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sábado, 19 de março de 2016

Estadão imita editorial do Correio da Manhã publicado em março de 1964

Estadão imita editorial do Correio da Manhã publicado em março de 1964 | Observatório da Imprensa 



Estadão imita editorial do Correio da Manhã publicado em março de 1964

Por Dairan Paul em 15/03/2016 na edição 894
Texto publicado originalmente no site ObjETHOS, 14/3/2016, com o título "Um basta às especulações".
“Não é possível continuar
neste caos em todos os sentidos e em todos os setores. Tanto no lado
administrativo como no lado econômico e financeiro. Basta de farsa”.
“Chegou a hora de os brasileiros de bem, exaustos diante
de uma presidente que não honra o cargo que ocupa e que hoje é o
principal entrave para a recuperação nacional, dizerem em uma só voz, em
alto e bom som: basta!”.
Entre as duas aspas, há uma diferença de quase 52 anos; as semelhanças, no entanto, são gritantes. A primeira citação provém do editorial Basta!, escrito pelo jornal Correio da Manhã
em 31 de março de 1964, às vésperas do golpe militar que depôs o
presidente Jango Goulart. Na segunda sentença, temos o recente editorial
do EstadãoChegou a hora de dizer: basta! –, de 13 de março de 2016, data em que uma série de manifestações contra o governo assolou o país.


Basta editoria correio da manhãbasta editorial estadão






























As aproximações entre os textos (a começar pelo título, perpassando
também o seu conteúdo) não se configuram exatamente como uma novidade ao
longo da história do jornalismo – algumas destas reincidências já foram comentadas
pela pesquisadora Amanda Souza de Miranda, em artigo sobre a cobertura
midiática no governo de Getúlio Vargas. De 1964 até 2016, as estratégias
pouco mudaram: nos dois editoriais citados, a ideia consiste em
personalizar uma crise política na figura do administrador incompetente –
“João Goulart não tem a capacidade para exercer a Presidência da
República e resolver os problemas da Nação dentro da legalidade
constitucional”, ou, ainda a referência à presidenta Dilma Rousseff como
uma pessoa “sem nenhuma vocação nem para a política nem para a
administração”.


imagem 01
Créditos: Odyr Bernardi
Por outro lado, o editorial do jornal Estado de S. Paulo vai
ainda além e chega a soar ofensivo, podendo, inclusive, atentar contra
parte de seus próprios leitores. Petistas são designados como uma
“matilha”, “tigrada”, “essa turma (…) quase marginal”. Trata-se de um
discurso que beira o ódio, partindo de premissas pretensamente
universais (“a maioria dos brasileiros” desejam a destituição de Dilma,
segundo “pesquisas de opinião” não citadas) e apelando para a moral e os
bons costumes (“cidadãos de bem”, “famílias indignadas”). A pressão, à
la 1964, também está presente: “tudo isso poderia ter sido evitado de
Dilma tivesse tido a grandeza de renunciar ao cargo”.


Há quem diga que o veículo, ao escancarar sua opinião – uma editoria
não serviria para isso, afinal? –, praticaria um jornalismo supostamente
mais honesto, despido de seu véu da imparcialidade. Novamente, um
argumento antigo: a pluralidade de opiniões é frequentemente evocada
para dar vazão a discursos que criminalizam grupos e movimentos
políticos. É claro que pontos de vista divergentes são salutares à
democracia, mas a afirmação não deve terminar aí: tais opiniões,
inseridas em uma instituição jornalística, e não em uma postagem de rede
social, possuem o compromisso ético mínimo de qualificar o debate
público. Faltar com o respeito à figura pública da presidenta Dilma
Rousseff e de seus eleitores passa longe de resolver os problemas
estruturais que a política brasileira apresenta. Não parece exagero
classificar a postura editorial do Estadão como ativista ou panfletária.


O discurso inflamado do jornal considera que petistas são pessoas
ameaçadoras, “com a pretensão de se impor pela força”. Não há surpresa
aqui: em texto anterior,
a pesquisadora Sylvia Moretzsohn alertava para o seletivo olhar
direcionado às reações contra a derrubada do governo Dilma, entendidas
como violentas. “Mais ou menos como no discurso recorrente que acusa
Lula e o PT de dividirem o país entre ‘nós’ e ‘eles’, como se Lula e o
PT tivessem inventado a luta de classes”. Uma invenção nada mais do que
cínica: em seu editorial, Estadão sentencia que “já ficou claro, no
entanto, que esse punhado de irresponsáveis nada pode contra a maioria
dos brasileiros honestos”.


Desinformações a torto e a direito


O problema maior é notar que as especulações não são exclusividades
do Estadão. À tarde, durante as manifestações de 13 de março, GloboNews
reuniu seu time de repórteres para realizar a cobertura dos protestos.
No estúdio, como de costume, jornalistas palpitam: “acho que está claro
que o governo, no modelo que está, não sobrevive”, diz Cristiana Lôbo, e
continua: “não é que o país está dividido. Ele foi dividido nas
eleições”. Após ser vaiado na tarde de protestos, o senador Aécio Neves,
citado em delações de Alberto Youssef e Delcídio do Amaral, é
timidamente mencionado pela jornalista, de forma indireta: “o apoio à
Lava Jato é o guarda-chuva para dizer não à Dilma, ao Lula e ao PT. Como
eles são o poder central, hoje foca neles. Mas se tiver mais… foca
nesses também”.


Se, por um lado, as especulações travestidas de assertivas tomam
conta do estúdio durante a transmissão, parece haver certa graça na
cobertura de rua feita pelos repórteres. Frequentemente, o valor da
democracia é enaltecido, ao lado do pacifismo dos manifestantes e do
recorde de venda dos bonecos de Lula e Dilma pelos ambulantes. Tudo são
camisas da seleção, patos inflados e Power Rangers.


imagem 02
Créditos: André Dahmer
Em outro exemplo grotesco, na semana que precede as manifestações, O Globo escreve um perfil
da juíza Maria Priscilla Veiga Oliveira, responsável por analisar o
pedido de prisão feito ao ex-presidente Lula. Descrita como uma
apaixonada por gatos, a reportagem verifica as predileções da
profissional através de seu perfil no Facebook. O ultimato acontece
quando o jornalista liga para a mãe da juíza: “qual é o palpite da
senhora, ela prende ou não o ex-presidente?”, pergunta o repórter. Como
resposta, recebe: “meu filho, ligue mais tarde e pergunte pra ela”.


Especulações demais e informações de menos abrem um debate sobre a
cobertura jornalística em casos excepcionais, de acontecimentos
complexos, com múltiplos atores. Como lidar com um momento em que mesmo a
dita “imprensa de referência”, como se convencionou chamar, parece mais
interessada em palpites do que fatos? Há que se lembrar, aqui, o papel
de contrainformação presente nas redes sociais, debatido anteriormente
pela pesquisadora Lívia Vieira. Aproximação de fontes com leitores e o
questionamento às narrativas de grandes jornais estabelecem novos
discursos – embora eles não necessariamente se legitimem como dominantes
em relação às versões “oficiais” e, por vezes, ainda reproduzam uma
lógica que não consegue ir além do embate entre “coxinhas” e
“petralhas”. Por outro lado, a última crítica também cabe aos jornais, comprometidos ora em abraçar o governo acriticamente, ora em detoná-lo – o debate em forma de torcida Fla x Flu, quem diria, também atinge jornalistas imparciais.


Como sempre, quem perde é o leitor, sem saber onde se informar.
Momentos como esse são mais propícios à desinformação, aos boatos e ao
empobrecimento do debate público. Diante desse cenário, ainda há quem
fale na crise do jornalismo como sendo apenas financeira?


***


Dairan Paul é mestrando no POSJOR/UFSC e pesquisador do ObjETHOS


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