Lava Jato Lado B: Como a Petrobras foi parar no banco dos réus nos EUA
"Como é que a Petrobras pode ser ao mesmo tempo responsável perante os promotores americanos e vítima perante os procuradores brasileiros? Quem está errado?"
Por Luís Nassif e Cintia Alves
A história de como a Petrobras foi parar no banco dos réus nos Estados Unidos entrelaça três frentes de atuação contra a empresa.
A primeira delas, que exerceu o papel de carro-chefe em relação às demais, foi a montagem de uma class-action, uma espécie de ação judicial coletiva, uma das maiores do mundo, que fez a Petrobras desembolsar sozinha quase 3 bilhões de dólares em indenizações.
Na esteira dessa ação coletiva, o Departamento de Justiça – em inglês, a sigla é DOJ – e a Comissão de Valores Mobiliários – a SEC, uma espécie de agência reguladora do mercado de capitais – também passaram a investigar a Petrobras, que está sujeita à fiscalização desde que abriu capital na Bolsa de Nova York.
Seguindo a mesma linha de defesa que adotou na class-action, a Petrobras também fechou um acordo com o DOJ, e pagou mais uma multa, de 853 milhões de dólares.
No total, são 3,8 bilhões de dólares, ou mais de 15 bilhões de reais no câmbio do final de 2019. Essa quantia hoje é quase 4 vezes maior do que a reparação que a Petrobras recebeu por meio da Lava Jato nos últimos 5 anos. Também é mais do que o dobro do valor anunciado como perdas de corrupção pela própria Petrobras, quando ela se dirigiu ao mercado em 2015, para prestar contas dos prejuízos.
COMO SURGIU A CLASS-ACTION
A class-action surgiu logo depois das primeiras delações da Lava Jato. Com destaque para o depoimento de Paulo Roberto Costa, que foi funcionário de carreira na Petrobras. Ele ter participado das negociatas representava uma falha grave no sistema de compliance da companhia.
A advogada Valeska Teixeira, que estuda as relações da Lava Jato com os Estados Unidos, explicou ao GGN: “Eles começam a ação [coletiva] em 2014 por práticas corruptas, ou seja, alegando um sistema de corrupção sistêmico que teria, na realidade, gerado um prejuízo muito grande para todos os acionistas minoritários da Petrobras nos Estados Unidos.”
“Começam a fase de discovery, a parte de instrução para descobrir essa corrupção. Eles inclusive narram [nos autos do processo nos EUA] que mandaram ex-agentes do FBI ao Brasil; que teriam tido muito cooperação das autoridades brasileiras, que teriam entrevistado possíveis delatores que estariam na prisão. É uma pergunta que se faz: como eles tiveram acesso a esses possíveis delatores?”
A ideia da class-action partiu de um advogado brasileiro, André de Almeida, formado no exterior. Ele se associou ao escritório norte-americano Wolf Popper para processar a Petrobras em nome dos acionistas. Em dezembro de 2014, eles entregaram a ação a um tribunal federal em Nova York.
“Por que não fazer no Brasil? Primeiro porque acho que existe um gap civilizatório brutal entre o Poder Judiciário americano e o brasileiro. Especialmente em ações coletivas, e especialmente em reparações ao acionista minoritário”, comentou.
“A minha pretensão, muito ousada na época, era que a Justiça americana compensasse ou indenizasse todos os acionistas, brasileiros e estrangeiros. O Judiciário americano decidiu, no curso da ação, que ele teria competência apenas para julgar as indenizações relacionadas aos acionistas que investiram nos Estados Unidos. Não são [apenas] americanos, são fundos, pessoas físicas ou jurídicas ou qualquer outro veículo de investimento, mas que tenham comprado [ações da Petrobras] no mercado americano.”
Na teoria, a desvalorização das ações da Petrobras na fase inicial da Lava Jato tinha três componentes: a queda no preço do barril de petróleo no mercado internacional, os danos à imagem provocados pelo estouro da operação em Curitiba e a corrupção em si. Como separar esses três elementos no cálculo do valor da ação?
Segundo Almeida, “para fazer um cálculo de quanto foi a perda, nós temos de ter um marco zero. E o marco zero que desenhei para a class-action foi aquele, entre aspas, IPO [sigla em inglês para “oferta pública inicial”, ou abertura de capital] que ocorreu em 2010, que fez a Petrobras ser a quinta empresa mais valiosa do mundo na época.”
“Ela tinha um market cap, um valuation de mais de 300 bilhões de dólares, em 2010. Foi um dado que a própria companhia divulgou ao mercado e foi o número com que o próprio mercado avaliou a companhia. Ao final de 2015, a companhia valia 30 bilhões de dólares, ou seja, teve uma depreciação ao longo de quatro anos.”
Nesse mesmo período, houve uma “queda abrupta no preço do petróleo”. Mas as ações de grandes petrolíferas “bem administradas”, segundo Almeida, não caíram tanto quanto as da Petrobras. “A ação da Exxon Mobil caiu 18%. A ação da British Petroleum, 14%. A ação da Petrobras caiu 90%, e a ação da PDVSA caiu 89%. Veja bem: a Petrobras conseguiu ter queda superior a da PDVSA, que é a companhia [venezuelana] mais ineficiente do mundo.”
Essa diferença, na visão do advogado dos acionistas, só tinha uma explicação: a Petrobras perdeu mais valor porque tinha problemas internos de má gestão e desvios de conduta ética.
“Nada justifica uma empresa perder um valor de mercado de 90% em quatro anos, e justificar isso com relação a perda de valor do mercado de petróleo, quando, simultaneamente, outras empresas na realidade não sofreram nada”, argumentou.
Mas para ressarcir os acionistas, o cálculo envolvendo os danos à imagem da Petrobras e a corrupção alegada pela Lava Jato jamais foi realizado.
“Não chegou-se no processo no momento em que houve uma conta para verificar qual valor se deve à corrupção, qual valor se deve à ineficiência, qual valor se deve ao uso político da empresa e qual valor se deve à incompetência.”
A conta ao final não precisou ser feita, de acordo com Almeida, porque a Petrobras optou pelo acordo e se obrigou a pagar 3 bilhões de dólares em indenização aos acionistas, “o que dá um valor de mais ou menos 1 dólar por ação.”
“A pretensão inicial era um ressarcimento no valor de 8 dólares a 9 dólares por ação, por isso é ‘a maior ação do mundo’ [título do livro escrito por Almeida sobre o processo histórico contra a Petrobras], mas um acordo é sempre um acordo.”
A PRESSÃO PELO ACORDO
“Você começa a perceber que há a metodologia de carrots and sticks [cenouras e porretes, em tradução livre], que é uma tática muito conhecida de lawfare”, explicou Valeska Teixeira.
“Você simplesmente, como disse Dallagnol, coloca a pessoa de joelhos e oferece uma redenção. É basicamente isso. A pessoa [no caso, a Petrobras] confessa, aceita a jurisdição [dos EUA], aceita a aplicação do FCPA [a lei anticorrupção norte-americana], e isso tudo é negociado. Não há revisão, não há escrutínio judicial nos Estados Unidos. Tudo acontece lá, de forma negocial, na Justiça de lá.”
“A Petrobras se apresentou espontaneamente naqueles autos e começou a compartilhar todas as provas, ou documentos, ou testemunhos”, comentou Valeska.
“O curioso é que, nos acordos governamentais, por exemplo, o DOJ [Departamento de Justiça dos EUA], quando faz o acordo [separado da class-action], ele estimava uma perda no âmbito da Petrobras, por conta da corrupção, de 1 bilhão de dólares. A SEC [Comissão de Valores Mobiliários dos EUA], na mesma data, fala que deveriam ser reparados aos acionistas, global, 933 milhões de dólares. O fato é que fecham um acordo por quase 3 bilhões de dólares.”
A class-action foi finalizada oficialmente em janeiro de 2018. Em setembro daquele mesmo ano, a Petrobras fechou ao mesmo tempo os outros dois acordos que faltavam nos Estados Unidos. Um deles com a SEC, que estimou a multa de 933 milhões de dólares, como explicou Valeska. Esse valor, contudo, foi descontado dos bilhões pagos na class-action. O terceiro acordo foi com o DOJ, que é bastante controverso dentro da comunidade jurídica.
Para o advogado e consultor André Motta Araújo, “é aceitável que a SEC multe a Petrobras como multaria qualquer outra empresa. A SEC dá embasamento à cobrança de multas porque ela considera que a corrupção afeta a regular cotações das ações. O balanço, não refletindo a corrupção, ele é falso, está adulterado, então passaram informações inadequadas ou insuficientes para os acionistas. É nesse quadro que se dá a multa da SEC.”
Já o acordo com o DOJ gera uma discussão sobre a legitimidade de submeter uma empresa estratégica para o desenvolvimento do Brasil à jurisdição norte-americana.
Além disso, é de se perguntas se o que aconteceu dentro da Petrobras se enquadra no escopo da FCPA, que é a lei anticorrupção dos EUA.
AS NARRATIVA ANTAGÔNICAS CONTRA A PETROBRAS
Aqui no Brasil a Petrobras não foi acusada de ter sido pagadora de propina. Ao contrário: foi tratada como vítima e sua pessoa jurídica não só foi poupada pela Lava Jato em Curitiba como trabalhou como assistente de acusação.
A União, que é acionista majoritária, poderia então ter invocado imunidade funcional para a Petrobras – uma estratégia embasada no tratado de cooperação internacional com os Estados Unidos em matéria penal, em vigor no Brasil desde 2001.
A ARMA DIPLOMÁTICA
“O Brasil bastaria invocar, através de seu canal diplomático, essa cláusula de interesse nacional, [alegando] que a Petrobras não está sob jurisdição [dos EUA] no que concede à lei anticorrupção de 1971, que é a FPCA. O governo americano jamais criaria caso com o Brasil”, disse Araújo ao GGN.
“Considero ainda absurdo pensar que o governo americano fosse pensar em uma sanção contra a Petrobras, que é a maior cliente dos combustíveis dos EUA. Quer dizer, o Brasil não usou nenhuma arma diplomática. O governo teria todo o peso para fazer, e não fez por vergonha ou talvez timidez. Isso é uma coisa que não se trata como subalterno. É de País para País”, acrescentou Araújo.
A FUNDAÇÃO LAVA JATO
Curiosamente, os Estados Unidos abriram mão de 80% da multa de 853 milhões de dólares aplicada à Petrobras pelo DOJ. Eles determinaram a devolução de 682 milhões de dólares, algo equivalente a 2,5 bilhões de reais. O acordo previa expressamente que as “autoridades brasileiras” deveriam decidir como utilizar esse dinheiro.
Mas em janeiro de 2019, a Petrobras assinou um contrato exclusivo com os procuradores de Curitiba. A força-tarefa planejava criar uma fundação bilionária que financiaria ações sociais e anticorrupção com metade da multa da Petrobras. Os outros 50% seriam guardados para indenizar acionistas brasileiros no futuro. A jogada foi barrada pelo Supremo Tribunal Federal.
O PAPEL DOS PROCURADORES DE CURITIBA
Uma das dúvidas que ainda pairam sobre os processos que a Petrobras enfrentou nos Estados Unidos diz respeito ao papel nebuloso exercido pelos procuradores da Lava Jato.
“O Ministério Público Federal teve uma relação muito ambígua no caso. Os promotores brasileiros em Curitiba achavam um absurdo a ação judicial [class-action]”, disse Almeida, o advogado dos acionistas nos EUA.
“A teoria do Ministério Público era de que a empresa era vítima. E essa teoria era contrária à minha, de que ela deu causa [à corrupção e consequente desvalorização]. E o Ministério Público Federal brasileiro queria que eu perdesse a class-action, porque se eu perdesse, quer dizer que a teoria deles de que a empresa brasileira era vítima, era a correta.”
“Agora me explica uma coisa: como é que a Petrobras pode ser ao mesmo tempo responsável perante os promotores americanos e vítima perante os procuradores brasileiros. Quem está errado?”, disparou Almeida.
“É, na minha visão, um grande enredo equivocado criado pelo Ministério Público Federal pela sua conveniência. Porque era mais fácil tratar a Petrobras como vítima e empresas como bandidas, do que o contrário, juridicamente falando. Porque caso o MPF quisesse demonstrar que a Petrobras foi autora dos ilícitos, assim como os fornecedores, ele teria o trabalho de envolver o poder público, a União federal, no processo. E eles não tiveram a capacidade, ou a vontade, ou talvez a inteligência de separar uma coisa da outra”, esclareceu Almeida.
É claro que a Lava Jato não vai admitir isso, mas pode ter sido pura estratégia processar a Petrobras como vítima no Brasil, e não como culpada, como fizeram nos Estados Unidos. No fundo, o que estava em jogo era manter o centro da operação em Curitiba, sem perder o controle para tribunais superiores, algo que poderia acontecer a União fosse arrastada para o caso.
A VIAGEM DE JANOT E A OPERAÇÃO RADIOATIVIDADE
Além de receber agentes do DOJ aqui no Brasil, os procuradores da Lava Jato também fizeram diversas viagens aos Estados Unidos.
Em fevereiro de 2015, Deltan Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos Lima foram pedir ajuda das autoridades norte-americanas para investigar a Eletronuclear, uma subsidiária da Petrobras.
Na mesma viagem, Rodrigo Janot, então chefe do Ministério Público Federal, visitou Leslie Caldwell, procuradora-adjunta da Divisão Criminal do Departamento de Justiça.
Leslie tem ampla experiência. Participou do caso Enron e ficou marcada pelo estilo implacável. Antes de atuar no DOJ, ela foi sócia do Morgan Lewis, o maior escritório de advocacia a trabalhar para a indústria eletronuclear nos EUA.
Cinco meses depois daquela viagem, a Lava Jato em Curitiba prendeu o Almirante Othon Luiz Pereira da Silva, o pai do programa nuclear brasileiro. As pistas provavelmente vieram das reuniões com o DOJ.
Ao longo de sua carreira, o Almirante Othon acumulou um conhecimento único sobre um mercado que, no comércio mundial, equivale a 100 bilhões de dólares ao ano.
Contra ele, usaram a delação de Dalton Avancini, que “ouviu dizer” que a formação de cartel nas obras da usina de Angra 3 teve a suposta anuência do Almirante, que foi presidente da Eletronuclear, a contratante da obra.
Havia uma enorme desproporção entre as supostas propinas que o Almirante e a empresa de tradução técnica de sua filha teriam recebido em troca de supostamente beneficiar empresas do tal cartel. Além disso, decisões usadas contra ele no processo eram de competência exclusiva da Presidência da República, do Ministério da Defesa e das Forças Armadas.
O ex-juiz Sergio Moro até chegou a considerar que as “conhecidas qualificações técnicas de Othon” justificavam os pagamentos sob investigação. Mas no final, Moro alegou “um possível conflito de interesses” para fundamentar a prisão.
Foi assim que a Lava Jato colocou o mais relevante cientista militar brasileiro da atualidade atrás das grades, comprometendo o desenvolvimento de uma tecnologia crítica para o País.
Moro depois transferiu a ação penal para o juiz Marcelo Bretas, que cuida da Lava Jato no Rio de Janeiro. o Almirante Othon, já com 77 anos de idade, foi então condenado a 43 anos de prisão. Atordoado com o que estava acontecendo, ele tentou suicídio em sua própria cela.
Dois anos mais tarde, quando foi libertado, Othon avaliou que seu caso envolvia “interesses internacionais”.
Algum tempo depois, o governo Bolsonaro propôs o fim do controle estatal sobre a exploração de urânio e a possibilidade de empresas privadas atuarem no mercado brasileiro.
“Não há nenhuma dúvida de que o governo Trump está muito feliz com Bolsonaro e o apoia fortemente ou irá tentar apoiá-lo da maneira que puderem. Isso porque eles alinharam sua política externa. É por esse motivo, eu acho, que os Estados Unidos quiseram se livrar do antigo governo brasileiro”, disse o economista Mark Weisbrot.
“O que está acontecendo na Petrobras hoje é consequência da Lava Jato. É privatização branca. ‘Quanto maior for a Petrobras, mais corrupção vai ter. Vamos cortar um pedaço do boi para não dar carrapato.’ Essa é a lógica que está sendo aplicada em consequência da Lava Jato”, comentou Araújo.
A nossa equipe de reportagem questionou a Petrobras sobre os gastos com escritórios de advocacia especializados na legislação norte-americana e o uso dos canais diplomáticos em sua defesa. A empresa não quis comentar esses pontos. Por e-mail, ela afirmou que os acordos com o DOJ e a SEC, e também a class-action, “atendem aos melhores interesses da Petrobras e de seus acionistas, e põem fim a incertezas, ônus e custos associados a potenciais litígios nos Estados Unidos.”
Já os procuradores de Curitiba afirmaram por e-mail que Janot não participou das reuniões com o Departamento de Justiça. A força-tarefa também disse que “não interferiu no processo da Petrobras junto ao DOJ e à SEC, nem nas negociações entre eles. Contudo, realizou gestões perante as autoridades norte-americanas para que parte significativa dos recursos pudesse ficar no Brasil. O pedido se fundamentou especialmente no fato de que a sociedade brasileira foi quem mais sofreu com a corrupção político-partidária na estatal.”
Nota da redação: Esta reportagem faz parte do projeto “Lava Jato Lado B – A influência dos EUA e a indústria do compliance”,
produzido pelo GGN no último trimestre de 2019 e divulgado em janeiro
de 2020. Antes, portanto, das revelações feitas pelo dossiê “Vaza Jato”,
do The Intercept Brasil e veículos associados.
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