domingo, 28 de março de 2021

A epidemia fugiu do controle, e só podemos contar com nós mesmos

 

A epidemia fugiu do controle, e só podemos contar com nós mesmos

por Drauzio Varella

Brasileiros decretaram o fim do coronavírus em novembro sob a justificativa de que ninguém aguentava mais ficar em casa

Os brasileiros decretaram o fim da epidemia, em novembro do ano passado. Os bares lotaram, multidões nas praias, famílias reunidas no Natal e no Ano-Novo, festas clandestinas à luz da noite espalhadas pelas cidades, Carnaval.

A justificativa para esse comportamento estúpido era a de que ninguém aguentava mais ficar em casa.

Em janeiro, chegaram as férias. Os hotéis dos recantos turísticos voltaram a receber hóspedes, as ruas das metrópoles se encheram de gente aglomerada sem máscara e de ônibus e trens superlotados pelos que não tinham alternativa senão trabalhar.

Alheio a tudo, o presidente da República passeava de jet ski, cumprimentava admiradores e posava sem máscara para selfies, o Ministério da Saúde distribuía o kit Covid, deputados e senadores tentavam aprovar uma emenda à Constituição para livrá-los da prisão em flagrante e faltava coragem à maioria de governadores e prefeitos para decretar medidas rígidas de afastamento social.

Os médicos, os sanitaristas e os epidemiologistas que alertavam para as dimensões da tragédia em gestação eram considerados alarmistas e defensores de interesses políticos escusos.

Deu no que deu: 300 mil mortos, hospitais com UTIs sem leitos para oferecer aos doentes graves, milhares de pacientes morrendo à espera de uma vaga.

O que acontecerá nas próximas semanas? Chegaremos a 400 mil mortes?

Os hospitais brasileiros estão em colapso. Os infectados foram tantos que abrir mais leitos em UTI é enxugar gelo. Os gestores investem em equipamentos e profissionais para abrir vagas que serão ocupadas em menos de 24 horas.

O número de óbitos em casa e nas unidades básicas de saúde despreparadas para o atendimento é enorme. Os estoques de medicamentos para a sedação dos doentes entubados chegam ao fim. Começam a faltar até corticosteroides e anticoagulantes, medicações de baixo custo que o Ministério da Saúde não se preocupou em adquirir.

As vacinas perderam o “timing” para conter a escalada atual. Ainda que fosse possível vacinar todos os brasileiros neste fim de semana, as mortes continuariam a se suceder da mesma forma, pelo menos durante o mês de abril e uma parte de maio.

Vejam a situação de São Paulo, o estado que conta com o sistema de saúde mais organizado do país. No pico da primeira onda, dispúnhamos de cerca de 9.000 leitos de UTI, agora temos 14 mil, lotados. No dia 17 de março havia pelo menos 1.400 pessoas à espera de internação em UTI.

O maior complexo de saúde do Brasil, o Hospital das Clínicas, recebia, em fevereiro, a média de 56 pedidos de internação; nos últimos sete dias foram 364, dos quais 110 estavam em estado grave por outras doenças e 254 por Covid.

Se esse é o panorama no estado mais rico, caríssima leitora, dá para imaginar o caos no resto do país?

Parece que nossos dirigentes despertaram para as dimensões da tragédia que se abateu sobre nós. Empresários e economistas enviaram um recado duro ao presidente, pena que tardio. O ministro da Economia reconheceu que sem vacinação a economia não se recupera. Só agora percebeu? Por que não disse nada em julho, quando nos foram oferecidos os 70 milhões de doses da vacina da Pfizer que o Ministério da Saúde rejeitou? Receio de magoar o chefe?

O presidente da Câmara declarou que “tudo tem limite” e que apertava “o botão amarelo”. Amarelo, excelência? Enquanto 300 mil famílias perdiam entes queridos, o sinal estava verde?

Deprimente ver os malabarismos circenses do novo ministro da Saúde, ao justificar que ficava a critério da liberdade milenar do médico prescrever o tratamento precoce com drogas inúteis. Como assim, ministro? Enquanto a medicina foi praticada como o senhor defende, os colegas que me antecederam receitavam sangrias e sanguessugas.

Finalmente, sob pressão, o presidente convocou os três Poderes para um convescote político, com o pretexto de criar um comitê para gerir a crise sanitária. Incrível, não? Imaginar que uma equipe comandada por ele será capaz de nos tirar dessa situação é acreditar que mulher casada com padre vira mula sem cabeça.

A consequência mais nefasta de tantos desmandos, caro leitor, foi a de que a epidemia fugiu do controle do sistema de saúde. Daqui em diante, só podemos contar com nós mesmos.

sábado, 27 de março de 2021

ESTE GOVERNO TEM DE CAIR. PRESERVÁ-LO É SER CÚMPLICE

vladimir safatle

ESTE GOVERNO TEM DE CAIR. PRESERVÁ-LO É SER CÚMPLICE
Na última 6ª feira (19), a imprensa noticiou que um homem, um idoso morreu no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento em Teresina. 

O homem apresentava problemas respiratórios, mas a UPA não tinha maca disponível, não tinha leito e muito menos vaga em UTI. Ao fim, ele morreu de parada cardíaca. 

Sua foto circulou na imprensa e redes sociais enquanto o Brasil se consolidava como uma espécie de cemitério mundial, pois é responsável por 25% das mortes atuais de covid-19. País que agora vê subir contra si um cordão sanitário internacional, como se fôssemos o ponto global de aberração.

O homem em questão era negro e vinha de um bairro pobre na zona sul de Teresina, o Promorar. Ele morreu sem que veículos de imprensa sequer dissessem seu nome. Uma morte sem história, sem narrativa, sem drama. Mais um morto que existiu na opinião pública como um corpo genérico: um homemum idoso

Não teve direito à descrição de sua luta pela vida, nem da dor em entes queridos. Não houve declarações da família, nem comoção ou luto. Afinal, um homem não tem família, nem lágrimas. Ele é apenas o elemento de um gênero. 

Dele, vemos apenas seus últimos momentos, no chão branco e frio, enquanto uma enfermeira, com parcos recursos, está a seu lado, também sentada no chão, como quem se encontra completamente atravessada pela disparidade entre os recursos necessários e a situação caótica em sua unidade hospitalar. 

Reduzido a um corpo em vias de morrer, ele repete a história imemorial da maneira como se morre no Brasil, quando se é negro e se vive na em bairros pobres. A foto de seus momentos finais só chegou até nós porque sua história tocou a história da pandemia global.

Enquanto um homem morria no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento, com o coração lutando para conseguir ainda encontrar ar, o Brasil assistia o ocupante da cadeira de presidente a ameaçar o país com estado de sítio ou medidas duras caso o STF não acolhesse sua exigência delirante de suspender o lockdown aplicado por governadores e prefeitos desesperados. 

Não se tratava assim apenas de negligencia em relação a ações mínimas de combate a morte em massa de sua própria população. Nem se tratava mais da irresponsabilidade na compra e aplicação de vacinas, até agora fornecidas a menos de 5% da população geral. 

Tratava-se, na verdade, de ameaça de ruptura e de uso deliberado do poder para preservar situações que generalizarão, para todo o país, o destino do que ocorreu em Teresina com um homem. Generalizar a morte indiferente e seca. Ou seja, via-se claramente uma ação deliberada de colocar a população diante da morte em massa.

Enquanto nossos concidadãos e concidadãs morriam sem ar, no chão frio de hospitais, a classe política, os ministros do STF não estavam dedicando seu tempo a pensar como mobilizar recursos para proteger a população da morte violenta. Eles estavam se perguntando sobre se Brasília acordaria ou não em estado de sítio. 

Ou seja, estávamos diante de um governo que trabalha, com afinco e dedicação, para a consolidação de uma lógica sacrificial e suicidária cujo foco principal são as classes vulneráveis do país. 

Um governo que não chora pela morte de suas cidadãs e seus cidadãos, mas que cozinha, no fogo alto da indiferença, o prato envenenado que ele nos serve goela abaixo. 

Não por outra razão, genocídio apareceu como a palavra mais precisa para descrever a ação do governo contra seu próprio povo.

Um governo como esse deve ser derrubado. E devemos dizer isto de forma a mais clara. Preservá-lo é ser cúmplice. Esperar mais um ano e meio será insanidade, até porque há de se preparar para um governo disposto a não sair do poder mesmo se perder a eleição. 

Vimos isso nos EUA e, no fundo, sabemos que o que nos espera é um cenário ainda pior, já que este é um governo das Forças Armadas.

Cabe a todas e todos usar seus recursos, sua capacidade de ação e mobilização para deixar de simplesmente xingar o governante principal, gritar para que ele saia, e agir concretamente para derrubá-lo, assim como a estrutura que o suportou e ainda o suporta. 
"toda ação contra um governo ilegítimo é legítima"

A função elementar, a justificativa básica de todo governo é a proteção de sua população contra a morte violenta vinda de ataques externos e crises sanitárias. 

Um governo que não é apenas incapaz de preencher tais funções, mas que trabalha deliberadamente para aprofundar a catástrofe não pode ser preservado. Ele funciona como um governo, em situação de guerra, que age para fortalecer aqueles que nos atacam. 

Em situação normal, isso se chama (e afinal, o vocabulário militar é o único que eles são capazes de compreender): alta traição

Um governo que não tem lágrimas nem ação para impedir que um homem morra no chão de um hospital, que age deliberadamente para que isso se repita de forma reiterada, perdeu toda e qualquer legitimidade. Não há pacto algum que o sustente. E toda ação contra um governo ilegítimo é uma ação legítima.

Na verdade, esse governo já nasceu ilegítimo, fruto de uma eleição farsesca cujos capítulos agora vêm a público. Uma eleição baseada no afastamento e prisão do candidato indesejável através de um processo no qual se forjaram até mesmo depoimentos de pessoas que nunca depuseram. 

Ele nasce de um golpe militar de outra natureza, que não se faz com tanques na rua, mas com tweets enviados ao STF ameaçando a ruptura caso resultados não desejados pela casta militar ocorressem, influenciando as eleições.

Há um ano, vários de nós começaram movimentos exigindo o impeachment de Bolsonaro. Não faltou quem desqualificasse tais demandas, afirmando que, ao contrário, era momento de o Brasil unificar-se diante dos desafios da gestão da pandemia, que mais um impeachment seria catastrófico para a vida política nacional, entre outros. 

Um ano se passou e ficou claro como o sol ao meio-dia que a verdadeira crise brasileira é Bolsonaro, que não é possível tentar combater a pandemia com Bolsonaro no governo. 

Mesmo assim, setores que clamavam por
frentes amplas nada fizeram para realizar a única coisa sensata diante de tamanho descalabro, a saber, derrubar o governo: mobilizar greves, paralisações, bloqueios, manifestações, ocupações, desobediência civil para preservar vidas. 

Como dizia Brecht, adaptado pelos cineastas Straub e Huillet, só a violência ajuda onde a violência reina.

A primeira condição para derrubar um governo é querer que ele seja derrubado, é enunciar claramente que ele deve ser derrubado. É não procurar mais subterfúgios e palavras outras para descrever aquilo que compete à sociedade em situações nas quais ela está sob um governo cujas ações produzem a morte em massa da população. 

Há um setor da população brasileira, envolto numa identificação de tal ordem, que irá com Bolsonaro, literalmente, até o cemitério. Como já deve ter ficado claro, nada fará o governo perder esse núcleo duro

Cabe aos que não querem seguir essa via lutar, abertamente e sem subterfúgios, para que o governo caia. (por Vladimir Safatle, no jornal global El Pais)

 

Um juiz parcial e o país destruído

 

Um juiz parcial e o país destruído

por Mário Montanha Teixeira filho

Juiz que não tenha condição de apreciar uma causa com imparcialidade precisa ser substituído por outro juiz. Esse mandamento, simples em sua formulação, está nas leis processuais, e pretende garantir ao cidadão comum julgamento não contaminado por motivações subjetivas. Uma das alternativas previstas no Código de Processo Penal para evitar limites indevidos ao direito de defesa está no artigo 254, que determina que “o juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes”, […] “se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles” (inciso I), ou “se tiver aconselhado qualquer das partes” (inciso IV).

Percebe-se, então, que, ao reconhecer a parcialidade do ex-juiz Sérgio Moro no caso do triplex do Guarujá, no dia 23 de março, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou o óbvio: a condenação de Lula estava acertada previamente, fossem quais fossem as provas obtidas no curso da ação criminal. Moro foi suspeito desde o início, mesmo antes da exibição grotesca da peça de acusação elaborada pelo chefe da Lava Jato, o procurador da República Deltan Dallagnol, em 2016, que reuniu em “powerpoint” os principais fundamentos da sentença que determinou a prisão de quem se apresentava como candidato a presidente da República em 2018.

A construção da imagem da dupla Moro & Dallagnol como salvadora da pátria, alimentada por setores da imprensa interessados em golpear o resultado das eleições de 2014, valeu-se de técnicas de convencimento que confundiram processo penal com disputa esportiva ou trama de revista em quadrinhos. Moro apareceu ao grande público como enxadrista hábil e capaz de encurralar seu oponente com movimentos estratégicos fatais. Ou como lutador de boxe a massacrar um adversário cambaleante. Também lhe emprestaram a fantasia de super-homem, guardião da justiça, defensor do “povo”, ou de um Batman tropical acompanhado do amigo Robin, vulgo Dallagnol.

Inacreditavelmente, a distorção que colocou em cantos opostos um juiz e o “seu” réu, sobre o qual exerceu poderes coercitivos extravagantes, foi aclamada como símbolo do combate à corrupção. A mídia e as instituições “que funcionam” não apenas sustentaram esse desequilíbrio processual – essa mentira, seria mais correto dizer –, mas exigiram dos atores da farsa judiciária vereditos imediatos e eficazes. Receberam o que queriam, e o País, livre do “perigo vermelho”, ficou com Bolsonaro, de quem Moro se aproximou para virar ministro, com a promessa de um cargo vitalício – que não veio – no STF.

Para quem teve a curiosidade de ler a sentença de Moro que provocou a prisão de Lula, fica fácil notar, desde a primeira linha dos 962 parágrafos distribuídos em 218 páginas de um texto repetitivo e truncado, que a condenação havia sido decidida externamente aos autos, inspirada em razões de pouca juridicidade e muita ideologia.

O subscritor da peça condenatória, já então apontado como parcial pela defesa do réu, fez algum esforço retórico na tentativa de dizer que sempre agira com isenção, indicando estar melindrado – expressão de que parece gostar – com as dúvidas sobre sua conduta. Entre os parágrafos 58 e 152, arriscou explicações, como a que segue: “Na linha da estratégia da defesa de Luiz Inácio Lula da Silva de desqualificação deste julgador, por aparentemente temerem (sic) um resultado processual desfavorável, medidas questionáveis foram tomadas por ela fora desta ação penal”. A realidade não era bem essa. Naquele momento, a defesa não temia o resultado desfavorável, mas tinha a certeza de que ele já estava decretado.

“Mais uma vez”, continuou Moro, “trata-se de mero diversionismo adotado como estratégia de defesa”. Isso porque, “ao invés de discutir-se o mérito das acusações, reclama-se do juiz e igualmente dos responsáveis pela acusação”. E mais: “Nesse contexto de comportamento processual inadequado por parte da defesa de Luiz Inácio Lula da Silva, é bastante peculiar a reclamação dela de que este julgador teria agido com animosidade contra os defensores em questão”.

Para desgosto do herói provinciano e especialista em platitudes, o tempo cuidou de revelar que foi ele, e não os advogados de Lula, o centro do que chamou de “comportamento processual inadequado”. Ao se prestar ao papel de inimigo do acusado, em troca de uma celebridade traiçoeira, o ex-juiz da ex-república de Curitiba contribuiu para a destruição das bases da frágil democracia brasileira. Essa interferência, admitida com excessiva demora pelo STF, reveste de gravidade excepcional os seus atos. Ao que tudo indica, mais do que impulsionado por preferências pessoais e políticas, Moro cumpriu funções ditadas por um esquema que tem outros responsáveis, acima dele na escala hierárquica do poder.

De toda essa tragédia-quase-burlesca, a figura do justiceiro desapareceu, abandonada num canto poeirento da história. Ficou o País devastado pelos delírios terraplanistas de um capitão feito presidente, agradecido aos bons préstimos da Lava Jato e de outras falsidades.

Cuidado com a nova variante do Bolsonarismo

Cuidado com a nova variante do Bolsonarismo

por Renato Terra

Durante um ano, o presidente desarticulou os anticorpos brasileiros. Negou a vacina, apostou em tratamentos sem eficácia, provocou aglomerações, questionou o uso de máscaras, desencorajou a população a acreditar na letalidadade do coronavírus. Agora o agente desestabilizador se apresenta como antídoto.

A mutação de Jair Bolsonaro é perversa. Visa salvar um grupo específico, ensaia um recuo para ganhar sobrevida. Mas seu objetivo é claro: destruir o organismo inteiro.

A redução do desmatamento da Amazônia, por exemplo, não está incluída nessa nova variante paz e amor. Segundo o relatório anual feito pelo MapBiomas, a “área desmatada no Brasil em 2019 equivale a oito cidades de São Paulo”. E 99% do desflorestamento foi feito de maneira ilegal.

“O Elefante Negro”, reportagem da revista Piauí, mostrou a relação entre o desmatamento e o surgimento de novas doenças. “Um estudo de 2015 feito pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) concluiu que, ‘para cada 1% de floresta derrubada anualmente na Amazônia, há um aumento de 23% na incidência de malária e de 8% a 9% na de leishmaniose’, uma doença que, se não tratada, causa desfigurações e pode levar à morte”.

Além disso, “a degradação ambiental favorece o salto para espécies generalistas, as quais abrigam 75% de todos os vírus zoonóticos conhecidos. Dotadas de grande capacidade de adaptação, essas espécies tendem a prosperar quando perturbamos seu hábitat natural e extinguimos seus predadores. É o caso dos roedores ou do Aedes aegypti, na origem um mosquito silvestre que hoje habita confortavelmente as nossas cidades e as nossas casas. Da década de 1990 para cá, assistimos à emergência ou reemergência de oito vírus epidêmicos ou pandêmicos: H5N1 (gripe aviária), Sars-Cov, H1N1 (pandemia de gripe suína), Ebola, Mers-CoV, Zika, Chikungunya e Sars-CoV-2 (pandemia de Covid-19). É uma aceleração sem precedentes desse tipo de acontecimento”.

A pandemia de Covid-19 é causada por um vírus zoonótico, pois tem origem no reino animal. Assim como o mayaro e o oropouche, dois vírus amazônicos que recentemente entraram no radar dos cientistas.

Enquanto Bolsonaro posa de santo em sua perversa variante, sua política ambiental e a asfixia da ciência estimulam o aparecimento de novos vírus.

A nova variante do bolsonarismo dá uma sobrevida ao agente desestabilizador. E visa destruir o organismo inteiro.

*Publicado na Folha de S.Paulo


sábado, 13 de março de 2021

Tristeza não é doença

 

Tristeza não é doença

por Mirian Goldenberg

Por que os brasileiros são os maiores consumidores mundiais de antidepressivos, ansiolíticos e remédios para dormir?

Acordei em um sábado cinza e chuvoso. E escrevi:

“Hoje eu acordei triste.
Na verdade, hoje eu acordei mais triste.
Todos os dias eu acordo e vou dormir triste.
Mas hoje a minha tristeza é ainda maior.
Uma tristeza sem esperança, sem lágrima, sem nada.
Somente triste.
Uma tristeza que já desistiu de ser alegre.
Uma tristeza muito cansada de ser triste.
Uma tristeza sem saudade de um tempo que não volta mais, que também era triste, muito triste.
Uma tristeza exaurida pela dor, pânico e desespero.
Uma tristeza que se alimenta da solidão, do sofrimento e da impotência.
Uma tristeza velha, muito velha, desde criança sempre triste.
Uma tristeza resignada, que sempre foi e sempre será triste.
Uma tristeza que sabe que é impossível ficar alegre hoje e amanhã.
Hoje eu acordei triste”.

Compartilhei o texto nas minhas redes sociais como costumo fazer com algumas reflexões. Recebi um bombardeio de mensagens:

“Estou muito preocupada com você. O que aconteceu?”

“Você precisa urgentemente se tratar, procurar ajuda, ir ao psiquiatra e tomar algum remédio para curar essa tristeza. Você não pode se entregar à depressão, ao desespero e à angústia. A tristeza é perigosa, faz mal à saúde”.

“O texto é ficção? Não acredito que você está tão triste. Logo você que tem um sorriso tão lindo? Você não tem o direito de ficar triste. Confie em Deus: vai passar”

Mas recebi também inúmeras mensagens de quem se identificou com a minha tristeza:

“Senti um alívio enorme ao ler o seu texto sensível e corajoso. Até chorei. Eu me senti menos só. Também estou muito triste, e sofro uma enorme censura e repressão quando digo que estou triste. É proibido falar de tristeza aqui em casa. Parece que tenho uma doença grave e contagiosa”.

“Desde quando tristeza é sinônimo de doença? Estou triste porque não consigo ter esperança no amanhã. Estou triste porque não acredito mais que essa tragédia vai passar. Não consigo imaginar que um ser humano consiga rir, brincar e gozar no meio desse horror, a não ser que seja um sádico genocida. Quem não está triste está doente no coração e na alma”.

Muitos perguntaram: “O que aconteceu com você?”, como se eu precisasse explicar ou justificar a minha tristeza por algum motivo pessoal.

Estou triste, profundamente triste, como milhões de brasileiros estão. Como tantos que estão impotentes, exaustos, massacrados, sufocados por tanto ódio, violência e perversidade.

Achei estranho acharem o meu texto corajoso. Desde quando falar sobre tristeza é um ato de coragem? Mas depois de dizerem que não tenho o direito de ficar triste, de me recomendarem antidepressivos e dezenas de tratamentos, cheguei à conclusão de que é sim uma escolha corajosa.

Em uma cultura em que existe uma ditadura da felicidade, a obrigação e o imperativo de ser feliz mesmo em tempos de horror, sentir-se triste é um exercício da liberdade de resistir ao egoísmo, à mentira e à maldade. Não irei esconder a minha tristeza em um armário, pois não tenho vergonha dela. Na verdade, depois de provocar tantas reações, ela se tornou ainda mais poderosa, empática e generosa. Mais humana!

Qual é o meu antídoto para a tristeza? Vivê-la por inteiro e escrever sobre ela. Não preciso me curar da tristeza, pois não estou doente. É apenas o que sinto nesse momento tão triste de viver.

Tristeza não é coisa de maricas. Tristeza não é frescura. Tristeza não é mimimi.

Você também está triste?

*Publicado na Folha de S.Paulo

Dantons de araque

Procuradores da força-tarefa nunca ligaram para ideais, e sim para busca pelo poder

por Demétrio Magnoli, na FSP

Dantons de araque

Danton fez a Convenção fundar o Tribunal Criminal Extraordinário em março de 1793. Um ano depois, sob o Terror jacobino que ajudou a implantar, acusado de enriquecimento ilícito, foi submetido a uma encenação judicial e executado na guilhotina. Moro e sua camarilha de procuradores não terão o destino do revolucionário francês, mas merecem sentar no banco dos réus.

Moro, um juiz que sonhou ser presidente, é o elemento passageiro. Mais perene é o caldo de cultura no qual surgiu a força-tarefa. No seu voto, Gilmar Mendes acertou ao indicar que o timão da Lava Jato foi comandado por uma panelinha de procuradores dispostos a usar a lei como subterfúgio para alavancar um projeto político. Aí é que entra a figura de Danton.

Paralelos têm limites. Danton viveu e morreu por seus ideais. No meio do caminho, descobriu que parira um monstro e tentou domá-lo, mas já era tarde. Os procuradores da força-tarefa nunca ligaram para ideais, preferindo cavalgá-los em benefício de suas carreiras e, sobretudo, da busca pelo poder. São Dantons de araque, personagens de uma pantomima, não de uma tragédia. Mesmo assim, o paralelo ilumina algo relevante.

Nosso Ministério Público foi criado como uma espécie de Comitê de Salvação Pública. Na moldura desse poder estatal sem clara delimitação de função e sem controle externo, jovens procuradores nutriram-se da crença na reforma do mundo pela interpretação voluntarista dos códigos legais. O Brasil seria salvo por fora da política, essa lagoa de dejetos imundos, graças à ação obstinada de funcionários de Estado armados com a prerrogativa de investigar e acusar. A força-tarefa foi o fruto maduro da árvore do jacobinismo judicial.

A Lava Jato começou iluminando as vastas teias corruptas que ligam a elite política ao meio empresarial, mas degenerou no projeto de implodir o sistema político para conduzir um juiz ao posto mais alto da República. No trajeto, borrou a fronteira que separa os atos de processar e julgar, pisoteou as garantias dos réus, transformou-se em ator político e arrastou o STF para a lama.

 

Xi Jinping cimentou seu poder absoluto por meio de uma campanha anticorrupção no interior do Estado-Partido. Putin manipula tribunais amestrados para perseguir supostos corruptos. Só estúpidos acreditam que os fins justificam os meios. O sequestro político do sistema de Justiça seleciona e pune corruptos convenientes, junto com inocentes cuja culpa é fazer oposição, enquanto autoriza a corrupção dos cortesãos. No Estado de Direito, o produto final do jacobinismo judicial é a anulação de investigações e o triunfo da impunidade. Os procuradores que pintaram o sete não têm o direito de atribuir a outros a responsabilidade pelo melancólico desfecho.

Falta-lhes direito, sobra-lhes cara de pau. Aqui, em meados de 2017, critiquei as inclinações jacobinas do Partido dos Procuradores. Carlos Fernando Lima, decano da força-tarefa, retrucou identificando no meu texto a maléfica intenção oculta de proteger “a indecorosa festa desses vampiros”. Pouco depois, à provecta idade de 55, aposentou-se com proventos integrais, atravessou a porta giratória e foi advogar na área de compliance para clientes que temem cair nas garras de seus camaradas procuradores.

A postagem do heroico combatente incluía uma citação de Danton e, à sorrelfa, a tese de que o Terror assegurou a vitória final dos altos ideais da Revolução Francesa. Não conseguiremos circunscrever a corrupção às franjas do sistema político sem extirpar a cultura salvacionista que impregna o Ministério Público, separando as esferas da Justiça e da política. A cabeça de Danton rolou na guilhotina no 17 do Germinal do Ano II. Um futuro processo de Moro e dos procuradores deve ser justo e imparcial, porque isso é o certo e para ensinar-lhes a lição jurídica que não aprenderam.

 

sexta-feira, 5 de março de 2021

Quantas mortes cabem num dia de trabalho de Bolsonaro?

 

Quantas mortes cabem num dia de trabalho de Bolsonaro?

por Bruno Bhogossian

Enquanto falava em ‘frescura’ de medidas de proteção, 29 brasileiros morreram

Pela manhã, Jair Bolsonaro deixou o Palácio da Alvorada e foi até a Base Aérea de Brasília. Antes de decolar, repetiu nas redes sociais a propaganda de sua caçada pelo spray nasal israelense contra a Covid, que ainda não tem eficácia comprovada. Quando o avião presidencial deixou a pista, 600 pessoas já tinham morrido da doença no país, segundo a média dos últimos dias.

Às 9h15, o presidente pousou em Uberlândia (MG). Durante o voo, outros 55 brasileiros morreram. Antes de seguir para Goiás, Bolsonaro parou para conversar com apoiadores. A cidade tem 100% dos leitos de UTI ocupados, mas o governo montou um cercadinho no setor de cargas e causou aglomeração no aeroporto.

Ali, o presidente disse que quem cobra dele a compra de vacinas é “idiota”. “Só se for na casa da tua mãe. Não tem para vender no mundo”, completou. Ele deixou o aeroporto de helicóptero, por volta das 10h da manhã, 55 mortes depois.

Em meia hora, Bolsonaro chegou a São Simão (GO) para inaugurar um trecho da ferrovia Norte-Sul. Antes de subir no palanque, ele entrou numa locomotiva, sorriu para fotos e conversou com os convidados. Quando o hino nacional começou a tocar, a conta de vítimas da pandemia havia subido em 168. Quando soou o último acorde, eram mais quatro.

Nos discursos de empresários e autoridades, 74 vidas ficaram para trás, e mais uma se foi quando Bolsonaro descerrou placa comemorativa da obra. Foram mais quatro mortos até que o presidente dissesse: “Chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”. Depois de 21 vítimas, ele voltou a incentivar o uso de cloroquina e, com outros quatro mortos, encerrou o evento.

O presidente pousou em Brasília às 15h30, quando o país somava quase 1.150 óbitos no dia. Ele apareceu de novo 260 mortes depois, em sua transmissão semanal nas redes. Repetiu dados falsos sobre máscaras e atacou medidas de restrição, enquanto o país contava mais 74 vítimas. Até o fim da quinta-feira, outros 300 brasileiros estariam mortos.

*Bruno Boghossian, jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

*Publicado na Folha de S.Paulo