
(Darcy se despede da mãe antes de partir para o exílio, em 1968. Foto: Fundação Darcy Ribeiro)
Foi na ditadura civil-militar, ao contrário do que defendem os 
saudosistas que vão às ruas pedir por uma nova “intervenção” (sic) das 
Forças Armadas, que a corrupção brasileira se profissionalizou. 
Imaginem: uma época em que não se podia denunciar nada só podia ser uma 
época de ouro para ladrões de dinheiro público. Segundo o historiador 
Pedro Henrique Campos, autor do livro 
Estranhas Catedrais, o pagamento de propinas a empreiteiras, por exemplo, se consolidou durante o governo militar (leia mais nesta 
reportagem da BBC).
Um dos últimos membros do governo Jango a deixar o Palácio do 
Planalto em 1964, o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) denunciou, 
após a volta da democracia, as negociatas que se seguiram ao golpe. O 
Brasil perdeu terras e empresas públicas, entregues a preço de banana 
para os gringos, quando não de mão beijada, como parte do acordo para 
derrubar Jango. Assombram a atualidade e a semelhança com o que está 
acontecendo agora, com o novo golpe que arrancou Dilma Rousseff do 
cargo, inclusive nas ameaças aos direitos dos trabalhadores. (Eu marquei
 as semelhanças mais evidentes em negrito).
Leiam algumas das falcatruas denunciadas por Darcy, em ordem 
cronológica, no dia em que se completam 20 anos de sua morte. Que falta 
ele faz ao país…
***
As negociatas da ditadura*
Por Darcy Ribeiro
1964
A empresa CONSULTEC, organizada por Roberto Campos, Mauro Thibau e 
Garrido Torres Lucas Lopes como um grupo de assessoria e de pressão da 
Hanna Corporation,
 que funcionou como principal agência de coordenação e financiamento das
 atividades das multinacionais de apoio ao golpe de 1964, se converte 
num bloco de poder depois do golpe. Assume, a seguir, o comando da 
política econômica do governo militar juntamente com os velhos 
testas-de-ferro das empresas estrangeiras. Em consequência, 15 dias 
depois do golpe, o Congresso revoga a Lei de Remessa de Lucros. Revoga, a
 seguir, a Lei de Estabilidade no Emprego, principal conquista dos 
trabalhadores no período getulista.
Roberto Campos, ministro do Planejamento, e Otávio Gouveia de 
Bulhões, ministro da Fazenda, negociam a dívida externa brasileira com o
 FMI nos termos que os banqueiros ditam. O preço real foi a abertura de 
toda a economia brasileira e de todos nossos recursos naturais às 
empresas multinacionais e a aceitação das condições ditadas pela Hanna e
 pela Amforp para a solução de seus litígios com o governo.
Os norte-americanos socorrem com urgência o governo que implantaram, 
mandando entregar imediatamente a Castelo Branco, por conta da Aliança 
para o Progresso, 4 milhões de dólares para despesas de algibeira e, 
logo depois, mais 883 milhões como empréstimo. Mas começam também a 
cobrar, fazendo o governo comprar por 105 milhões de dólares as empresas
 que Brizola havia desapropriado por um dólar e que de Jango só 
reclamavam 30 milhões.
Roberto Campos, Eugênio Gudin e Otávio Gouveia de Bulhões, montados no poderio da ditadura, 
dão um aumento de 100% aos militares
 e, assim respaldados, ditam a política econômica antinacional e 
socialmente irresponsável que jamais haviam podido executar. (…) Roberto
 Campos entrega o BNDE a Garrido Torres, com o encargo de matá-lo; para 
isto, tenta extinguir os fundos públicos com que operava. Queria 
vingar-se dos técnicos que o haviam expulsado do banco como entreguista e
 corrupto.
Três decretos marotos conseguem à Light tudo que ela pedia: elevação 
de tarifas e sua correção automática, bem como a reavaliação dos seus 
ativos convertidos, para nós, em astronômicos passivos.
O governo devolve as refinarias particulares encampadas por Jango. 
Sabendo quanto elas pagariam de suborno para não serem encampadas, posso
 avaliar o que terão pago para serem desencampadas.
A ditadura regulamenta o artigo da Constituição que garante direitos de greve,
 para torná-la totalmente ilegal e punível. (…) O novo ministro do 
Trabalho, Arnaldo Sussekind, intervém em cerca de mil sindicatos, 
destitui as antigas diretorias legalmente empossadas e dissolve 
entidades sindicais de grau superior.
Roberto Campos faz Castelo Branco 
decretar a anistia fiscal para os brasileiros que repatriassem depósitos clandestinos de dólares no exterior.
A Handson’s Letter de Wall Street chama os brasileiros de “palhaços 
do mundo” pela compra da Amforp por 135 milhões de dólares. A compra 
negociada por Roberto Campos previu o pagamento de 10 milhões de dólares
 à vista, provavelmente o suborno; 24, 7 milhões em vinte anos, a juros 
de 6%; e 100 milhões, no mesmo prazo, a juros de 6,5%. Dos 100% de ações
 compradas, o Brasil só recebeu 75%; os outros 25% seriam as tais “ações
 sem valor ao par”, dadas aqui aos figurões que a Amforp subornou ou aos
 diretores cuja dedicação premiou. Assim terminaram as expropriações de 
Brizola, as empresas gaúchas da ITT e da BBS.
1965
O Serviço Geológico dos Estados Unidos rouba e entrega à U.S.Steel os
 levantamentos realizados por uma empresa brasileira para o governo, 
graças aos quais se localizou na Serra dos Carajás uma grande jazida de 
calcário e minério de ferro (18 bilhões de toneladas). A empresa 
americana, para se apropriar das jazidas, arma uma falcatrua, 
apresentando requerimentos de 167 funcionários no seu escritório de 
Belém, que incluíam desde porteiro e secretária até o diretor, 
requerendo alvarás de exploração de Carajás como uma montanha de 
calcário. A maroteira era tão escandalosa que nem o governo ditatorial 
pôde aprovar. Mas, ainda assim, concede à mesma United States Steel um 
alvará de exploração do minério de ferro de Carajás para exportação, que
 eles prometem iniciar imediatamente. Nunca iniciaram, porque o objetivo
 era, como sempre, ficar sentada em cima das concessões de mineração que
 obtinham. Mas venderam depois, ao próprio governo, esta licença 
incumprida, por bom dinheiro.
Dado o desinteresse da Light em expandir e melhorar os seus serviços 
de telefone, o governo decide nacionalizá-los. A empresa cede 
gostosamente. Pagaram o dobro do que ela pediu originalmente, uma bolada
 a pagar em 80 prestações trimestrais a juros de 6% –em dólares.
É promulgada e posta em execução a Lei 4.725, destinada a reduzir os 
salários reais através dos critérios de fixação do salário mínimo e de 
controle dos aumentos salariais. A nova lei, somada à repressão policial
 e à intervenção nos sindicatos, submete o trabalho à servidão frente ao
 capital.
A USP e a UFRJ, bem como dezenas de vetustas instituições culturais, veem surgir de dentro delas, espumantes de ódio, 
intelectuais
 repressores que aderem à ditadura e passam a apontar, de dedo duro, a 
seus colegas mais competentes como subversivos. O reitor da 
USP, Gama e Silva, se credencia para ministro da Justiça nomeando uma 
Comissão Dedo-Duro, que compões laboriosamente uma lista de 50 
professores e estudantes dos mais brilhantes e remete aos órgãos de 
segurança para serem punidos e demitidos.
Entra em ação o acordo MEC-USAID, ratificado secretamente em 1967 
para implantar a reforma universitária, que corresponde ao espírito da 
ditadura, 
privatizando as universidades públicas e 
dissolvendo as organizações estudantis. Para isto, o general Meira Matos
 junta milicos e deseducadores brasileiros com subintelectuais 
norte-americanos contratados pelo mesmo órgão de Washington que 
patrocinou o treinamento dos torturadores.
1966
Juracy Magalhães, embaixador do Brasil em Washington, convencido de 
que é bom para o Brasil tudo que for lucrativo para os Estados Unidos, 
assina um Pacto de Submissão Colonial. Por ele, se dá garantias formais 
de que respeitaremos as leis norte-americanas que garantem os 
investimentos de suas empresas no Brasil até 20 anos depois de qualquer 
futura lei brasileira que venha a afetá-los.
A 
reforma tributária é posta em execução, impondo o 
predomínio da União e reduzindo drasticamente as fontes de recurso dos 
estados e dos municípios, que passam, assim, a depender inteiramente das
 autoridades federais.
O bando entreguista instalado no poder entrega à Hanna Corporation 
–empresa reconhecidamente não-idônea nos Estados Unidos – a Companhia 
Vale do Paraopeba, detentora de imensas jazidas minerais– com a qual 
João Goulart pensava fazer a independência do Brasil, vendendo minério 
exclusivamente para construir siderúrgicas. A Hanna recebe, ainda, a 
estrada de ferro que liga Minas ao Rio para exportação de ferro e 
manganês, em competição com a Cia. Vale do Rio Doce. Desgastada no uso 
mais intensivo para transferir as montanhas de Minas para os Estados 
Unidos, a Rede Ferroviária custa ao governo brasileiro, em subsídios 
anuais, muito mais do que tudo que a Hanna paga pelo minério. Pelo uso 
daquela rede ferroviária de 633km de Belo Horizonte ao porto privado de 
Sepetiba, a Hanna pagava uma tarifa de 125 cruzeiros por tonelada, 
quando o preço de custo para o governo era de 160 mil cruzeiros. Em 
consequência desta outorga, o governo inicia a construção de uma outra 
estrada, por nossa conta, a Ferrovia do Aço, para levar o minério de 
Minas a Volta Redonda. Nela, já se gastaram mais de 2 bilhões de 
dólares, e falta outro tanto. Tamanha dação só se explica porque a Hanna
 foi a principal financiadora do golpe de 1964.
1967
Castelo Branco paga a última prestação do preço do golpe de 1964: um 
avião militar norte-americano desembarca em Brasília os diretores da 
Hanna Corporation que vêm firmar com Azevedo Antunes a ata de fundação 
da empresa nominalmente nacional, Minerações Brasileiras Reunidas, a fim
 de legalizar a apropriação estrangeira de 720km² das terras de Minas 
Gerais, onde se encontra uma das maiores reservas de minérios deste 
mundo, que Jango havia recuperado para o Brasil e eles ganharam.
Escândalo nacional com as acusações a Roberto Campos de ter 
participado da “vaquinha” que enriqueceu vários membros do governo com a
 nova alta do dólar por ele decretada.
O milionário Daniel K. Ludwig –secretariado por Heitor Ferreira de 
Aquino, que também foi secretário de Geisel e Figueiredo– compra, com a 
ajuda zelosa do general Golbery, um país de 60 milkm², no Amapá e no 
Pará, para montar ali um ambicioso projeto madeireiro, minerador e 
agroindustrial. Acaba dando imenso prejuízo que, como sempre, o Banco do
 Brasil assume e converte em mais uma negociata na forma de empréstimos 
subsidiados a milionários nativos.
Eminentes educadoras paulistas como Maria José Werebe, Maria Nilde 
Mascelani e Teresinha Framme, em São Paulo, Henriette Amado e diversas 
outras no Rio 
são perseguidas e denunciadas escandalosamente por darem uma orientação esclarecida a seus alunos sobre a matéria sexual.
Um incêndio suspeito destrói os artigos com a documentação e os 
registros de terras de índios e a filmoteca do velho SPI, então sob a 
guarda da Funai em Brasília.
1969
A Phillips Petroleum consegue de Costa e Silva a construção de um 
grande conjunto habitacional , bem em cima de uma jazida de fosforita, 
em Olinda, para inviabilizar sua exploração, que era competitiva com a 
deles.
1970
Avança o loteamento da Amazônia. Além dos 6 milhões de hectares de 
Ludwig, são doados 668 mil à Suyá-Missu, 600 mil à Codeara, 500 mil à 
Paragominas e outros tantos à Georgia Pacific, à Bruynzeel, à Volkswagen
 e à Robin Mac. Também entram na negociata a Anderson Clayton, a 
Swift-Armour, a Goodyear, a Nestlé, a Mitsubishi, a Bordon, a Mappin, 
além dos nativos Camargo Corrêa, Bradesco 
et caterva.
Acelera-se, em consequência, a destruição da floresta amazônica com 
drogas desfolhantes, napalm e correntes arrastadas por enormes tratores 
de esteira. O programa é esteira.
 O programa é transformar a selva em pastagens.
É criado o INCRA –Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária–, mas o que se implanta é a anti-reforma pela 
entrega de glebas quilométricas a grandes empresas para serem afazendadas
 à custa do povo. Isto porque as beneficiárias podem deduzir todos os 
seus gastos até a metade do imposto de renda que deveriam pagar, mas 
embolsam. Incrível, só neste Brasil da ladroagem.
Paulo Freire, exilado, publica nos Estados Unidos sua obra maior: 
Pedagogia do Oprimido,
 uma apreciação crítica de suas práticas de pioneiro da educação de 
adultos. Este livro é o texto educacional brasileiros mais traduzido e 
que exerce maior influência no mundo. Curioso é que, tal como ocorreu 
com Josué de Castro –outro intelectual nosso com grande êxito 
internacional, detestado pela mediocridade nativa–, Paulo Freire provoca
 a inveja mais odienta de toda a pedagogia fútil e vadia, que nada faz, 
mas se engalana com plumas tiradas do nosso grande educador.
É criado o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), destinado a pôr em prática 
um imenso programa de alfabetização imbecilizadora,
 aplicando ao contrário os métodos de Paulo Freire. Somado à repressão 
nas universidades, e mantido o ensino fundamental nesta campanha de 
alfabetização despolitizadora, a ditadura reduz drasticamente os gastos 
com a educação, que de 11,2% di irçamento da União, em 1962, caem para 
5,4%.
1971
A ditadura, simultaneamente à liquidação política do Congresso 
nacional, o degrada com vergonhosas mordomias para legisladores que não 
legislam; o clientelismo de legiões de assessores e serviçais bem pagos e
 o faraonismo que converte a Câmara e o Senado –inúteis– nos maiores 
edifícios públicos do mundo.
São Paulo, na primeira fase da industrialização pioneira, realizada 
pelos Mattarazzo, gostava de se ver como a locomotiva que arrastava o 
Brasil, como um comboio de vagões vazios. Com a industrialização 
substitutiva, através da implantação de grandes fábricas das 
multinacionais, muda de imagem. Começa a ser vista pelo país como a 
grande bomba de sucção que nos sangra, para carrear lucros para o 
estrangeiro. Com efeito, o intercâmbio entre São Paulo e o resto do 
Brasil passa a ser tão desigual que alguns estados planejam criar 
reservas de mercado para suas próprias indústrias,  fim de enfrentar o 
colonialismo interno, praticado ferozmente pelos gerentes paulistas das 
multinacionais.
A exploração dos doentes brasileiros pelas multinacionais, produtoras
 de remédios, que controlam a produção e o mercado, chega a níveis tão 
altos que provoca, mesmo na ditadura, a provação de um Plano Diretor de 
Medicamentos destinado a pôr cobro no escândalo. Mas Wall Street 
protesta e o Plano é anulado.
Graças ao cientista Albert Sabin, se verifica que o governo Médici, 
além de falsificar os índices do custo de vida para comprimir salários e
 de exagerar os progressos da alfabetização, mente também nas 
informações relativas ás condições sanitárias da população, declarando 
vacinações antipólio que não realizou, o que põe em risco a população 
infantil.
1972
A Hanna e Antunes inauguram, na baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro, 
um porto próprio, destinado a transportar para os Estados unidos as 
montanhas de ferro de Minas Gerais, a fim de constituir, ali, uma 
gigantesca reserva que garantirá tanto a prosperidade futura deles como a
 nossa pobreza.
*Trechos do livro Aos Trancos e Barrancos – Como o Brasil Deu No Que
 Deu, de Darcy Ribeiro, publicado em 1985 pela editora Guanabara