quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Um canalha à porta do Planalto



Só na imprensa de Portugal: "um canalha à porta do Planalto!"

Assis: o que é quem elogia o torturador de uma mulher indefesa?
O Conversa Afiada recebeu de amigo navegante um bilhete com o artigo que se segue:

Finalmente a imprensa produziu um artigo de opinião à altura do que Bolsonaro representa. No caso, a imprensa portuguesa -- a brasileira jamais teria coragem.

Um canalha à porta do Planalto

Francisco Assis, para o jornal português Público

1. Carlos Alberto Brilhante Ustra foi um dos maiores, senão mesmo o maior torcionário, no tempo da ditadura militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Em 2008 foi o primeiro oficial condenado por sequestro e tortura. Comprovadamente, maltratou física e psicologicamente centenas de pessoas e chegou ao limite de obrigar crianças a presenciarem o dilacerante espectáculo do espancamento dos respectivos progenitores. Nunca reconheceu os seus crimes nem manifestou o mais leve arrependimento pelos seus actos desumanos. Era um canalha. Morreu em 2015, em Brasília, na cama de um hospital.

Foi precisamente este torcionário miserável que o então deputado federal Jair Bolsonaro homenageou no momento em que votou a favor do impeachment da Presidente Dilma Rousseff. Nessa ocasião, Bolsonaro pronunciou uma declaração que o define integralmente: dedicou o seu voto à “memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. É impossível imaginar, naquele contexto, uma afirmação mais vil, um comportamento mais indigno, uma atitude mais asquerosa. Bolsonaro revelou-se ali o que ele verdadeiramente é: um canalha em estado puro.

O que é um canalha em estado puro? É alguém que contraria qualquer tipo de critério moral e se coloca num plano comportamental pré ou anticivilizacional. Quem elogia o torturador de uma jovem mulher absolutamente indefesa atribui-se a si próprio um estatuto praticamente sub-humano. Bolsonaro é dessa estirpe, desse rol de gente que leva à interrogação sobre o que subsiste de humano no homem que literalmente se desumaniza. Theodore Adorno levou essa questão até ao limite do pensável, quando formulou a sua célebre afirmação: “escrever um poema depois de Auschwitz é um acto bárbaro e isso corrói até mesmo o conhecimento de porque se tornou impossível escrever poemas”. E, contudo, a poesia sobreviveu. O Homem resiste ao que de desumanizador ele inscreve na história. Isso não é razão para renunciar à denúncia da barbárie.

A barbárie tem muitos rostos: é estúpida, boçal, intolerante, sectária, fanática, simplista, racista, xenófoba, homofóbica, sexista, classista, irremediavelmente preconceituosa, inevitavelmente primária. Jair Bolsonaro é um dos rostos perfeitos dessa barbárie em versão actual. Tudo nele aponta para a pequenez: é um ser intelectualmente medíocre, eticamente execrável, politicamente vulgar. Nele observa-se uma prodigiosa ausência de qualquer tipo de grandeza e uma assustadora presença de tudo quanto invalida um cidadão para o desempenho da mais humilde função pública. Por isso mesmo ele é extraordinariamente perigoso: é a expressão quase exemplar do homem sem qualidades subitamente erigido a um papel de liderança.

Bolsonaro não é Hitler, não é Mussolini, não é sequer Franco. Em bom rigor, se quisermos ater-nos a um debate intelectual de natureza escolástica, ele não é bem a representação do fascismo. Há nele, contudo, na dimensão medíocre que a sua pobre personalidade proporciona, tudo aquilo de que a tradição fascista historicamente se alimentou. O anti-iluminismo, a exaltação sumária da unicidade nacional, a apologia da violência, o culto irracional do chefe. Bolsonaro é pouco mais do que um analfabeto ideológico com todos os perigos que isso mesmo encerra. Ele e a sua prole de jovens tontos significam hoje o maior perigo com que se depara o mundo ocidental.

2. Alguns analistas políticos, uns por ignorância, outros por má-fé, tentam convencer-nos que os brasileiros terão de escolher nas eleições presidenciais entre a cólera e a peste. Isso não corresponde minimamente à verdade. Equiparar Haddad a Bolsonaro constitui um acto moral e politicamente inqualificável. Quem o faz torna-se cúmplice de Bolsonaro, da sua vertigem proto-fascista, da sua propensão para o culto da violência. É por isso que não pode haver hesitações neste momento da história do Brasil e, de uma certa maneira, da própria história da Humanidade. Haddad é um intelectual sofisticado, um democrata respeitador dos princípios fundamentais das sociedades abertas e pluralistas, um homem de reconhecida integridade cívica e moral. O PT cometeu erros nos anos em que governou o Brasil? Cometeu decerto, como todos os demais partidos que desempenharam funções governativas durante muito tempo em qualquer parte do mundo. Há, porém, uma coisa que é preciso afirmar enfaticamente nesta hora especialmente dramática: nem Lula, nem Dilma Rousseff alguma vez puseram em causa o Estado de Direito brasileiro. Ambos pugnaram por um Brasil mais justo e contribuíram fortemente para o alargamento das condições de afirmação da liberdade individual de milhões de brasileiros a quem o destino aparentava não conceder outra vida que não fosse a miséria, o sofrimento e absoluta exclusão social. Fizeram-no sempre no respeito pelas regras da democracia liberal, enfrentando a hostilidade de uma comunicação social globalmente desfavorável e os ferozes ataques dos grandes oligopólios económicos. Muitas vezes é difícil percebermos o que isso significa a partir de uma perspectiva europeia. Mas quem viajou dezenas de vezes para a América Latina, como eu fiz nos últimos anos, sabe bem o que isso traduz naquele sacrificado continente. Ali, ser pobre corresponde a ser muito mais pobre do que no nosso velho continente europeu; ali, ser mulher, ser homossexual, ser indígena, ser desempregado, ser mãe solteira, comporta uma carga sem correspondência com o que se passa no mundo que nós próprios habitamos.

Uma vitória de Bolsonaro significaria um retrocesso civilizacional para o Brasil e para o mundo. Não estamos, por isso, a falar de um confronto político e ideológico normal. Estamos perante um verdadeiro confronto entre a civilização, por mais ténue que esta seja, e a barbárie. Haddad é hoje mais do que Haddad, é mais do que o PT, é mesmo mais do que o Brasil. Haddad é o símbolo da luta da razão crítica contra o obscurantismo, da liberdade face ao despotismo, da aspiração igualitária diante do culto das hierarquias de base biológica ou social. É por isso que este combate nos interpela a todos. Estamos perante um momento de divisão clara entre o que no Homem há de apelo à razão, ao culto da liberdade, ao sentido da fraternidade, e o que no mesmo Homem há de impulso básico para o autoritarismo, a servidão e a anulação da inteligência crítica. Há horas na história em que tudo se reconduz a uma dicotomia simples que é ela própria o oposto de uma redução ao simplismo. Sejamos claros, no Brasil, hoje, a opção é evidente: Haddad significa a civilização, Bolsonaro representa a barbárie.

3. Fernando Henrique Cardoso tem a absoluta obrigação de se pronunciar num momento decisivo da vida do seu país. Este é o momento em que verdadeiramente se ajuizará do seu papel histórico. Até aqui prevaleceu a figura do intelectual brilhante, do ministro das finanças eficaz, do Presidente da República naturalmente polémico, mas reconhecidamente superior. O seu passado responsabiliza-o especialmente nas presentes circunstâncias históricas. Fernando Henrique Cardoso tem a obrigação moral de apoiar Haddad. Se o não fizer apoucar-se-á perante os seus contemporâneos e sobretudo diante dos futuros historiadores do Brasil.

sábado, 13 de outubro de 2018

É o Whatsapp, estúpido!



Foto: Divulgação
Por Wilson Gomes, publicado na Revista Cult
Dizem que Lula disse que Haddad tem que ir às ruas, para ganhar a eleição. Ruas são legais e, afinal, não já combinamos que todo político popular tem que ir aonde o povo está? Na verdade, contudo, ruas são boas mesmo é para gerar tomadas para os programas eleitorais e para se conquistar “free media” nas coberturas dos jornais e telejornais. Além disso, não foi nas ruas que a campanha pró-Bolsonaro achou 49 milhões de eleitores.
Dizem que a esperança agora é uma campanha televisiva com mais tempo e com apenas dois adversários. O PT, afinal, sempre foi bom de propaganda na televisão, desde o longínquo 1989, quando parodiou com grande sucesso de público e crítica a arqui-inimiga Globo ao inventar a Rede Povo. Mas, não, não foi no sofá em frente à TV que os bolsominions encontraram 49 milhões de eleitores e ainda tomaram eleitores de Alckmin, que tinha 40 vezes mais tempo de tela do que o seu candidato. Nem certamente foi nas entrevistas e debates televisivos que o deputado simplesmente ignorou quando quis, que Bolsonaro foi buscar os votos de que precisava para quase liquidar a fatura da corrida eleitoral no primeiro turno.
Dizem que a campanha do PT decidiu que vai ser preciso dar mais atenção às redes sociais digitais e aos blogs (que petistas digitais tem uma crença enternecedora em blogs), dando um “up” nos perfis públicos do candidato e, quem sabe, investindo em impulsionamento. Bolsonaristas e o próprio Bolsonaro mandaram muito bem no Twitter e no Facebook, inclusive trocando entrevistas em redes de televisão por “lives” no Facebook e por vídeos improvisados postados no Twitter. Até mesmo, forçando o centro da visibilidade pública nacional, o prime time do telejornalismo, a reproduzir vídeos mambembes publicados digitalmente pelo próprio candidato, em direto, provocador e inusitado desafio à televisão. Mas a campanha em redes sociais foi apenas a superfície da campanha digital, cujo centro foi constituído por um aplicativo de comunicação instantânea e não por uma “rede social”. Sim, desculpem os petistas, mas não foi exatamente em redes sociais digitais que a campanha pró-Bolsonaro capturou, motivou, mobilizou e transformou em ativistas os bolsominions que foram à cata dos 49 milhões de votos depositados na conta do deputado no primeiro turno da corrida presidencial.
“Redes sociais” são um negócio antigo, totalmente 2017. O termo do ano em 2018 é “mídias digitais”. Se quisermos ser mais específicos, a palavra é WhatsApp. A campanha digital pró-Bolsonaro é centrada no aplicativo, para onde e de onde se dirigem os fluxos de tráfego que vão e vêm das e para as redes sociais digitais, sites de fake news, YouTube, portais dos jornais e telejornais.
Há evidentes vantagens em se preferir WhatsApp a redes sociais digitais. A visibilidade nas redes sociais é gerenciada por algoritmos fora do controle dos seus usuários, o WhatsApp não tem algoritmos controlando a distribuição e o alcance dos conteúdos. Redes sociais são públicas e, portanto, as pessoas podem ser chamadas a responder pelo que publicam, enquanto o WhatsApp é privado e facilmente passa sob o radar da autoridade eleitoral. O que é publicado em redes sociais digitais chega às pessoas se elas ativamente se conectarem a essas redes e procurarem tais conteúdos, enquanto o material publicado no WhatsApp chega aos telefones pessoais até de forma passiva, inadvertidamente. É um conteúdo invasivo e onipresente que chega aos bolsos e às mentes das pessoas por meio dos hoje indispensáveis e altamente disseminados aparelhos celulares.
Grupos de WhatsApp de apoio a Bolsonaro (há dois meses frequento alguns deles) serviram basicamente para fins de veiculação de teorias da conspiração, fake news de desmascaramentos de fantasiosos complôs, fakes news para disseminar mentiras sobre os adversários, declarações de “já ganhamos”, mobilizações para “vamos atacar fulano que não gosta de nós” e ampla oferta de memes e áudios para serem distribuídos, a partir dos grupos, para os formigueiros digitais. O WhatsApp é a superfície comunicacional, o ambiente digital, que conecta e articula dezenas de milhões de telefones celulares, portanto, de pessoas. Demora poucos segundos apenas para que um meme, um áudio, uma fake news inserida no sistema linfático dessa rede gigantesca de smarphones e militantes por meio de um grupo de WhatsApp de apoio a Bolsonaro passe para os grupos de família, de amigos, de colegas de trabalho ou faculdade, da turma do futebol ou do tênis e, enfim, chegue a todas as pessoas listadas nos contatos do meu telefone. Não há precedentes históricos para um sistema tão eficiente de disseminação de conteúdo de campanhas.
A campanha no WhatsApp é muito peculiar: é de baixo para cima, funciona independentemente da coordenação de campanha (se há), apoia-se em uma infraestrutura enorme de grupos hiperativos, tem extrema capilaridade, um alcance inigualável e uma velocidade de difusão até então desconhecida. Por outro lado, não conhece limites morais: mente-se, falsifica-se, forja-se, inventa-se, faz-se o que se julgar apropriado para defender o próprio candidato ou para atacar adversários. Como as moderações são mínimas, e servem basicamente para banir infiltrados, podem imaginar como esses grupos são um vale-tudo incessante.
No sábado, véspera do primeiro turno, por exemplo, circulou amplamente que o TSE estava armando uma cilada para anular os votos dos bolsonaristas que fossem votar com a camisa do Mito e que Rui Costa havia proibido que os militares fossem votar na Bahia. Tudo postado em tom de urgência e conspiração. Quatro minutos depois que o áudio “denunciando” o recolhimento dos militares aos quarteis por obra do governador, o mesmo material já estava em todos os meus grupos pessoais de amigos que conta com algum bolsominion (e quem não os tem?). No domingo pela manhã, a mesma febril e paranoica atividade de “denúncias” da conspiração das urnas eletrônicas: que em 70% das urnas ou não havia o nº 7 ou não aparecia a foto do deputado ou não foi convalidado o voto nele. E que faltava pouco para uma intervenção militar. O resto da energia foi empregado para o acompanhamento de eventos, em tempo real, como a retumbante vitória do Mito na Ásia e na Oceania. E depois, à noite, para celebrar o fato de que Jean Wyllis não havia sido eleito, provavelmente o mais desejado prêmio da campanha, depois da vitória de Jair. Tudo isso, fora os feitos na Ásia, era falso, mas quem se importa?
Os grupos de WhatsApp enfrentaram a TV e ganharam, mas também não fizeram menor estrago nas ruas. A campanha digital baseada em dispositivos móveis passou por cima de mobilizações de protestos de rua sem grande esforço no seu primeiro teste, quando ressignificaram completamente o #elenão e ganhou do movimento como quis, no modo como o editaram, empacotaram e o distribuíram online. Inclusive o foram desconstruindo em tempo real, enquanto as manifestações ainda estavam acontecendo. Assim, um belíssimo movimento de rua foi desconfigurado e reeditado, para fins de mobilização da rede ultraconservadora, disparando (não falei causando), paradoxalmente, a corrida para o voto em Bolsonaro a que assistimos na última semana da campanha antes do primeiro turno.
Desde a eleição de Obama em 2008, a gente esperava que alguém de esquerda no Brasil fosse entender e dar valor à campanha digital “de baixo para cima”. Nunca a entenderam, nunca a valorizaram. Nem a esquerda nem a direita. Aí veio a extrema direita digital em 2018 e anulou os efeitos da campanha televisiva, derrotou o único grande movimento de rua acontecido nesse período, passou por cima de todas as barreiras que as empresas de plataforma quiseram impor à distribuição de campanha negativa e conteúdo falso e ainda ganhou de goleada das formas tradicionais de articulação política de base.
Os petistas foram muito ágeis em 1989, ao adotar rapidamente a gramática da televisão, que era o meio dominante. Por isso ganhou de Brizola, um homem de palanque e rádio, e disputou o segundo turno com Collor, um homem-TV. Mas nunca foram bons no mundo digital nem o entenderam. Chegaram no máximo à fase dos blogs, o instrumento preferido dos “bloqueiros sujos” – ou lulistas, segundo as más línguas. Nunca se deram bem em redes sociais. Um desastre. Dilma deixou o seu perfil no Twitter abandonado por, literalmente, 4 anos. É, portanto, claro que ainda não compreendem os paranauês de uma campanha baseada no WhatsApp. O ano que vem eles os entendem, não os apressem.

domingo, 7 de outubro de 2018

Por que votamos em Hitler


Por que votamos em Hitler

Por que a Alemanha, o país com um dos melhores sistemas de educação pública e a maior concentração de doutores do mundo na época, sucumbiu a um charlatão fascista?


 - El País

Por que votamos em Hitler
Ao longo da década de 1920, Adolf Hitler era pouco mais do que um ex-militar bizarro de baixo escalão, que poucas pessoas levavam a sério. Ele era conhecido principalmente por seus discursos contra minorias, políticos de esquerda, pacifistas, feministas, gays, elites progressistas, imigrantes, a mídia e a Liga das Nações, precursora das Nações Unidas. Em 1932, porém, 37% dos eleitores alemães votaram no partido de Hitler, a nova força política dominante no país. Em janeiro de 1933, ele tornou-se chefe de governo. Por que tantos alemães instruídos votaram em um patético bufão que levou o país ao abismo?
Em primeiro lugar, os alemães tinham perdido a fé no sistema político da época. A jovem democracia não trouxera os benefícios que muitos esperavam. Muitos sentiam raiva das elites tradicionais, cujas políticas tinham causado a pior crise econômica na história do país. Buscava-se um novo rosto. Um anti-político promoveria mudanças de verdade. Muitos dos eleitores de Hitler ficaram incomodados com seu radicalismo, mas os partidos estabelecidos não pareciam oferecer boas alternativas.
Em segundo lugar, Hitler sabia como usar a mídia para seus propósitos. Contrastando o discurso burocrático da maioria dos outros políticos, Hitler usava um linguajar simples, espalhava fake news, e os jornais adoravam sugerir que muito do que ele dizia era absurdo. Hitler era politicamente incorreto de propósito, o que o tornava mais autêntico aos olhos dos eleitores. Cada discurso era um espetáculo. Diferentemente dos outros políticos, ele foi recebido com aplausos de pé onde quer que fosse, empolgando as multidões. Como escreveu em seu livro "Minha Luta":
Toda propaganda deve ser apresentada em uma forma popular (...), não estar acima das cabeças dos menos intelectuais daqueles a quem é dirigida. (...) A arte da propaganda consiste precisamente em poder despertar a imaginação do público através de um apelo aos seus sentimentos.
Em terceiro lugar, muitos alemães sentiram que seu país sofria com uma crise moral, e Hitler prometeu uma restauração. Pessoas religiosas, sobretudo, ficaram horrorizadas com a arte moderna e os costumes culturais progressistas que surgiram por volta de 1920, época em que as mulheres se tornavam cada vez mais independentes, e a comunidade LGBT em Berlim começava a ganhar visibilidade. Os conservadores sonhavam com restabelecer a antiga ordem. Os conselheiros de Hitler eram todos homens heterossexuais brancos. As mulheres, ele argumentou, deveriam se limitar a administrar a casa e ter filhos. Homens inseguros podiam, de vez em quando, quebrar vitrines de lojas, cujos donos eram judeus, para reafirmarem sua masculinidade.
Em quarto lugar, apesar de Hitler fazer declarações ultrajantes – como a de que judeus e gays deveriam ser mortos -, muitos pensavam que ele só queria chocar as pessoas. Muitos alemães que tinham amigos gays ou judeus votaram em Hitler, confiantes de que ele nunca implementaria suas promessas. Simplista, inexperiente e muitas vezes tão esdrúxulo, que até mesmo seus concorrentes riam dele, Hitler poderia ser controlado por conselheiros mais experientes, ou ele logo deixaria a política. Afinal, ele precisava de partidos tradicionais para governar.
Em quinto, Hitler ofereceu soluções simplistas que, à primeira vista, faziam sentido para todos. O problema do crime, argumentava, poderia ser resolvido aplicando a pena de morte com mais frequência e aumentando as sentenças de prisão. Problemas econômicos, segundo ele, eram causados por atores externos e conspiradores comunistas. Os judeus - que representavam menos de 1% da população total - eram o bode expiatório favorito. Os alemães "verdadeiros" não deviam se culpar por nada. Tudo foi embalado em slogans fáceis de lembrar: "Alemanha acima de tudo", "Renascimento da Alemanha", "Um povo, uma nação, um líder."
Em sexto lugar, as elites logo aderiram a Hitler porque ele prometeu -- e implementou -- um atraente regime clientelista, cleptocrata, que beneficiava grupos de interesses especiais. Os industriais ganharam contratos suculentos, que os fizeram ignorar as tendências fascistas de Hitler.
Em sétimo, mesmo antes da eleição de 1932, falar contra Hitler tornou-se cada vez mais perigoso. Jovens agressivos, que apoiavam Hitler, ameaçavam os oponentes, limitando-se inicialmente ao abuso verbal, mas logo passando para a violência física. Muitos alemães que não apoiavam o regime preferiam ficar calados para evitar problemas com os nazistas.
Doze anos depois, com seis milhões de judeus exterminados e mais de 50 milhões de pessoas mortas na Segunda Guerra Mundial, muitos alemães que votaram em Hitler disseram a si mesmos que não tinham ideia de que ele traria tanta miséria ao mundo. “Se soubesse que ele mataria pessoas ou invadiria outros países, eu nunca teria votado nele ”, contou-me um amigo da minha família. “Mas como você pode dizer isso, considerando que Hitler falou publicamente de enforcar criminosos judeus durante a campanha?”, perguntei. “Eu achava que ele era pouco mais que um palhaço, um trapaceiro”, minha avó, cujo irmão morreu na guerra, responderia.
De fato, uma análise mais objetiva mostra que, justamente quando era mais necessário defender a democracia, os alemães caíram na tentação fácil de um demagogo patético que fornecia uma falsa sensação de segurança e muito poucas propostas concretas de como lidar com os problemas da Alemanha em 1932. Diferentemente do que se ouve hoje em dia, Hitler não era um gênio. Não passava de um charlatão oportunista que identificou e explorou uma profunda insegurança na sociedade alemã.
Hitler não chegou ao poder porque todos os alemães eram nazistas ou anti-semitas, mas porque muitas pessoas razoáveis fizeram vista grossa. O mal se estabeleceu na vida cotidiana porque as pessoas eram incapazes ou sem vontade de reconhecê-lo ou denunciá-lo, disseminando-se entre os alemães porque o povo estava disposto a minimizá-lo. Antes de muitos perceberem o que a maquinaria fascista do partido governista estava fazendo, ele já não podia mais ser contido. Era tarde demais.

Por que voto em Haddad



Luís Costa Pinto:

 Por que voto em Haddad

Será 1 voto de esperança
Haddad é o melhor quadro da sua geração, escreve autorRicardo Stuckert/Reprodução Twitter Fernando Haddad.| 2.out.2018.

07.out.2018 (domingo) - 4h30
atualizado: 07.out.2018 (domingo) - 15h54
O ambiente político do Brasil de 2019 será necessariamente conflagrado. Não é necessário ser astrólogo ou vidente para antever isso. Numa analogia, nós cidadãos livres e democratas brasileiros podemos nos sentir como os heróis aliados que desembarcaram na Normandia em 1944
Do mar, miravam tensos e cheios de coragem a França ocupada pelos nazistas e por franceses colaboracionistas. Muitos morreram como alvo, ainda nos paraquedas. Milhares morreram na praia. Escondidos em bunkers e casamatas, os apoiadores de Hitler se sentiam onipotentes e inexpugnáveis. A libertação da Europa começava ali, e naquele desembarque escreveu-se uma página memorável da liberdade.
Pela primeira vez na história de nossa República chega-se ao dia da eleição tendo-se a certeza de que o resultado do voto popular pode estar contaminado por um veneno capaz de matar a própria democracia –no nosso caso, tisnada já pelo golpe parlamentar de 2016 que apeou do poder uma presidente sem a caracterização clara de crime de responsabilidade. Nem com Jânio Quadros, em 1960, nem com Fernando Collor, em 1989, o enredo transcorreu dessa forma.
Ícones da direita brasileira e igualmente desprovidos de coluna vertebral política, assim como Bolsonaro, Jânio e Collor se elegeram a partir de discursos populistas e embalados por uma esperança difusa da população. Mas ao menos projetavam esperança. Nenhum dos dois completou o mandato. Um renunciou dizendo enxergar inimigos ocultos e bruxas em Brasília. O outro foi cassado por corrupção.
Nem Collor nem Jânio gozavam de prestígio entre os operadores da política. A política exige operadores frios, experientes, republicanos e democratas –assim como o direito também os exige e os tem.
Neste 2018, que é ano par de uma estranheza ímpar, o radical de extrema direita politicamente amorfo, posto ser desprovido de espinha dorsal no sistema, chama-se Jair Bolsonaro e não projeta esperança alguma –só ódio e preconceito. Prega medos difusos e é defendido por espertalhões travestidos pelo manto bíblico do fanatismo religioso.
A renúncia de Jânio Quadros lançou o país numa conflagração que terminou no golpe militar de 1964 e na longa noite de 21 anos da ditadura militar, em que pese a habilidade política de Tancredo Neves, o respeito que se tinha a San Thiago Dantas, a sofisticada costura política de Juscelino sentado em sua cadeira de senador. Todos eles foram fiadores, em algum momento, da presidência de transição de João Goulart (que também não era nenhum extremista).
A cassação de Collor, ao contrário, converteu-se na confirmação dos acertos de nossa consolidação democrática. O vice-presidente Itamar Franco assumiu a Presidência com seu ar de parvo, seu comportamento de outsider, mas se revelou um régio cumpridor dos compromissos para com a Constituição e a restauração política. Itamar dispunha de interlocução profunda no Congresso, pontes com os sindicatos e a sociedade civil e gozava ao menos do respeito com ar blasé do Judiciário.
Não é assim agora.
Sem projetar esperança alguma, sendo o canhão tosco e desconcertante de ódio que não esconde ser, Jair Bolsonaro não possui aptidão para o necessário jogo do poder. Não goza nem da confiança, nem do respeito dos demais poderes da República. Não inspira liderança aos seus, longe disso: desperta o senso de oportunidade em gente que jamais alcançou o respeito em seus habitats naturais e agora enxerga o atalho da proximidade com o candidato melhor posicionado nas pesquisas de intenção de voto como caminho para a glória –é o caso de Onyx Lorenzoni, Magno Malta, Gustavo Bebianno, Hamilton Mourão, Silas Malafaia e os filhos do presidenciável. Quanto a Paulo Guedes, o mercado financeiro, onde se criou, sabe a dimensão mitômana de sua alma.
Fernando Haddad é a negação a isso. Não é preciso ser petista para se tornar eleitor dele –e esse, a propósito, vem a ser meu caso.
A única filiação partidária que tive, aos 19, 20 anos, foi ao PSDB. Depois, a vida profissional obrigou-me a esquecer qualquer pretensão de ter vida partidária.
Nas 7 eleições presidenciais que tivemos desde 1989 votei 3 vezes em candidatos que não eram do PT –Mário Covas (1989), Ciro Gomes (2002) e Marina Silva (2014, em homenagem ao meu amigo Eduardo Campos)– nos primeiros turnos. Sempre encarei o 2º turno como aquilo que ele deve ser: o momento da depuração dos projetos, da construção do encontro da sociedade com a proposta política acordada nas urnas que a pautará nos 4 anos seguintes.
Haddad, homem de sólida formação tanto acadêmica quanto na lide democrática, tem uma virtude hoje escassa entre os políticos de proa: sabe ouvir o outro. Discordando, sabe explicar as razões da discórdia. É do tipo que opta por caminhos vislumbrando e analisando os cenários que poderão vir em revés.
Seu diapasão intelectual permite-o reunir à sua volta personalidades díspares como os economistas Marcos Lisboa e Samuel Pessoa, mas também Laura Carvalho e o cientista social Celso Rocha de Barros. Ele senta à mesa com Guilherme Boulos e com os empresários Josué Gomes da Silva e Walfrido dos Mares Guia. Dialoga com Lula e com Fernando Henrique Cardoso sabendo ouvir de cada um desses ex-presidentes o melhor que têm a dizer –filtrando-lhes os exageros e os partidarismos. São só exemplos, e esses paralelos podem ser elencados e reproduzidos à farta.
Ao escolher Emídio de Souza como interlocutor central com o PT “de raiz”, afastando-se paulatinamente de nomes que mais estreitavam e atrapalhavam o diálogo com núcleos mais amplos e não petistas da cena política, Haddad revelou uma habilidade de iniciado. Não se mostrou um iniciante aventureiro e arrivista.
Emídio é hoje, no PT, a ponte mais sólida entre o passado que precisa ser restaurado e procura os caminhos legais e institucionais para isso, e o futuro que urge ser construído. Nisso, faz dupla com Jaques Wagner, que deve ser eleito senador pela Bahia e terá mais tempo para se dedicar à campanha presidencial a partir daí. Wagner é também um dos mais amplos quadros desse PT que representa, inegavelmente, uma considerável parcela dos anseios dos brasileiros.
Tenho certeza que nas 3 semanas de campanha que teremos no 2º turno, numa disputa entre Fernando Haddad e Jair Bolsonaro, as qualidades do candidato do PT serão realçadas ante à ausência de requisitos políticos, morais e intelectuais do ex-capitão do Exército.
Será o momento não só de a maioria do eleitorado brasileiro descobrir que o ex-prefeito de São Paulo é o melhor quadro de sua geração –disputava esse posto com Eduardo Campos– e representa tudo aquilo que desejam os cidadãos ansiosos por escutar alguma autocrítica do PT antes de dar novamente um voto a um petista.
Haddad, por formação e por convicção, não reproduzirá erros partidários. Não fez isso na Prefeitura de São Paulo nem no Ministério da Educação. Foi essa atitude rígida que dificultou seu trânsito inicial dentre os nomes mais antigos do partido.
Haddad possui duas qualidades que Fernando Henrique Cardoso gostava de citar, nos preâmbulos de suas entrevistas no Palácio da Alvorada, como inexoráveis aos candidatos a estadistas: saber rir de si mesmo e diminuir o tamanho das crises quando elas entram em seu gabinete.
Imaginar que alguém será capaz de sufragar o arrivismo estreito, obtuso e obscurantista de Jair Bolsonaro tendo à disposição a biografia e o espírito amplo e aberto de Fernando Haddad é algo que entristece e choca.
O candidato petista é quem tem a melhor estrutura, o maior preparo e a frieza necessários para contemplar a praia e o teatro de operações depois dos combates que serão travados entre 7 e 28 de outubro e desarmar as minas e as bombas ativadas pelos antagonistas em conflito.
Os aliados que desembarcaram na Normandia, em 1944, eram britânicos, americanos, canadenses, australianos, franceses e italianos arregimentados na resistência, um ou outro holandês ou belga foragido. Como aqui, hoje, o desembarque nas urnas desse 7 de outubro vale ser feito sob qualquer bandeira. Ele não pode ser feito, contudo, sob a bandeira do ódio, da misoginia, da violência, do retrocesso arregimentados por um único candidato que fugiu do debate político e quer ser ungido em nome do medo.
O que os uniu os aliados no passado foi o espírito democrático e a gana por lutar até o fim para derrotar o mais bárbaro dos inimigos. Uniram-se para vencer a maior ameaça já enfrentada pela humanidade até aquele momento: Hitler.
Guardadas as proporções, mas com os mesmos sinais de alerta ligados porque o histrionismo boçal de Bolsonaro é um arremedo tupiniquim e bissexto do hitlerismo, qual um Führer de hospício, confio fortemente na aliança dos democratas de diversos matizes até a vitória da democracia e da liberdade em 28 de outubro.
Voto em Haddad desde o 1º turno, e confirmarei esse voto no 2º turno, porque vejo nele a reunião de qualidades escassas em muitos políticos. Além disso, é o antagonista de um outro candidato que significa ameaça real e objetiva às nossas conquistas democráticas. Fernando Haddad projeta esperança. Seu adversário, ódio, divisões, rupturas.

sábado, 6 de outubro de 2018

Porre, porrete e psicologia das massas



PORRE, PORRETE E PSICOLOGIA DAS MASSAS


Mario Sergio Conti
Em 1961, Jânio Quadros
 encheu a cara e tentou dar um golpe para passar de presidente a ditador. Bebeu mal, pisou na jaca e fugiu num cargueiro. O golpe veio menos de três anos depois. Foi dado pelas forças que o elegeram. A anarquia serviu de pretexto para chamarem os militares.

Há um mês, o general Hamilton Mourão, candidato a vice de Jair Bolsonaro, disse que o próximo presidente pode dar um autogolpe se anarquia houver. Segundo a Constituição, quem define o que é anarquia e aciona as Forças Armadas é um dos três Poderes.

No Supremo, o presidente no próximo período será Dias Toffoli. Toga preta chegado ao verde-oliva, ele nomeou um general como braço direito. Disse não ter havido nem golpe nem ditadura em 1964. Mandou a liberdade de imprensa às favas e censurou a Folha.

Na Câmara, caso seja acatada a proposta do general Mourão, o presidente será Levy Fidelix. O maníaco do aerotrem chamou os gays de doentes mentais, defendeu que a homossexualidade écontagiosa e associou-a a pedofilia.

Se Jânio era a UDN de porre, Jair é o PSL de porrete. Eleito, terá a legitimidade do voto, o amparo da lei e, a seus pés, partidos prostrados ou servis. Bastará a Bolsonaro dar um assobio da janela do Planalto para chamar os milicos: já avisou que terá um montão de ministros generais.

Enquanto o lobo não vem, os fardados terão com o que se entreter. Como Bolsonaro defendeu a tortura em certas situações, poderão estudar como bem aplicá-la. Arrancar unhas com alicate? Os choques na genitália, tão anos 1970? Ou a uberfashion americana dowaterboarding (afogamento simulado)?

O capitão e sua tropa escancaram o que pretendem. Acham o 13º uma jabuticaba a ser erradicada do pomar pátrio. Querem extorquir mais impostos de gente exangue. Estão doidos para privatizar tudo —escolas, hospitais, metrôs e, presume-se, a fabricação em série de paus de arara.

Nas domingueiras na Paulista contra Dilma, em 2016, havia grupos enormes a pregar a volta da ditadura. Tinham caminhões, alto-falantes e proteção da PM —o que denotava um dinheiro razoável e articulação política de porte. Mas esse não é o ponto.

O ponto: os autoritários tinham a simpatia da massa. Ela não os hostilizava, ao contrário. Os pró-ditadura contaram com o acoelhamento interesseiro dos liberais. São minoritários, foi o trololó de um deles ao arrumar o cashmere, amarrado nos ombros com estudada displicência.

Das tardes na Paulista às pesquisas eleitorais, o movimento das massas pela opressão se exacerbou. As explicações políticas, econômicas e sociológicas são indispensáveis. Mas algo sempre parece se lhes escapar: a irracionalidade bestial do fenômeno.

Por que o encantamento com a boçalidade? Por que milhões ficam surdos à razão e se insurgem contra os próprios interesses? Para obter indícios de respostas é produtivo conhecer as especulações de um clássico sobre o tema, Psicologia das Massas e Análise do Eu, de Freud.

Escrito no entre-guerras, o livro teve como móvel a crise da civilização europeia, com a transformação do iluminismo em selvageria. Seguindo Le Bon, Freud diz que, ao se dissolver na massa, o indivíduo solta seus impulsos inconscientes, comete atos contrários a seu caráter e costumes.

O líder, um demagogo teatral, propaga a energia libidinal que une os indivíduos na massa. Os que veem a sexualidade como vergonhosa acatam aquele que diz que eles não devem se reprimir —devem, isso sim, reprimir aqueles que evidenciam a sua sexualidade.

É o caso do aerotrem que atropela gays. Da ira de Bolsonaro contra a curiosidade indecente das crianças em relação à sexualidade. Como o inconsciente do líder fala diretamente ao inconsciente dos indivíduos, a massa fica imune à argumentação fundada na lógica.

O triunfo da irracionalidade se dá por meio de sugestão e contágio. A sugestão faz com que insinuações agressivas sejam aceitas como verdades. É o caso das fake news. Elas se disseminam porque reforçam aquilo em que massa já acreditava. A realidade não importa.

As fake news se espalham por meio do contágio. Ou seja, da união dos sedentos por submissão, que se juntam numa turba onipotente. Hoje, o contágio prescinde até da massa real, concreta: oWhatsApp faz com que células isoladas virem manadas desembestadas em poucos minutos.

No Brasil destes dias a combustão de neuroses particulares em paranoia coletiva parece iminente. A descrença na ação racional, porém, só pode ser barrada por ela mesma: a consciência racional.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Por que #EleNão



PORQUE #ELENÃO – Dani Cronemberger

2OUT

Querida família: por que #EleNão

Em 26 de setembro de 2018
por Dani Cronemberger

ele_nao

Querida família, queridos amigos,

Ontem, ao menor sinal de discordância, uma pessoa querida por mim saiu de um grupo da família, e isso me fez pensar no tamanho da crise pela qual passamos: uma crise de ausência total de diálogo. A conversa via redes sociais e whatsapp reduziu nossa interação a uma ou outra frase de efeito, com um embate reduzido a poucas ideias superficiais, e isso tem inviabilizado qualquer debate real. Eu tenho responsabilidade nisso também.

Por isso, achei necessário explicar por que a questão “o Coiso” atinge meu corpo e minha mente com tanta dor. Você não é obrigado a ler, claro. Mas se tiver apreço por mim e quiser entender onde me dói, vou tentar te explicar.

É importante começar dizendo que minha primeira opção nestas eleições não é o PT. Porque, ao que parece, todo e qualquer argumento contra “o Coiso” é desqualificado imediatamente com o carimbo de “petista” ou “petralha”. Reconheço muitas conquistas excelentes do governo Lula, mas reconheço também muitos erros gravíssimos, e acho a falta absoluta de autocrítica e autoanálise do PT um erro tão grave quanto a corrupção. Não acho o PT o pior partido do país – quem acompanha a política sem a névoa do ódio nos olhos consegue ver que, infelizmente, tem coisa pior por aí. O demônio não é um partido, mas o sistema político corrompido, gritando por uma reforma política decente. Mas acho que, sim, deveria existir uma alternativa viável, que diminuísse essa polarização absurda. Só que não há, por enquanto. Talvez haja nas próximas eleições, espero.

Dito isso, vou falar sobre a hipótese de segundo turno entre Haddad e “o Coiso”. E começar dizendo o quão absurdo é colocar esses dois candidatos no mesmo patamar. Eles não são duas faces da mesma moeda. Eles não são comparáveis. Simplesmente porque “o Coiso” não está no mesmo nível, como pessoa capaz de governar e especialmente como ser humano, de nenhum outro candidato destas eleições. No campo político oposto a Haddad estão Alckmin, Amoêdo, Meirelles. E eu votaria em qualquer um deles, qualquer um, contra “o Coiso”. Ainda que eu fosse totalmente contra o partido, suas bandeiras e prioridades. Porque não tem comparação.

E por que não? São tantos motivos que não sei por onde começar, juro. Mas acho que bastaria dizer um: o grande herói, o grande ídolo deste homem é um torturador. Eu gostaria muito de parar por aqui, porque queria acreditar que esta é uma razão suficientemente grave, que vai muito além da política e do nosso sistema político corrompido. O meu primeiro choque, e minha primeira dor, surgem neste ponto: isso não é suficiente para que fique claro que “o Coiso” é a pior opção, seja qual for o seu opositor. Então, não posso parar por aqui. Preciso continuar argumentando.

O grande herói e ídolo deste homem foi o primeiro agente da ditadura a ser reconhecido como torturador pela Justiça brasileira. É responsável por pelo menos 45 mortes e desaparecimentos – ou seja, execuções sem direito a defesa ou julgamento judicial. Carlos Alberto Brilhante Ustra espancou e aplicou choques em uma mulher grávida de 7 meses. Colocou mulheres e homens em pau-de-arara, aplicou eletrochoques em lugares diversos de seus corpos, incluindo mamilos e órgãos genitais, submeteu pessoas a afogamentos, palmatória e espancamentos. Levou duas crianças (de 4 e 5 anos) para assistir seus pais torturados, nus, sujos de vômito, fezes, urina e sangue. Este é o herói de um candidato à Presidência. Mas preciso continuar argumentando.

Fico espantada ao ver pessoas inteligentes dizendo: “mas ele disse que não é homofóbico”. Machista? “Não exagera”. Racista? “Você é muito radical”. Eu não sei se algumas pessoas preferem acreditar nisso, pra se abster da culpa moral, ou se na verdade elas concordam com a tortura e o preconceito, e “o Coiso” funciona como um espelho. Tento acreditar que muitas não o conhecem de fato.

Acompanho a vida política do “o Coiso” há muitos anos, desde quando ele era conhecido só no Rio de Janeiro e ninguém o levava a sério. E posso dizer com toda a clareza que ele é um dos piores seres humanos que já conheci. Dedicou sua vida parlamentar, por décadas, a disseminar preconceitos, humilhações e palavras de ódio por onde andava – avalizando, incentivando e proliferando intolerância e violência. A existência de alguém como ele, com poder e visibilidade, dá permissão a milhões de pessoas de agir da mesma forma. Ele explora o pior lado do ser humano e isso é muito grave. Provoca muita dor.

Não acredito que os outros candidatos são santos, não. O machismo, a homofobia e o racismo são problemas estruturais da nossa sociedade. Não estou dizendo que políticos do PT nunca incentivaram nenhuma violência. Só estou dizendo que não existe ninguém pior do que ele dentre as opções. Nenhum candidato, no primeiro ou no segundo turno, chega a esse nível de degradação e tem tanto orgulho de ser desumano.

“O erro da ditadura foi torturar e não matar.”
– entrevista programa Pânico na TV, 2016

“Seria incapaz de amar um filho homossexual. Prefiro que um filho meu morra num acidente.”
– entrevista Playboy, 2011

“Jamais ia estuprar você porque você não merece. Vagabunda.”
– discussão filmada com a deputada Maria do Rosário, em 2013

“Quem procura osso é cachorro”
– cartaz fixado na porta de seu gabinete, sobre a busca de famílias pelos restos mortais de seus parentes desaparecidos durante a ditadura

“Nenhum pai tem orgulho de ter um filho gay. A sociedade brasileira não gosta de homossexuais.”
– entrevista ao cineasta inglês Stephen Fry, em 2013

“Eu fui num quilombola. O afrodescendente mais leve lá pesava 7 arrobas. Não fazem nada! Nem pra procriador eles servem mais”
– palestra no Rio de Janeiro, em 2017

“Eu sou favorável à tortura, e o povo é favorável a isso também. Através do voto você não vai mudar nada neste país, absolutamente nada. Você só vai mudar quando um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil! Começando com o FHC! Matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, toda guerra morre inocente.”
– entrevista TV Bandeirantes, em 1999

“Eu não empregaria [mulheres e homens] com o mesmo salário. Mas tem muita mulher que é competente”
– entrevista Rede TV!, em 2016, explicando que mulher deve ganhar menos porque engravida

Eu, Daniella, sou o gay que ele odeia e que precisa apanhar. Eu sou o filho que ele prefere que morra num acidente. Eu sou a militante que ele torturaria e mataria. Eu sou a mulher que ele diz que não merece ser estuprada (ou talvez eu mereça?). Eu sou a feminista que ele chama de vagabunda e cadela. Sou eu. É sua filha. São suas primas, sua mãe, seus irmãos, seus amigos. E, ainda que desconhecidos, são seres humanos. Isso não é o suficiente para identificar, rapidamente, que ele é a pior opção dentre as piores? Não é o suficiente para que o horror a este homem seja imponderável?

É daí que minha maior dor vem. De perceber que podemos não estar juntos numa questão que não envolve política, envolve os valores mais importantes da vida, pra mim. Porque, ao contrário do que pode parecer, até agora não falei de política partidária em nenhum momento. Só falei de valores humanos, ou da falta deles. Do que eu acredito ser inaceitável do ponto de vista estritamente humano. Só posso acreditar num mundo em que esse tipo de discurso não seja relativizado, relevado como algo de menor importância. Algumas pessoas talvez não façam ideia do potencial destrutivo que isso tem (replicado incansavelmente por milhões de pessoas), ou talvez tenha ideia mas relativize e, por relativizar, o coloque no mesmo patamar que outros políticos. E essa diferença de valores pode ser irreconciliável, para a tristeza de todos nós.

Diga-me o que relativizas, e eu te direi quem és. Para tentar explicar o Holocausto, a alemã Hannah Arendt criou o conceito de “banalidade do mal”. Trata-se do perigo, como ocorreu durante o nazismo, de que as pessoas comuns acabem vendo o mal como algo normal, como algo que apoiamos em nome de um bem maior ou manutenção da ordem. As maiores tragédias humanitárias da História, dizia Hannah, não foram cometidas por monstros, mas por cidadãos comuns que se abstiveram de fazer julgamentos morais. E quem diz o que é um julgamento moral correto ou errado? A consciência de cada um, eu acho. E a História, algum tempo depois.

Sobre política.
Como disse, o PT errou e muito. Espero que todos os crimes cometidos pelo PT e por todos os outros partidos sejam investigados e julgados com justiça. Se a corrupção é sua prioridade, sugiro pesquisar sobre os partidos por onde passou “o Coiso” (o partido onde ele ficou por mais de 10 anos, e só saiu pra se candidatar à Presidência, é o que tem o maior número de denunciados na Lava Jato). Ninguém parece ter curiosidade sobre o partido por trás dele, sobre a funcionária fantasma de seu gabinete, sobre o crescimento impressionante do patrimônio dele e de seus filhos, sobre o dinheiro de propina da JBS que ele recebeu em sua conta, devolveu ao partido e recebeu de volta. Estou citando só algumas coisas pra dizer que a corrupção, sim, é endêmica no nosso sistema político e deve ser combatida, qualquer que seja o vencedor. Se for a corrupção a sua maior preocupação.

Se sua preocupação for mais ampla e envolver segurança, economia, educação, saúde, chego a uma questão política que também me espanta ter de argumentar: não há ninguém tão despreparado e ignorante sobre qualquer assunto importante para o Brasil quanto “o Coiso”. Em 27 anos como político profissional na Câmara, nunca apresentou uma proposta concreta para os problemas do país. Em quase 3 décadas, manteve obsessão por apenas três temas: gays, armas e militares. Em entrevista, neste ano, disse com todas as letras: “Não entendo nada de economia”. Assista à entrevista dele na Globonews (ou em qualquer outro canal) e morra de vergonha com a total incapacidade de responder qualquer pergunta sobre propostas, seja sobre salário mínimo, impostos, preço do diesel, ensino médio, nada. Parece um filme de comédia, mas é trágico. Um candidato que se presta a rabiscar uma cola de 4 palavras na palma da mão para ir a um debate presidencial… peço perdão pela palavra, mas é um debiloide. A revista inglesa The Economist (que representa a voz do liberalismo econômico, mais capitalista e de direita impossível) estampou “o Coiso” na capa, semana passada, com a seguinte manchete: “A mais recente ameaça da América Latina”, apontando que ele seria um “desastre” como presidente. O potencial destrutivo dele não atinge só a paz, a civilidade, a democracia. Atinge o funcionamento do país, atinge todos nós. É destruindo o resto que sobra do Brasil que vamos punir o PT pelos seus erros?

Por fim, queria recomendar a leitura do Manifesto Democracia Sim, assinado por empresários, advogados e artistas de diferentes correntes políticas. Tem de Drauzio Varella a Fernanda Montenegro. De Frei Betto, muito ligado ao PT, a Miguel Reale Jr., jurista e um dos autores do pedido de impeachment da Dilma.

Se você chegou até aqui, obrigada pela paciência. Queria muito ter parado no parágrafo onde falo sobre tortura. Mas é preciso argumentar mais e mais. E isso me dói, porque não se trata de política.

Abraço,
Dani


Nota: ao longo do texto, em cada citação feita pela autora do nome do Coiso eu, por minha conta, alterei para “o Coiso”.