casa, não
dou conta'. Eu tenho esse temor", completa.





Embora avalie o período petista como "o melhor da história republicana",
o frei dominicano faz severas críticas ao partido –"trocou um projeto
de Brasil por um projeto de poder"– e uma distinção especial ao atual
mandato de Dilma: "Eu não sei o que de positivo a Dilma fez de janeiro
para cá".





Frei Betto diz que está esperando até hoje o PT se manifestar sobre a existência ou inexistência do mensalão.





Com reparos, elogia a Operação Lava Jato,
"extremamente positiva", e diz que se sentiu "indignado" com a notícia
de que o ex-ministro José Dirceu faturou R$ 39 milhões ao mesmo tempo em
que promovia uma vaquinha para pagar a multa da condenação do mensalão.




*
Folha - Estão convocando mais uma manifestação contra Dilma para o
dia 16. A principal pauta, ou uma das principais, é o impeachment de
Dilma. O que acha?


Frei Betto - Eu acho que manifestação é sinal da democracia. Pena
que a esquerda aprenda com a direita algumas coisas ruins que a direita
faz. Deveria aprender as coisas boas –as poucas coisas boas– que a
direita faz. Como convocar manifestações para domingo, não para o dia de
semana, o que a esquerda tem feito [uma outra manifestação, com apoio
do PT, deve ocorrer no dia 20, uma quinta]. Dia de semana? Uma burrice.
Atrapalhando o trânsito, como naquela música do Chico Buarque. Não tem
sentido, né? Faz no domingo, não tem escola, as pessoas podem sair de
casa, estão disponíveis. Pena que a esquerda não aprenda com a direita
as coisas boas.





E o impeachment?

Olha, a minha pergunta íntima hoje não é o impeachment. Eu acho que
democracia brasileira está consolidada, não há motivo para impeachment. A
minha pergunta é outra. É se a Dilma, pessoalmente, aguenta três anos
pela frente. Eu temo que ela renuncie.





O senhor tem algum sinal disso?

Não. É puramente subjetivo. Mas temo que ela renuncie. Ou ela tem uma
mudança de rota ou eu me pergunto se ela vai aguentar o baque
psicológico de três anos e meio [pela frente] com menos de 10% de
aprovação, com 71% dizendo que o governo é ruim ou péssimo. Isso é um
sinal de que você não está agradando nada. Não adianta fazer cara de
paisagem. Alguma coisa tem de ser feita. Ou ela dá uma mudança de rota,
muda a receita do ajuste etc., ou ela pega a caneta e fala "vou pra
casa, não dou conta". Eu tenho esse temor.





Há um relato, publicado anos atrás pelo jornal "Valor", de que no
auge da crise do mensalão, em 2005, a Dilma, ministra da Casa Civil,
teria sugerido ao Lula que renunciasse.


Eu não acredito nisso. Até porque o Lula saiu com 87% de aprovação.





Depois, né? Naquele instante, quando Duda Mendonça foi à CPI dizer
que tinha sido remunerado no exterior com dinheiro de caixa dois do PT,
ninguém imaginava que o Lula iria recuperar a popularidade do jeito que
recuperou.


É... Se isso é verdade [a sugestão de Dilma para Lula renunciar], reforça o meu receio.





No cenário atual, que combina crise política com estagnação
econômica, denúncias de corrupção e baixa popularidade de Dilma, o que
mais atormenta o senhor?


O Brasil está vivendo uma notória insatisfação, não só com o governo.
Insatisfação com a falta de utopias, de perspectivas históricas, de
ideologias libertárias. Desde 2013, quando houve aquela grande
manifestação atípica. Porque não houve nenhum partido, nenhuma
liderança, nenhum discurso [em junho de 2013]. E foi uma enorme
manifestação em que as pessoas protestavam, havia protesto, mas não
havia proposta. Isso chamou muito a minha atenção. E quando –isso é até
terapêutico– a gente entra em amargura e não vê solução, não vê saída, a
gente não consegue equacionar racionalmente o que está vivendo. Não
consegue buscar as causas e as perspectivas. Fica tudo no emocional. Eu
tenho dito a amigos que a minha geração viveu grandes divergências
políticas na ditadura, mesmo entre a esquerda, divisão se siglas de A a
Z. Mas o debate era racional. Debatia-se em cima de projetos, programas,
perspectivas históricas. Hoje, o debate é emocional. É como briga de
casal em que o amor acabou. Equivale a acelerar o carro no atoleiro de
lama: quanto mais acelera, mais se afunda na lama. Estamos vivendo isso.





E o governo?

O governo, que eu considero o melhor de nossa história republicana –os
dois do Lula e o primeiro da Dilma– teve grandes méritos, como a
inclusão econômica de 45 milhões de brasileiros; e teve grandes
equívocos, como a não inclusão política. Ao contrário do que a Europa
fez no começo do século 20, o governo do PT propiciou, ao conjunto da
população brasileira, acesso aos bens pessoais, quando deveria ter
iniciado pelo acesso aos bens sociais. A metáfora que utilizo é o
barraco da favela. Ali dentro a família tem computador, celular, toda a
linha branca, fogão, geladeira, micro-ondas, e, no pé do morro, tem um
carrinho, devido à facilidade do crédito. Mas a família está na favela.
Não tem saneamento, não tem moradia, não tem transporte, não tem saúde,
não tem educação, não tem segurança. Resultado: criou-se uma nação de
consumistas, não de cidadãos.





O senhor falou em melhor governo da história republicana e mencionou
os dois mandatos do Lula e o primeiro da Dilma. E o segundo da Dilma?


Esse segundo, até agora, eu não tenho nenhuma notícia boa para dar. Eu
não sei o que de positivo a Dilma fez de janeiro para cá. Gostaria que
alguém dissesse. O ajuste é necessário? É necessário. Mas o ônus é só
sobre o trabalhador. E fica a dúvida se vai dar certo. É um país com um
mercado interno fantástico, mas que mantém a síndrome colonial de que a
gente tem de ser exportador de matéria prima, que deram o nome agora de
commodities. Equívocos. E o governo terceirizou a política para a troica
do PMDB –Temer, Cunha e Renan– e terceirizou a economia nas mãos de um
economista, o Joaquim Levy, notoriamente um eleitor do Aécio Neves.
Realmente fica difícil de acreditar que esse é um projeto do PT. Nunca
fui militante do partido, devo dizer isso. Também não sou fundador, como
alguns dizem por aí. Sempre fui eleitor. Mas nas últimas eleições eu
tenho dividido meu voto entre PT e PSOL.





O governo Lula foi um dos mais populares da história, e Dilma foi reeleita há menos de um ano. Por que o humor mudou?

Agora as pessoas estão com muita raiva porque não podem mais viajar de
avião como estavam viajando; comprar ou alugar um melhor domicílio, como
estavam fazendo; adquirir crédito sem juros altos; ir à feira com R$ 20
e voltar com a sacola cheia. Então a falha foi de quem? Na minha
opinião, a falha foi do governo que tinha a faca e o queijo na mão para
poder realizar aquele projeto mais original do PT, que era organizar a
classe trabalhadora. Leia-se: dar uma consistência política à nação
brasileira, principalmente às novas gerações. Isso não aconteceu.





Por que, na sua interpretação, as coisas sob o PT se desenvolveram
dessa forma, a opção pela promoção do consumo, e não da outra?


Porque o PT perdeu o horizonte histórico. O horizonte que ele tinha nos
seus documentos originários. De transformação, de realizar as reformas
relevantes.





Mas em que instante isso se perdeu?

Ah, no momento em que chegou ao poder. Foi quando ele trocou um projeto
de Brasil por um projeto de poder. Manter-se no poder passou a ser mais
importante do que realizar as reformas importantes e necessárias para o
país. Como a reforma agrária, a tributária, a educacional, a sanitária
etc. Em 12 anos, a única reforma que nós temos é a anti-reforma política
do Eduardo Cunha (atual presidente da Câmara).





Por quê o PT não fez essas reformas?

É porque tinha medo de perder aliados, não soube assegurar a
governabilidade pelo andar de baixo. Procurou assegurar pelo andar de
cima. Se tivesse seguido o exemplo do Evo Morales (presidente da
Bolívia), que hoje tem 80% de aprovação, é o segundo presidente mais
aprovado da América Latina, depois do presidente da República
Dominicana. No início ele não tinha apoio nem do mercado nem do
Congresso; buscou assegurar a governabilidade por meio dos movimentos
sociais. Hoje ele tem apoio dos três.





Teve medo de adotar esse caminho?

Foi uma estratégia equivocada de se manter no poder. "Vamos fazer
aliança com quem tem poder, nós estamos no governo". Uma coisa é estar
no governo, outra é estar no poder. Isso deu certo por um tempo. Só que
há uma questão aí de classe que é arraigada na estrutura social
brasileira. E de repente os setores conservadores, vendo que não há
proposta, vendo que não há perspectiva histórica, resolveram avanças. É
este instante. Até o Lula foi vítima agora. Não de um atentado político.
Mas de um atentado terrorista. Isso [uma bomba lançada no Instituto
Lula dias atrás] é um atentado terrorista. Jogar uma bomba em cima de um
domicílio que está carregado de simbolismo político é um atentado
terrorista. Se isso estivesse acontecido na sede do partido Democrata
dos Estados Unidos –ou no escritório do Bill Clinton (ex-presidente dos
EUA), uma boa comparação– no dia seguinte o mundo inteiro estaria
dizendo: "Bill Clinton sofre atentado terrorista". Evidente que a
imprensa brasileira não quis dar destaque, uma certa imprensa. Por um
lado alguns chegaram a insinuar que o próprio PT teria feito essa bomba
para tentar vitimizar o Lula e o partido. O mais grave é isso. Não se
deu o devido destaque talvez porque não interessa. Só interessa que o
Lula venha a aparecer como o acusado da Lava Jato, não como vítima de um
atentado terrorista.





O senhor é amigo do Lula, tem essa relação histórica. Virou alvo de hostilidades?

Uma coincidência. Eu fiz dois lançamento de livro na última semana, um
no Rio, na segunda, e outro em Belo Horizonte, na terça. Nos dois o
pessoal da direita foi lá para perturbar.





O que fizeram?

No Rio foi um oficial de corveta da Marinha, segundo ele, dizer que
estava me levando um abraço do Olavo de Carvalho. Eu disse: "Abraço de
urso, pode devolver". Olavo de Carvalho considera a Rede Globo
comunista; o papa Francisco, então, não é nem comunista para ele, é a
encarnação do diabo. E no fim o cara já estava dizendo "ah, você é um
frade de araque". Aí eu falei que não admitia, falei "ponha-se para fora
daqui". Então os amigos, as amigas principalmente, enxotaram o cara. Em
Belo Horizonte foi o pessoal do movimento patriota, com cartazes
anti-comunistas e um livro pesadão chamado "O livro negro do comunismo".
Foram para aprontar, mas ali também a turma, meus amigos de lá,
intervieram e eles não conseguiram fazer.





Ex-ministros foram xingados em restaurantes também...

Exatamente. Estamos vivendo uma onda raivosa. É por falta de consciência
política da nação, de conscientização. Os partidos viraram partidos de
aluguel, a política se mediocrizou e a Lava Jato está expondo os poderes
de como se move o poder no Brasil, entre as benesses políticas e as
conquistas econômicas.





O senhor disse que o PT, ao chegar ao poder, não seguiu o que diziam
seus textos originais. O senhor classifica isso como uma traição?


Não. Não é traição.





Não?

Não. Eu considero isso um desvio de rota.





O senhor disse que não aplicou os textos originais.

Sim, é isso que eu falei. Mas traição, para mim, é outra coisa, é uma
palavra que tem um peso muito grande, não se adequa ao que estou
dizendo, ao meu discurso. O que considero é que houve um desvio de rota.
Trocou-se o projeto de Brasil, uma mudança de estrutura. Trocou-se a
reforma agrária e outras, que eram consideradas prioritárias, por um
projeto de preservação no poder. Aquilo que o próprio Lula chegou a
dizer na reunião com religiosos. Eu não estava nesse reunião. Ele disse:
"o PT só pensa em cargos". Ele disse a mesma coisa, mas em outras
palavras. Isso eu analisei em dois livros, "A mosca azul" e "O
calendário do poder". Foi o meu balanço.





E o que seria uma traição?

Eu não sei porque você está falando em traição.





Ué, o senhor disse que não considera uma traição. No seu entender, o que configuraria uma traição?

Traição seria se o PT tivesse... chamado o FMI para administrar o
Brasil. Sei lá. Se tivesse priorizado as relações com os Estados Unidos.
Se tivesse deixado de fazer a Comissão da Verdade.





Eu li recentemente que o senhor teve uma conversa longa com o Lula...

Sou amigo do Lula, sou amigo da Dilma.





Sim, mas o senhor colocou para eles desse jeito?

Claro, desse jeito. Eu coloco publicamente. Eu fui lá conversar com a
Dilma em 26 de novembro, com Leonardo Boff e outros. Entregamos um texto
nas mãos dela. Ficamos 1 hora e 10 minutos. Estava ela e [Aloizio]
Mercadante (ministro da Casa Civil).





E como eles reagem a esse tipo de crítica?

Eles aceitam. Agradecem: "obrigado por vocês terem vindo aqui, vamos ver
se podem voltar em seis meses para conversar". Mas fica nisso. E depois
fazem tudo diferente. Sabe? O que você quer que eu faça? Deite e chore?
Foi uma conversa ótima. Aí ela aceitou tudo aquilo, a gente falando da
importância de reforma agrária, de quilombos, de povos indígenas, o
papel da mulher, programas sociais, não poder fazer cortes em setores
como educação e saúde. Aí respondem tudo: "é, é isso mesmo, também estou
pensando..." E está lá. O texto está lá, tenho decorado na minha
cabeça. Eu tenho uma boa relação com os dois [Dilma e Lula]. Eu falo
tudo. Eles aceitam. O Lula também. Às vezes fala que a culpa de não é
dele, a culpa é não seu de quem, é do partido, é da Dilma, é da
conjuntura; e aí também fala "mas a gente também fez...".





E continua tudo igual?

Eu tenho uma vantagem que é seguinte: eu sou um um sujeito que tem
poucas vaidades. Uma delas é ambição zero. Aliás eu lembrei isso pro
Lula. Eu falei: "Lula, você me conheceu em 1979, o padrão de vida que eu
tinha é o padrão de vida que eu tenho. Eu moro no mesmo quartinho no
convento, se você quiser eu te mostro, moro no mesmo lugar, tenho o
mesmo carro Volkswagem, enfim, não mudei nada. Agora, eu fico espantado
com companheiros que a gente conheceu lá atrás e que hoje tem um...
sabe?". Então teve um descolamento da base. O PT perdeu os três grandes
capitais que ele tinha. Que eram ser o partido dos pobres organizados
–porque hoje ele tem eleitores, não tem militantes, ele tem de pagar
rapazes e moças desocupadas para segurar bandeirinha na esquina, quando
tinha uma militância aguerrida voluntária. Perdeu esse capital. O
segundo capital que ele perdeu é o de ser o partido da ética. Não é? A
ideia do "não seremos como os demais". E o terceiro capital era o de ser
o partido da mudança da estrutura do Brasil. Não fez nenhuma mudança
estrutural. Fez muita coisa? Fez. Programas sociais; Bolsa Família,
embora eu discorde –o Fome Zero era emancipatório, foi trocado pelo
Bolsa Família, compensatório–; programas da educação; cota; Fies; uma
série de coisas excelentes. Política externa nota 10, na minha opinião,
mas sem sustentabilidade.





E meio ambiente?

Ah, aí faltou muito. Aí eu dou nota... seis. Defesa da Amazônia, não trabalhou suficientemente na questão do meio ambiente.





O senhor falou desse espanto da mudança dos ex-companheiros. Como vê, especificamente, o caso do ex-ministro José Dirceu?

Eu acho um abuso você prender um preso. O cara estava preso, mandaram
prender novamente. Não precisava. Aquela coisa: transfere, Polícia
Federal, televisão. Eu acho isso um abuso de autoridade. Embora eu ache a
Lava Jato extremamente positiva –era preciso vir uma apuração da
corrupção no Brasil séria como tem sido feita–, tem coisas que me
desagradam. O partido mais envolvido é o PP. Mas parece, na opinião
pública, que é só o PT. Segundo: por que é que vazam todos os conteúdos
em relação ao PT e porque é que vazam exclusivamente para a revista
"Veja"? É chamar a gente de idiota. Ou seja: há uma operação política
por trás, de abuso desse processo. Que é um processo sério de apuração
da corrupção no Brasil.





Mas e o caso específico do José Dirceu?

Eu nunca me pronunciei, você não vai encontrar uma palavra minha em
entrevistas, nos artigos, dizendo se houve ou se não houve mensalão. Eu
estou esperando o PT se posicionar. Se houve ou se não houve. E fico
indignado pelo fato de o partido não se posicionar. E não se posicionar
diante de uma figura tão importante do partido como ele [Dirceu]. Então
não tenho meios de julgamento. Que eu sei que há corrupção na política
brasileira, sei. Mas eu não tenho provas. Eu saí do governo sem perceber
se havia mensalão. Saí em dezembro de 2004, o mensalão apareceu em maio
de 2005. Várias pessoas me perguntaram: "você tinha algum indício?"
Nenhum. Não vi nenhum indício.





Um aspecto que chamou a atenção é que o José Dirceu faturou R$ 39
milhões com a sua consultoria, parte disso no instante em que estava
preso, foi um argumento para essa nova prisão, mas coincide também com
aquela vaquinha para pagar a multa do mensalão.


Pois é. Eu fico indignado. Se é verdade que ele tem tantos milhões na
conta, eu não posso entender como é que ele promoveu a vaquinha. Aliás,
tenho amigos que contribuíram com a vaquinha. Estão sumamente
indignados. Eles se sentem lesados.





O ex-presidente Lula já falou criticamente sobre o afastamento entre o PT e os movimentos sociais. Por que ocorreu isso?

Ocorre no momento em que o PT faz a opção da "Carta ao Povo Brasileiro",
no primeiro governo do Lula. Era uma carta aos banqueiros e
empresários. Ali ficou sinalizado: "queremos assegurar a governabilidade
via elite, não via a nossas origens, que são os movimentos sociais". Aí
cria-se o Conselhão, para o qual são chamados líderes dos movimentos
sociais. Acontece que só o empresariado tinha voz e vez ali dentro. E
aos poucos esses líderes [dos movimento sociais] foram todos deixando. E
depois o Conselhão, que era um conselho de consulta e debate, passou a
ser um mero auditório de anuência dos anúncios da Presidência. E hoje
ele sequer existe. Ou seja, esse diálogo mínimo com a sociedade civil...
É o que a Dilma deveria fazer. Ela deveria criar um conselho político.
Porque isso não é um gesto de extrapolação. Está previsto na
Constituição de 1988, está normalizado isso. O Lula fez. Não como
deveria. Deveria ter sido mais democrático, o pessoal dos movimentos
sociais deveria ter mais espaço, mas ele fez. Nessa crise, não adianta a
Dilma passar a mão na cabeça do Temer. Ela tinha que ouvir a sociedade.
Tem de sair do palácio, sair da toca.





Perde contato com a realidade?

Outro dia eu fui para Irati, no Paraná, 14º encontro de agroecologia.
Eram 4.000 pequenos agricultores do Brasil. A Dilma ia. A Dilma não foi.
Ela não tem ideia do que ela perdeu ali. Lá, quando eu cheguei,
dizia-se que era o mau tempo. Não é verdade porque o Patrus (Ananias)
foi. Então se o jatinho da FAB do ministro desceu, o jatão da presidenta
poderia descer. Mas não importa. Não foi. Então ela tem de sair da
toca, dar a volta por cima. Ela está acuada. Não encara a nação, não vai
nos movimentos sociais.





Medo de ser vaiada?

Não pode ter medo. Uma figura pública, medo de nada. Tem de ir, se
expor. Não tem como. Você é uma pessoa pública. O Lula promoveu não sei
quantos daqueles conselhos nacionais de saúde, de educação. Era hora da
Dilma fazer isso. Está aí o PNE, o Plano Nacional de Educação. Era para
ter um debate sobre a implantação do PNE. No entanto, a notícia que a
gente recebe é de cortes na educação. Ainda mais usando o lema que ela
achou, "pátria educadora". Isso tudo explica porque é tão baixa a
aprovação dela.





O senhor é religioso. Que avaliação faz do avanço eleitoral e,
principalmente, do comportamento da bancada evangélica no Congresso?


Penso que está sendo chocado o ovo da serpente. Uma das conquistas da
modernidade, importantíssima, é a laicização do Estado e dos partidos.
Essa bancada está querendo confessionalizar a política. Explico: eu sou
padre ou pastor de uma igreja que considera pecado o cigarro e a bebida
alcoólica; e tenho a veleidade que toda a população nem tome bebida
alcoólica nem fume. Eu só tenho dois caminhos. O primeiro é converter
toda a população à minha igreja; isso é impossível. Mas o segundo é
possível: eu chegar ao poder e transformar o preceito da minha igreja em
lei civil. Como aconteceu nos EUA nos anos 20. E eu temo que o projeto
deles seja esse, de confessionalização da política. Uma forma de
fundamentalismo tupiniquim, altamente perigoso.





Exemplo?

Isso vai se manifestar agora no debate sobre ensino religioso. Minha
postura é simples: colégio religioso tem de ensinar religião da entidade
mantenedora, se é católico, judeu ou protestante. Bom, tem muito
colégio religioso que é mera empresa escolar. Aliás, os políticos mais
corruptos do Brasil saíram todos de colégios religiosos. É de se pensar:
que diabo andaram fazendo, que evangelização era essa? Mas, voltando,
no ensino público ou no particular laico, tem de ter o ensino das
religiões. Ou você pega o professor de história, que é qualificado para
isso, ou você chama o padre para falar do catolicismo, o pastor para
falar do protestantismo, o médium para falar do espiritismo, o pai de
santo para falar do candomblé. Mas não dá para pedir para o padre contar
o que é o espiritismo, porque aí vai ter preconceito. O que eles estão
propondo aí é transformar os colégios em caixa de ressonância de
pregações fundamentalistas, tipo criacionismo contra o evolucionismo.
Isso é danoso à nossa cultura, à nossa história, à nossa religiosidade.





E, na sua avaliação, porque os evangélicos cresceram eleitoralmente?

Para entender isso é preciso recorrer a um livro do início da
modernidade, fim da Idade Média, chamado "Discurso da Servidão
Voluntária" (Etienne de la Boëtie, 1530-1536). Mostra como é que a
cabeça de associação de pessoas é feita, de maneira que elas perdem
totalmente a consciência, o livre arbítrio, e se tornam cordeirinhos de
qualquer um que queira manipulá-las. É isso. Muitas igrejas transformam
seus fieis em cordeirinhos que, ameaçados pela teologia do medo, acabam
seguindo a voz do pastor naquilo que ele dita.





Nas últimas décadas, igrejas evangélicas tiraram, efetivamente,
muitos seguidores da Igreja Católica. Basta ver o Censo. É notável
também que, de maneira geral, o evangélico parece hoje bem mais
militante que o católico. É praticante. Qual é a sua explicação para
esse fenômeno?


Aí são dois fatores. Estudos estão mostrando isso: quando havia
Comunidades Eclesiais de Base havia menos evasão para as igrejas
evangélicas. Acontece que o papa João Paulo 2º e depois o papa Bento 16
fragilizaram as CEBs. Então hoje, o porteiro do prédio daqui da esquina,
a cozinheira da vizinha, a faxineira, elas não se sentem bem na Igreja
Católica. Se sentiriam nas Comunidades Eclesiais de Base, mas elas foram
desmobilizadas pela própria igreja, com medo se ser Teologia da
Libertação, influência marxista, progressista. Agora, com o papa
Francisco, elas estão renascendo.





Estão mesmo? Há sinais disso?

Estão. Teve um sinal bom em 2014, em janeiro, quando teve o 14º encontro
das CEBs em Juazeiro do Norte, eu estava lá, e o papa mandou um
documento saudando, foi muito importante. E apareceram 73 bispos. Há
muito tempo não apareciam tantos. Porque aí elas estavam no sinal
amarelo –elas nunca foram condenadas–, mas estavam no sinal amarelo e
agora passou para o verde. Agora, ainda você não tem o corpo, como tinha
nos anos 70 e 80, de bispos que invistam nisso. Ainda não tem. Os
bispos que temos aí ainda são todos os pontificado anterior: 36 anos de
João Paulo 2º e Ratzinger. A segunda razão é aquilo que o papa Francisco
denunciou na Jornada Mundial da Juventude. Houve uma burocratização da
fé. Uso a seguinte imagem: Se você for às 3h da madrugada numa igreja
evangélica, você é acolhido, tem alguém lá para te atender. Se você for
às 3h da tarde numa católica, está fechada, tem uma grade, o padre não
se encontra e não tem nenhum leigo autorizado, como tem nas evangélicas,
para te orientar e te acolher. Não dá para competir. Eles sabem fazer
um trabalho personalizado. Olha os cinemas que se transformam em
templos. Sabe como eu chamo isso? A boca canibal de Deus. Né? Está ali
na calçada; é só passar e ser sugado (risos). Na igreja Católica, não.
São distantes. Como é que uma igreja evangélica começa? O pastor vai lá e
aluga uma salinha de escritório. Põe lá uma dúzia de cadeiras, uma mesa
e pronto, vira um mini-templo. E aí vai crescendo, porque o dinheiro
entra. A igreja Católica deveria aprender muita coisa boa com as
evangélicas.

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