domingo, 24 de março de 2019

Correspondência de guerra



Por Janio de Freitas, na Fel-lha:

Correspondência de guerra


É guerra. Era previsível, omissões a tornaram inevitável. Mas, guerra embora, promete ser benfazeja. A Lava Jato inicial e suas extensões reagem ao retardatário entendimento, no alto Judiciário, de que combate à corrupção e abuso do poder repressivo são coisas diferentes. A Lava Jato foi deixada livre para suas práticas indiferentes aos limites legais e ao bom senso, com violação de direitos civis, de exigências processuais e da ética (pessoal e jurídica). O desgaste, porém, não a atingiu, resguardada pela “mídia”: o omisso Supremo Tribunal Federal foi o desgastado —e afinal se assustou.

A interpretação generalizada das prisões encabeçadas por Michel Temer, ou do momento em que ocorrem, é a de resposta da Lava Jato contrariada por decisões recentes do Supremo. Se às prisões juntarmos o vazamento que atinge o ministro Luiz Fux, desencavado do depoimento inatual de um empresário, o propósito dos recentes atos e afirmações da Lava Jato está claro, dispensa interpretações.

Concomitante ao despertar do Supremo vê-se, portanto, que também na “mídia”, e daí na opinião pública, ações da Lava Jato já são identificadas com finalidades alheias à razão jurídica. É um passo pequeno, mas é avanço na direção de justiça. Ou, mais preciso, de menos injustiça. E não de política e sede de poder com armas da Justiça.

A Lava Jato acirra a guerra com os mesmos métodos que acabaram por provocá-la. O argumento mais forte para a prisão de Temer, por exemplo, foi a continuação das práticas corruptas. Quais são os fatos comprovantes? “Houve apenas uma comunicação do Coaf”, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, palavras de uma procuradora. “Mas esse fato, de acordo com o registrado pelo Coaf, aconteceu em outubro de 2018”. Logo, “é indicativo de que a organização criminosa continua atuando”.

Não é. Há cinco para seis meses, Temer ainda na Presidência, um fato foi indicativo de algo há um semestre, não do presente. Se houve o fato então, isso não indica a sua continuidade. A alegação central para a prisão não tem veracidade.

O tal fato de outubro seria a tentativa do coronel João Baptista Lima, visto como testa-de-ferro de Temer, de depositar R$ 20 milhões em espécie. É a velha “história mal contada”. Levar essa quantia geddeliana a um banco; submetê-la na agência à confirmação do montante, no mínimo de 200 mil notas de R$ 100, sem recear uma complicação —um experiente como Lima não pensaria nesse plano, quanto mais em tentá-lo.

Em seu início, a Lava Jato plantou na “mídia” a apropriação de R$ 10 bilhões pelos três ou quatro dirigentes da Petrobras já identificados. A conta final não chega a 10%. Ao bando “chefiado por Temer” é atribuída a quantia de R$ 1,8 bilhão. Em dinheiro “recebido, pedido ou prometido”. Está aí uma novidade, na soma do real com o imaginado. Pena que seja mais um truque nada sério, para uso da “mídia”.

São muitos os indícios de material concluído às pressas, para servir a uma finalidade não judicial. A propósito, entre os motivos de reação da Lava Jato estão o inquérito sobre ataques ao Supremo e a determinação do ministro Alexandre de Moraes de levá-lo a resultados. Inquérito e ministro muito criticados, mas ambos se justificam. Não só agressões verbais são investigadas: embora o Supremo prefira o silêncio a respeito, há ameaças de morte a ministros e de violência a familiares, como objeto principal do inquérito.

Ah, não se esqueça, em tudo isso, a gentileza da Polícia Federal. Esperou que Temer saísse, para prendê-lo fora das vistas da família e dos vizinhos. E não de manhãzinha. Com Moreira, pelo mesmo cuidado, não o esperaram em casa. Apenas pararam seu carro em área de pouco movimento. Nas duas ações, nenhum policial com metralhadora, granadas, gás e roupa sinistra. Nada como nas abordagens espalhafatosas a Lula e outros, pelo “japonês da PF” e companheiros. Nas duas modalidades de abordagem, a autoridade maior das operações era a mesma, o então juiz da Lava Jato e o hoje ministro da PF.

sábado, 23 de março de 2019

O que aconteceu com os promotores garantistas?,



O que aconteceu com os promotores garantistas?, por Ana Cláudia Pinho

Somos todos auto responsáveis pelas escolhas que fazemos: pessoais, profissionais, ideológicas, acadêmicas. Escolhas implicam consequências. Escolher o caminho do respeito à Constituição importa ônus! Nada se faz impunemente.
Arte Fabio Campana

do Coletivo Transforma MP

O que aconteceu com os promotores garantistas?

por Ana Cláudia Pinho

Ontem participei de um lindo evento na centenária Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará: uma merecida homenagem aos professores que estavam se aposentando.
Dentre os homenageados, encontrava-se um querido e inesquecível professor, uma das pessoas mais brilhantes com quem já tive a honra de privar. Um intelectual, no sentido do termo. Foi meu professor tanto na graduação, quanto no Mestrado. E, muito embora suas disciplinas não fossem relacionadas à área criminal, eu jamais esquecerei suas lições e, sobretudo, seu exemplo de um verdadeiro mestre.
Antes de ter início a solenidade, meu caro professor veio sentar-se a meu lado na plateia e perguntou-me: “O que aconteceu com os promotores garantistas?”. Na sequência, mostrou-me sua preocupação com o modelo de plea bargain, projetado para funcionar no Brasil, sobretudo em relação a como o Ministério Público irá agir com o réu, no momento da “negociação”.
Conhecedor arguto do sistema jurisdicional norte-americano, meu dileto mestre observou: “lá, o promotor é obrigado a fazer o ‘disclosure’, isto é, colocar todas as cartas na mesa, mostrando as provas que detém, tanto as desfavoráveis, quanto as favoráveis ao imputado. Essa é uma exigência de lealdade para poder existir algum tipo de acordo”.
O receio do caro homenageado está longe de ser vão. Considerando que vivemos, hoje, um modelo processual penal caracterizado por uso de estratégias e que o MP está desobrigado de colocar todas as cartas na mesa, o sentimento de uma certa ética pública – tão cara a uma Instituição que tem, por força constitucional, a missão de defender o regime democrático, a ordem jurídica e os direitos fundamentais – começa a se esvair…[1]
Esse “novo perfil” do Ministério Público a partir da chamada “Operação Lava Jato”, sobretudo no que tange ao (ab)uso das colaborações premiadas, restou evidente. Jamais se ouviu falar tanto em “delações”, prisões preventivas para assegurar confissões, “recuperação” de valores advindos da corrupção, até o cúmulo de se chegar à inusitada proposta da criação de um fundo, para gerir 2,5 bilhões de reais (oriundos de acordo, com a Petrobrás), tudo a cargo exclusivo do braço do Ministério Público Federal, em Curitiba (a bom tempo, a proposta foi obstada por decisão do Ministro Alexandre de Moraes, do STF, acatando pleito da própria chefe do MPF, Raquel Dodge).
É… realmente, o Ministério Público mudou…
Há quem diga: “os tempos são outros! Há que se modernizar! Há que se criar mecanismos para combater a criminalidade organizada, a criminalidade dos grupos de poder, dos grandes traficantes, etc. Há que se aplicar ao processo penal a ética liberal da barganha, da negociação. Isso economiza tempo, otimiza condenações e garante a justiça”.
Não tenho qualquer dúvida de que o processo penal (e as Instituições que nele atuam) precisam mudar…Apenas precisamos ter calma, muita calma, sobre quais mudanças e para que servirão. Recentemente, a Polícia Civil do Rio de Janeiro e o Ministério Público daquele Estado – por meio de seus órgãos de inteligência – chegaram à parcial elucidação do homicídio que vitimou a vereadora Marielle Franco e Anderson Gomes. Tudo por meio de adequada tecnologia e sigilo investigativo. Aliás, como desdobramento dessa investigação, a Polícia carioca conseguiu fazer a maior apreensão da história do Rio de Janeiro de armas clandestinas (107 fuzis!), sem que para isso um projétil sequer fosse deflagrado. Nada de tanques nas ruas, nada de “balas perdidas”, nada de mortes, nada de pirotecnia. Investigação séria. Inteligência. Tecnologia. Modernização, pois! Ou seja, é possível, sim, investigar, prender, condenar e – ao mesmo tempo – assegurar a defesa da Constituição e dos direitos fundamentais…
Mudar – meu querido professor – é uma necessidade urgente, num país que (ainda) convive (sabe-se lá como) com um Código Penal e um Código de Processo Penal fabricados em plena era Vargas (Estado Novo) e que, definitivamente, possuem várias de suas regras dissonantes com a Constituição democrática de 1988. Precisamos, por exemplo, alterar nosso sistema recursal, Sim, ele emperra! Assegura, aos que possuem condições financeiras para isso, a chance de recorrerem ad infinitum, procrastinando o processo e, não raro, levando a prescrições injustificáveis. Isso é um absurdo e precisa mudar! E pode mudar. De forma simples, direta e a curto prazo!
Porém, caro mestre, a ideia que hoje vigora não é bem a de que precisamos alterar nossa legislação fascista (Estado Novo) para se adequar à Constituição democrática; ao invés, a ideia é a de que a Constituição se tornou (ela mesma) um óbice, um atravanco, uma pedra no sapato do punitivismo. Ou seja, a Constituição “atrapalha” a realização da justiça no campo penal, já que permite direitos “demais” aos imputados, obstando condenações céleres.
Hoje, em dia, meu querido professor e amigo, defender a Constituição passou a ser um ato subversivo! Afirmar que os direitos fundamentais de todos (vítimas e réus) precisam ser assegurados faz de você quase um discípulo direto de Marx! Veja a que ponto chegamos…
E nessa toada, o Ministério Público se deixou levar… Muitos, seduzidos pelo canto da sereia, começam também a achar que existem “direitos demais” e “punições de menos” e, por conta dessa crença, estamos assistindo – quase incrédulos – a uma verdadeira cruzada contra princípios constitucionais,  sob o argumento de que os fins justificam os meios. Basta lembrar do recente ataque à presunção de inocência, ocasião em que a Corte Constitucional do país – de quem se esperava a defesa dos valores democráticos – usou de um malabarismo retórico sem tamanho, para dizer que mesa não é mesa, mas, sim, cadeira! Explico-me: qual parte do “ninguém, será considerado culpado senão após o transito em julgado de sentença penal condenatória” não ficou clara? Sabemos o que é uma sentença penal condenatória? Sabemos o que é trânsito em julgado? Sabemos o que é considerar alguém culpado? Temos, minimamente uma paz dogmática (Jacinto Coutinho) sobre esses conceitos? Então, se a temos, não me parece plausível seguir dizendo que mesa não é mesa, mas sim, cadeira![2]
Por evidente que o Brasil sempre viveu (sob) uma cultura punitivista. Para isso, basta consultar os dados do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), ou – melhor ainda – ir aos excelentes pesquisadores da criminologia crítica que temos por aqui (Vera Andrade, Vera Malaguti Batista, Marília Montenegro Pessoa de Mello, Salo de Carvalho, Maurício Dieter, Nilo Batista, Juarez Cirino dos Santos e tantxs outrxs). Assim, de tempos em tempos, vivemos um boom de populismo penal, como, por exemplo, na década de 90 do século passado, inaugurada com a inesquecível lei no. 8.072/90 (Lei de Crimes hediondos) que, tal qual todas as promessas vazias, assegurava que o aumento das penas para os então considerados “crimes graves”, a amputação de garantias (proibição de progressão de regime, de concessão de liberdade provisória, etc), a criação de novos tipos penais,  teriam – como consequência direta e inexorável – a diminuição da violência e da “criminalidade”. Qual o quê?
Passados quase 30 anos da referida lei,  a única coisa  que aumentou no país (vertiginosamente, diga-se) foi o numero de encarcerados (lembro sempre Malaguti: “a era do grande encarceramento”).
Pois o discurso agora se repete, quase ipsis litteris! Mudam um pouco os crimes graves: ao invés de extorsão mediante sequestro (que, na década de 90, teve como vítimas os empresários Abílio Diniz e Roberto Medina), aparece a corrupção, a grande chaga da contemporaneidade. Mudam também alguns alvos (os indesejados, para usar Zaffaroni, sempre se alteram no decorrer da História do punitivismo), bem como algumas técnicas e estratégias de intervenção penal (agora um pouco mais sutis, apostando, por exemplo, no modelo de processo negociado e em colaborações premiadas). Mas, ao fim e ao cabo, o teor do discurso permanece, como se, definitivamente, não aprendêssemos com nossos erros passados…
Há coisa de seis meses atrás, um aluno me procurou preocupado com esse “estado de natureza” antigarantista que vem ganhando repercussão nas redes sociais. Tratava-se de um jovem estudante de Direito, cujo semblante desesperançoso me calou fundo. Rapaz estudioso, dedicado, leitor assíduo de Ferrajoli. Pretende seguir a carreira acadêmica e, também, a do Ministério Público, mas acabara de me dizer que está achando quase impossível. Perguntou-me como eu “sobrevivo“.
A ele e a tantos outros anônimos que já andam com medo de defender suas posturas favoráveis à defesa dos direitos humanos e da Constituição, tenho somente um conselho: estudem!! Num Estado Constitucional de Direito, em que (ainda) prevalece alguma racionalidade jurídica, somente o conhecimento liberta. Sem ele, resta o poder autoritário. Os esperneios infantis. As frases de efeito. As conversas de mesa de bar. Os clichês mofados (“O Brasil é o país da impunidade”, “os cidadãos de bem estão presos em suas casas, enquanto os bandidos estão à solta”… e por aí vai). Coisas desse jaez podem até impressionar os incautos, mas não resistem ao mais comezinho crivo teórico.
Somos todos auto responsáveis pelas escolhas que fazemos: pessoais, profissionais, ideológicas, acadêmicas. Escolhas implicam consequências. Escolher o caminho do respeito à Constituição importa ônus! Nada se faz impunemente.
Ahhhh, sobre o garantismo, a questão é bem simples: ele nada tem com o abolicionismo ou os movimentos marginais!!! Todo o contrário! É uma teoria positivista, iluminista, utilitarista! Defende a legitimidade do poder punitivo. A única questão é: exige o cumprimento das regras do jogo democrático! Isso é garantismo, é o que está na CRFB e é a razão de ser do próprio Ministério Público, a quem incumbe a defesa intransigente da ordem jurídica e do regime democrático.
Portanto, meu querido professor, encerro deixando ao senhor a resposta à sua própria pergunta…
Ana Cláudia Pinho – Doutora em Direito. Professora de Direito Penal da UFPA. Coordenadora do grupo de pesquisa “Garantismo em Movimento”. Promotora de Justiça Criminal do MP/PA
[1] Sobre o tema, indico o artigo de Lenio Streck https://www.conjur.com.br/2019-fev-21/senso-incomum-proposta-seria-plea-bargain-serio
[2] Como dito acima, evidente que o sistema recursal brasileiro necessita de uma urgente reforma. Há recursos desnecessários e situações meramente protelatórias. Porém, isso jamais pode justificar a violação de um princípio constitucional! Se a saúde vai mal, mata-se o doente? Não é a Constituição que precisa ser afrontada, mas o sistema jurídico-penal que necessita se adaptar a ela e aos “novos tempos”!

sexta-feira, 22 de março de 2019

Ideologia e reformas



Ideologia e reformas

por Mário Montanha Teixeira Filho
O que espanta nestes tempos de extremismo não é apenas a agressividade das disputas políticas, um fenômeno que se alia a xingamentos generalizados (e generalizantes), brigas e expressões de ódio, a indicar que a sociedade está doente. Mais do que isso, chama a atenção a superficialidade dos discursos propagados pelos “vencedores”. São frases arrumadas sem critério lógico, postas à disposição de vozes repetidoras de verdades absolutas, sempre em defesa dos interesses do mercado, o deus da modernidade.
De algum tempo para cá, o combate à quase-social-democracia produzida pela Constituição de 1988 se tornou muito mais intenso. A eliminação de direitos ocupou a narrativa da ordem, condicionando o futuro nacional a uma estabilidade econômica falsamente concebida e incapaz de coexistir com garantias individuais e coletivas. Saíram de cena os governantes empenhados em anunciar, com maior ou menor grau de sinceridade, medidas de combate à pobreza ou de redução de desigualdades. O que vale, hoje, é a pregação desvairada contra um comunismo de ficção e a favor de teses obscurantistas sustentadas por líderes religiosos de araque, acompanhada da desqualificação de qualquer gesto ou movimento organizado que se apresente como contraposição ao “sistema”.
Michel Temer, o presidente que fez aprovar a reforma trabalhista e o corte de investimentos públicos autorizado pela “PEC do fim do mundo”, cumpriu exemplarmente o papel que lhe cabia na configuração da nova política. No término de um mandato ilegítimo e antipopular, exibiu como troféu o esfacelamento do Direito do Trabalho, convertido em norma de chancela da precarização e do barateamento da mão de obra. Os milhões de empregos prometidos pelas mudanças legislativas não vieram, assim como a intervenção federal no Rio de Janeiro, decretada para acabar com a violência e o tráfico de drogas, se limitou a espalhar terror entre a população pobre.
Curiosamente, a maior apreensão de armas de grande porte jamais realizada pelas forças policiais aconteceu alguns meses após a saída de Temer, a partir de investigações que apontaram os autores do assassinato de Marielle Franco, vereadora que denunciou milicianos que comandam um Estado paralelo na região metropolitana do Rio, e Anderson Gomes, que trabalhava como motorista. O arsenal, porém, não estava escondido em nenhuma favela, em nenhuma comunidade desprovida de serviços básicos, mas na região nobre da Barra da Tijuca, em imóvel vizinho ao local onde mora Jair Messias Bolsonaro, transformado em presidente do Brasil nas eleições facebookianas e whatsappianas de 2018.
A Temer, não obstante os agradecimentos protocolares da elite econômica que se valeu dos seus préstimos, restou a prisão decretada tardiamente no dia 21 de março que passou. O ostracismo imaginado pelo golpista vampiresco, ao que parece, enfrentará percalços motivados pela ingratidão daqueles que o patrocinaram. Ossos do ofício.
Mas a questão a ser retomada é o discurso ideológico, repetido com desenvoltura pelo capitão e seus filhotes numerados em ordem crescente. Bolsonaro não se cansa de afirmar que os brasileiros estão condenados a escolher entre emprego e direitos. Ou que o trabalho das mulheres vale menos do que o trabalho dos homens. Ou que os operários devem destruir os seus próprios sindicatos e buscar a proteção dos patrões. Ou que a tortura e o armamento são meios de combate à violência.
Pois é em torno desses “conceitos” que o governo prepara, em combinação com um Congresso ultraconservador, instituições bancárias e agentes da mídia, o golpe final que transformará a maior parte da população brasileira em cidadãos sem direitos, sem assistência, sem saúde, sem salários e sem aposentadoria: a contrarreforma da Previdência. A esperança, para aqueles que serão massacrados – mesmo para os que ainda não perceberam isso –, é que a ideologia que adorna as palavras oficiais tem prazo de eficácia limitado. Para convencer as massas de que “perder direitos é bom”, o recurso utilizado tem sido a mentira. E esta, como se sabe, não dura para sempre.

As elites racharam o pacto que lhes deu o poder



As elites racharam o pacto que lhes deu o poder

Observe o que se passou neste país a partir de 2014.
Desde então, as forças de direita, os conservadores, a mídia e o Judiciário foram  construindo uma unidade política prática que lhes permitisse reconquistar a classe média, eliminar os políticos de esquerda – ou ao menos isolar os petistas dos demais – e reconquistar a plenitude do poder que jamais deixou de gozar neste país, mas do qual, há uma dúzia de anos, já não conseguiam exercer de forma desabrida.
Queimaram seus ícones mais antigos, de alguma forma ainda impregnados de alguma ideia de convívio democrático e passaram a usar o golpismo, a histeria e, sobretudo, o moralismo com que preencheram sua falta de um programa para o Brasil e seu povo.
Nem é preciso dizer o quão cínico é este fundamentalismo, basta ver a situação dos que lhe serviram, nestes anos, como instrumentos: Aécio Neves, Eduardo Cunha, Michel Temer e, agora, Jair Bolsonaro.
Claro, eles foram deixando ao longo do caminho os corpos politicamente carbonizados dos que lhes serviram, mas levaram tão longe a perda da razão que lhes sobrou uma situação autofágica, onde juízes e promotores tornaram-se planta carnívoras inaciáveis, um tosco fundamentalista está no Governo e as forças armadas vão ocupando todos os espaços de direção dos assuntos nacionais.
Já não têm como deixar de perceber que este arranjo só sobrevive se puder se alimentar de carne humana, devorada em frenesis totalitários. E cada um teme ser o próximo.
Sobrou-lhes um único liame, um elo que aida os mantêm próximos: a destruição do país e o saque sobre os parcos direitos de seu povo. Vender o patrimônio, a soberania e dissolver as garantias sociais da população ainda é o  fiapo de unidade que os reúne.
Mas ele próprio vai se rompendo, porque a fúria com que se emprega em sua destruição e os privilégios das camadas do Estado que tutelam este estado de coisas são evidentes demais para conservarem uma aparência de legitimidade.
O pensamento e a ação em favor do povo brasileiro não pode deixar de considerar, de forma permanente e mais ainda no momento em que o bloco de forças do atraso se fissura tão generalizadamente que manter as liberdades públicas, as garantias jurídicas e o que resta das conquistas sociais se sobrepõe a todas nossas mágoas, rancores e até à repugnância que nos causam as partes que se soltam do que era o monólito da direita.

O processo penal espetacular




O processo penal espetacular

por Claudio Henrique de Castro
No Brasil criaram-se as peças processuais espetaculares.
As filmagens, as divulgações das gravações dos depoimentos passaram a integrar o processo penal, ou seja, a soma das peças processuais mais as notícias da mídia.
Petições, termos de perícias, despachos, sentenças, reportagens espetaculares e até entrevistas de juízes fazem parte deste novo processo penal.
Uma coisa é o processo penal em si mesmo, um meio legal para um fim, absolvição ou condenação. Outra coisa é o espetáculo, a notícia, a charge, as críticas, o escárnio público, o drama, as entrevistas e as opiniões – com opiniões e fundamentos provisórios.
Alguns podem argumentar: “É um homem público, tudo deve ser divulgado”. Certíssimo.
Mas se tudo compõe o processo, há uma contradição fundamental: a pessoa pode ser absolvida na esfera penal e condenada pela mídia e pela opinião pública, mídia que, aliás, é formada por cinco impérios da comunicação, um belo oligopólio jamais visto nos países civilizados.
A mídia em diversos países da União Europeia tem, no mínimo, três opiniões diferentes. Todos falam e reciprocamente se contrapõem. Ganha o telespectador que enxerga vários pontos de vista.
Determinado programa espanhol possui cinco jornalistas polêmicos. Depois de ouvir as diversas opiniões, conclui-se que cada uma guarda alguma verdade nas versões sobre os fatos.
Hoje, no Brasil, o juiz dá entrevistas, e compromete-se antes mesmo da sentença final do processo. Em poucas palavras, pré-julga a causa junto com a mídia. Não mantém o recato nem a discrição que são fundamentais para o mister de julgar.
A imprensa é avisada pelas autoridades, buscam-se os melhores ângulos e criam-se vilões e heróis nacionais.
Altas autoridades do Estado e alguns segmentos das elites estão na mira de várias operações. Bravo, bravíssimo! Tem-se a sensação de que, agora sim, a justiça funciona para todos, estamos numa democracia, a mídia delira, o processo penal se expande.
Outrora, o juiz falava apenas nos autos e os advogados não podiam opinar sobre autos que desconheciam. Os estatutos legais proíbem tais condutas. Quem liga para isto?
Todo Poder Judiciário está realmente julgando todos os corruptos – e das investigações não escapa ninguém? Ou há um cenário novelístico à caça de alguns personagens, politicamente escolhidos, para nos dar a sensação de que nenhum poderoso se livra da Justiça e da mídia, impiedosas e justiceiras?
A justiça penal brasileira precisa acertar as contas com as elites corruptas. Esta conta ainda não foi paga historicamente.
Há procedimentos constitucionais que estão sendo atropelados, mas ninguém se importa, inclusive alguns tribunais que flexibilizam princípios. Séculos de corrupção não podem esperar.
Processos lentos levam à impunidade da prescrição, a maioria escapa por este caminho, recursos e mais recursos, daí o motivo de o show continuar.
A condenação pela mídia ao menos dá a sensação de que houve alguma punição, a da execração pública, da prisão espetáculo.

Manifesto contra prisão tem apoio até de advogados anti-Temer




Manifesto contra prisão tem apoio até de advogados anti-Temer

por Mônica Bergamo, na FSP
Um manifesto contra prisão do ex-presidente Michel Temer tem o apoio de advogados que se posicionaram contra o impeachment e contra o governo Temer.
Até o momento, o documento foi assinado por 65 nomes como o ex-ministro José Eduardo Cardozo, Pedro Serrano, Marco Aurélio de Carvalho e Carol Proner.
O texto é encabeçado pelo jurista Celso Antonio Bandeira de Mello.
Entre outra coisas eles afirmam que a prisão de Temer “despertou, mesmo em seus adversários políticos, como muitos dos subscritores deste documento, a certeza de que é necessária a cessação do uso da lei para fins políticos, com o fito de manipular a opinião pública”.
MANIFESTO PELO RETORNO AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A Sociedade brasileira tem assistido nestes últimos anos uma escalada contrária ao Estado Democrático de Direito. A prisão do ex-presidente Michel Temer despertou, mesmo em seus adversários políticos, como muitos dos subscritores deste documento, a certeza de que é necessária a cessação do uso da lei para fins políticos, com o fito de manipular a opinião pública.
O fato é que chega a surpreender que pessoas formadas em Direito e que devem ter prestado um concurso de suficiência técnica e moral para ingressar em seus cargos cheguem a praticar atos que se constituem em verdadeiras aberrações jurídicas. Estas só servem para destruir a higidez das instituições.
Atuando como se fossem donos do Poder e não simples representantes dele, os autores de tais comportamentos em nada contribuem para os objetivos que artificialmente são invocados para acobertá-los. É sabido e ressabido que a legislação do País exige para a supressão preventiva da liberdade de qualquer indivíduo, seja ele um cidadão despido de qualquer autoridade, seja um ocupante ou ex-ocupante de Poder, a ocorrência de requisitos essenciais, previstos em lei e na conformidade de circunstâncias específicas. Prisões sem tal cumprimento são meras violências e atentados contra direitos fundamentais dos cidadãos
É evidente que o País entrou em momento de total desrespeito à ordem jurídica, o que põe em risco não apenas os que já são vítimas deste descalabro, mas também todos nós cidadãos, que, a qualquer momento poderemos ser também alcançados por esta violência inconsiderada. Se a cúpula do Poder Judiciário e a própria Sociedade não se manifestarem diante dos citados desmandos, o risco de que se avolumem ainda mais coloca-nos ante a iminência de uma completa supressão dos direitos e garantias individuais, que, aliás, já são temidos por muitos, os quais vislumbram, no que vem ocorrendo, um preâmbulo preparatório da derrocada final da Democracia.
1. Celso Antonio Bandeira de Mello
2. Weida Zancaner
3. Pedro Serrano
4. Marco Aurélio de Carvalho
5. José Eduardo Cardozo
6. Fabiano Silva Santos
7. Gabriela Araújo
8. Miguel Pereira Neto
9. Antonio Carlos de Almeida e Castro ( kakay)
10. Lenio Streck
11. Bruno Salles
12. Pedro Carriello
13. Marcelo Nobre
14. Geraldo Prado
15. Carol Proner
16. Gisele Cittadino
17. Alberto Toron
18. Maurício Zockun
19. Daniela Teixeira
20. Carolina Zancaner Zockun
21. Gabriela Zancaner Bandeira de Mello
22. Fernando Fernandes
23. Ernesto Tzirulnik
24. Kenarik Boujikian
25. Eleonora Nacif
26. Estela Aranha
27. Pietro Alarcón
28. Maurides Melo Ribeiro
29. Maíra Fernandes
30. Roberto Podval
31. Luzia Paula Cantal
32. Roberto Tardelli
33. Marina Chaves Alves
34. Vitor Marques
35. Guilherme Lobo Marchioni
36. Cristiano Maronna
37. Luis Guilherme Vieira
38. Antonio Pedro Melchior
39. Eder Bomfim Rodrigues
40. Juarez Tavares
41. Angelita da Rosa
42. Carmen da Costa Barros
43. Gisele Ricobom
44. Fábio Tofic Simantob
45. Luiz Fernando Pacheco
46. Reinaldo Santos de Almeida
48. Valeska Teixeira Zanin
49. Cristiano Zanin
50. Sergio Graziano
51. Fernando Tristão Fernandes
52. Otávio Espires Bazaglia
53. Rafaela Azevedo de Otero
54. Rodrigo José dos Santos Amaral
55. Breno de Carvalho Monteiro
56. Wagner Gusmão Reis Junior
57. Esmar Guilherme Engelke Lucas Rêgo
58. Douglas de Souza Lemelle
59. Raphael da S. Pitta Lopes
60. Ricardo José Gonçalves Barbosa
61. Beatriz Vargas Ramos
62. Antonio Carlos Mendes
63. Magda Barros Biavaschi
64. Anna Candida Serrano
65. Margarete Pedroso

Lava-Jato dá resposta política ao STF



Lava-Jato dá resposta política ao STF

Maria Cristina Fernandes - VALOR

Depois de ganhar notoriedade pela prisão do ex-governador Sérgio Cabral, o juiz Marcelo Bretas abandonou, paulatinamente, a discrição que o mantinha à sombra do então colega de toga Sérgio Moro, a quem nunca poupa elogios.
Para ir à posse do presidente Jair Bolsonaro, aceitou carona do governador do Rio, Wilson Witzel. Nove dias depois, tuitou: "Alguns países estão democraticamente mudando a orientação de seus governos, de esquerda (viés mais populista) para centro-direita (viés mais técnico). Respeitemos a vontade da maioria e aguardemos o cumprimento das propostas. Críticas prematuras são claramente oportunistas".
Antes que o primeiro mês de governo Bolsonaro terminasse, achou por bem pedir mais paciência aos seus 140 mil seguidores: "O Brasil está mudando, rapidamente e para melhor. Lamentavelmente, essa mudança não é instantânea. Assim, ainda por algum tempo, haveremos de conviver com forças retrógradas comprometidas com o modelo superado".
Sumiu por um mês e, no fim de fevereiro, retuitou uma nota pública do Ministério Público do Rio em resposta ao ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que acusara os procuradores de terem colocado a Receita no seu encalço. No início de março, deu novamente as caras para defender o pacote de Moro: "Em determinadas circunstâncias, que só podem ser avaliadas casualmente e pelas autoridades competentes, a POLÍCIA DEVE usar a força e, eventualmente, até mesmo MATAR. Isso não é novidade. Está na lei".
São indícios insuficientes de que Bretas agiu como braço auxiliar do governo em sua queda de braço com o Supremo e com o Congresso. Parecem mais robustas as evidências de que o juiz se valeu da prisão do ex-presidente Michel Temer, dada como certa por alguns de seus mais próximos amigos desde sua saída do poder, para reforçar as barricadas da Lava-Jato na disputa com o STF.
Há duas passagens no mandado de prisão de Temer que corroboram a empreitada. A primeira é a que censura a investigação de ofício por colocar em risco, em sua visão, a parcialidade do judiciário: "Nenhuma investigação deve ser inaugurada por autoridade judiciária, em respeito ao sistema penal acusatório consagrado em nosso texto constitucional". O Supremo decidiu, de ofício, e sem sorteio de relator, investigar ameaças e xingamentos contra seus ministros nas redes sociais. Se a prerrogativa fosse estendida a todo internauta xingado na rede, as varas judiciais não fariam outra coisa.
A segunda passagem do mandado que sugere uma briga interna corporis é aquela em que Bretas citou a decisão recente do Supremo que restringiu a competência de julgamento de crimes de corrupção e caixa 2 em campanhas para a Justiça Eleitoral: "Não seria possível a um investigado, sem fazer prova a respeito, mediante uma singela alegação de que além de crimes comuns haveria cometido também crime de competência da Justiça Eleitoral, dar causa às mudanças de atribuições e de competência em uma competência ou processo judicial". Acrescentou ainda que o próprio Temer eximira o coronel João Batista Lima, o amigo também preso e acusado de operar propinas em contratos da Eletronuclear, de ter atuado na arrecadação de recursos para campanha.
Se não há dúvidas de que Bretas mostrou ter lado na disputa entre Lava-Jato e Supremo, parece precipitado concluir que a prisão beneficia o governo Jair Bolsonaro. A operação deu-lhe, no limite, um fôlego. O presidente amarga queda acentuada de popularidade e mostrou-se refém dos militares do governo com uma reforma que tira benefícios com uma mão e devolve com a outra. Ganhou, com a prisão, a vitrine de que, sob seu governo, o Brasil prossegue no combate à corrupção.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, cuja mulher é enteada do ex-ministro Moreira Franco, também preso na operação, entrou em rota de colisão com Moro e com o general Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo, ao rejeitar o pacote anticorrupção e o decreto que barra nomeações de fichas-suja. Como está em suas mãos a tramitação da reforma da Previdência, projeto em que o governo deposita suas apostas de retomada do crescimento, Maia barganha o recuo do governo perfilado ao lado do STF contra a Lava-jato.
Ao longo das gestões Dilma Rousseff e Michel Temer, a operação foi o escoadouro dos impasses. Quando tudo parecia travado na disputa entre Congresso e Executivo, vinha a Lava-jato e desempatava o jogo. No governo Dilma, o resultado foi o impeachment. No de Temer, a eleição de Bolsonaro.
A Lava-jato e suas prisões acionaram mecanismos de desmonte. Um governo, no entanto, só funciona pela montagem de maiorias e consensos. O que ainda está por se provar é que, na condição de aliada majoritária de Jair Bolsonaro e de sua enrolada família, a Lava-jato será capaz manter de pé uma base parlamentar que, por enquanto, ainda é a baliza de aprovação de projetos governamentais.

No andar da carruagem...

No andar da carruagem...

Pinçado da coluna de leitores do UOL

"Tal qual na história de Goethe, Moro vendeu a sua alma ao diabo, pisou na Lei, rasgou a Constituição, desrespeitou a dignidade das pessoas para alcançar e realizar os seus delírios pessoais de poder. Na posse de atribuições que a Lei lhe dava, é verdade, fez da magistratura instrumento de politicagem rasteira, absolveu com provas e condenou sem provas, numa demonstração de arbítrio e prepotência. Tacla Duran, ex-advogado da Odebrecht, denunciou o comércio de delações nos domínios da republiqueta de Curitiba. Por meio de sentenças nulas, sem provas, fora do devido processo legal, perturbando o processo eleitoral com a divulgação de mentiras vazias, sem fatos, conseguiu eleger um governo que lhe desse uma sinecura qualquer e o guindasse ao cenário político nacional. Pois é, virou ministro e não sabe o que fazer com o cargo. Prepotente, só sabe dar ordens, e num governo desmoralizado, atolado em denúncias de corrupção e proximidades com o crime organizado."

Entregou o coração da Democracia numa bandeja e foi para a cadeia

Entregou o coração da Democracia numa bandeja e foi para a cadeia

quinta-feira, 21 de março de 2019

Como você é espionado por seu celular Android sem saber



Como você é espionado por seu celular Android sem saber

Um estudo envolvendo mais de 1.700 aparelhos de 214 fabricantes revela os sofisticados modos de rastreamento do software pré-instalado neste ecossistema



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Um usuário compra um celular Android novo. Tanto faz a marca. Abre a caixa, aperta o botão de ligar, o celular se conecta à Internet e, sem fazer nada mais, ele acaba de iniciar a mais sofisticada máquina de vigilância da sua rotina.
Não importa se você vai baixar o Facebook, ativar sua conta do Google ou dar todas as permissões de acesso a qualquer aplicativo esquisito de lanterna ou antivírus. Antes de executar qualquer ação, seu celular novo já começou a compartilhar detalhes da sua vida. O software pré-instalado de fábrica é o recurso mais perfeito desse celular para saber sua atividade futura: onde está, o que ele baixa, quais mensagens manda, que arquivos de música guarda.

“Os aplicativos pré-instalados são a manifestação de outro fenômeno: acordos entre atores (fabricantes, comerciantes de dados, operadoras, anunciantes) para, em princípio, agregar valor, mas também para fins comerciais. O elemento mais grave nisso é a escala: falamos de centenas de milhões ou de bilhões de telefones Android”, diz Juan Tapiador, professor da Universidade Carlos III e um dos autores, junto com Narseo Vallina-Rodríguez, do IMDEA Networks e do ICSI (Universidade de Berkeley), da investigação que revela esse submundo. Os celulares Android representam mais de 80% do mercado global.

O elemento mais grave nisso é a escala: falamos de centenas de milhões ou de bilhões de telefones Android
Juan Tapiador, professor

O novo estudo comandado pelos dois acadêmicos espanhóis revela a profundidade do abismo. Nenhuma das conclusões é radicalmente nova por si só: já se sabia que os celulares andam no limite das autorizações de uso na hora de colher e compartilhar dados. A novidade da função dos aplicativos pré-instalados está em sua extensão, falta de transparência e posição privilegiada dentro do celular: foram analisados 1.742 celulares de 214 fabricantes em 130 países.
“Até agora as pesquisas sobre os riscos de privacidade em celulares se centravam em aplicativos que estão listados no Google Play ou em amostras de malware”, diz Vallina. Desta vez, foram analisados os softwares que os celulares trazem de série, e a situação parece fora de controle. Devido à complexidade do ecossistema, as garantias de privacidade da plataforma Android podem estar em xeque.
O artigo, que será publicado oficialmente em 1º de abril e ao qual o EL PAÍS teve acesso, já foi aceito por uma das principais conferências de segurança cibernética e privacidade do mundo, o IEEE Symposium on Security & Privacy, da Califórnia.
Nossa informação pessoal é enviada a uma ampla rede de destinos, que muda segundo o celular, e alguns são polêmicos: para servidores do fabricante do celular, para empresas habitualmente acusadas de espionar nossas vidas —Facebook, Google— e para um obscuro mundo que vai de corporações a start-ups que reúnem a informação pessoal de cada um, empacotam-na com um identificador vinculado ao nosso nome e a vendem a quem pagar bem.

Nossa informação pessoal é enviada a uma ampla rede de destinos, alguns deles polêmicos 

Ninguém até agora havia se debruçado sobre este abismo para fazer uma investigação dessa magnitude. Os pesquisadores criaram o aplicativo Firmware Scanner, que recolhia o software pré-instalado dos usuários voluntários que o baixavam. Mais de 1.700 aparelhos foram analisados nesse estudo, mas o aplicativo está instalado em mais de 8.000. O código aberto do sistema operacional Android permite que qualquer fabricante tenha sua versão, junto com seus apps pré-instalados. Um celular pode ter mais de 100 aplicativos pré-instalados e outras centenas de bibliotecas, que são serviços de terceiros incluídos em seu código, muitos deles especializados em vigilância do usuário e publicidade.

Ao todo, um panorama internacional de centenas de milhares de aplicativos com funções comuns, duvidosas, desconhecidas, perigosas ou potencialmente delitivas. Essa quase perfeita definição do termo caos levou os pesquisadores a mais de um ano de exploração. O resultado é só um primeiro olhar para o precipício da vigilância maciça de nossos celulares Android sem conhecimento do usuário.

Mais de um fabricante

Um celular Android não é produto apenas do seu fabricante. A afirmação é surpreendente, mas na cadeia de produção participam várias empresas: o chip é de uma marca, as atualizações do sistema operacional podem estar terceirizadas, as operadoras de telefonia e as grandes redes de varejo que vendem celulares acrescentam seu próprio software. Os atores que participam da fabricação de um celular vão muito além do nome que aparece na caixa. É impossível determinar o controle definitivo de todo o software lá colocado, e quem tem acesso privilegiado aos dados do usuário.
O resultado é um ecossistema descontrolado, onde atualmente ninguém é capaz de assumir a responsabilidade do que ocorre com nossa informação mais íntima. O Google criou a plataforma a partir de código livre, mas agora ele é de todos. E o que é de todos não é de ninguém: “O mundo Android é muito selvagem, é como um faroeste, especialmente em países com escassa regulação de proteção de dados pessoais”, diz Tapiador.
“Não há nenhum tipo de supervisão sobre o que se importa e comercializa em termos de software (e em grande medida de hardware) dentro da União Europeia”, diz Vallina. O resultado? Um caos, onde cada versão de nossos celulares Android conversa com sua base desde o primeiro dia, sem interrupção, para lhe contar o que fazemos. O problema não é só o que contam sobre nós, mas que o dono do celular não controle a quem dá permissões.

O jardim fechado do Google Play

As empresas que reúnem dados de usuários para, por exemplo, criar perfis para anunciantes já têm acesso aos dados do usuário através dos aplicativos normais do Google Play. Então que interesse um comerciante de dados tem em chegar a acordos com fabricantes para participar do software pré-instalado?
Imaginemos que nossos dados estão dentro de uma casa de vários andares. Os aplicativos do Google Play são janelas que abrimos e fechamos: às vezes deixamos os dados sair, e às vezes não. Depende da vigilância de cada usuário e das autorizações concedidas. Mas o que esse usuário não sabe é que os celulares Android vêm com a porta da rua escancarada. Tanto faz o que você fizer com as janelas.
O software pré-instalado está sempre lá, acompanha o celular para cima e para baixo, e além do mais não pode ser apagado sem rootear o dispositivo – romper a proteção oferecida do sistema para fazer o que quiser com ele, algo que não está ao alcance de usuários comuns.

Esse usuário não sabe que os celulares Android vêm com a porta da rua escancarada

Os aplicativos que o usuário baixa do Google Play dão a opção de ver as permissões concedidas: autoriza seu novo jogo gratuito a acessar seu microfone? Permite que seu novo appacesse a sua localização para ter melhor produtividade? Se nos parecerem permissões demais, podemos cancelá-las. Os aplicativos que o Google fiscaliza têm seus termos de serviço e devem pedir uma autorização explícita para executar ações.
O usuário, embora não repare ou não tenha outro remédio, é o responsável final por suas decisões. Ele está autorizando alguém a acessar seus contatos. Mas os aplicativos pré-instaladas já estão lá. Vivem por baixo dos aplicativos indexados na loja, sem permissões claras ou, em muitos casos, com as mesmas permissões que o sistema operacional – quer dizer, todas. “O Google Play é um jardim fechado com seus policiais, mas 91% dos aplicativos pré-instalados que vimos não estão no Google Play”, diz Tapiador. Fora do Google Play ninguém vigia em detalhe o que acaba dentro de um celular.

Dois problemas agregados

O software pré-instalado tem outros dois problemas agregados: fica junto do sistema operacional, que tem acesso a todas as funções de um celular, e, dois, esses aplicativos podem ser atualizados e podem mudar.
O sistema operacional é o cérebro do celular. Sempre tem acesso a tudo. Independe que o aplicativo esteja acionado ou que o usuário possa apagá-la. Estará sempre lá e, além disso, é atualizado. Por que as atualizações são importantes? Aqui vai um exemplo: um fabricante autorizou uma empresa a colocar no celular um código que comprove algo inócuo. Mas esse código pode ser atualizado e, dois meses depois, ou quando a empresa souber que o usuário vive em tal país e trabalha em tal lugar, mandar uma atualização para fazer outras coisas. Quais? Qualquer coisa: gravar conversas, tirar fotos, olhar mensagens...
Os aplicativos pré-instaladas são fáceis de atualizar por seu criador: se muda o país ou as intenções de quem colocou lá um sistema de rastreamento, manda-se um novo software com novas ordens. O proprietário de seu celular não pode impedi-lo e nem sequer lhe pedem permissões específicas: atualiza-se o seu sistema operacional.

Essa informação às vezes é descomunal: características técnicas do telefone, identificadores únicos, localização, contatos, mensagens e e-mails
JUAN TAPIADOR, PROFESSOR

“Alguns desses aplicativos ligam para casa pedindo instruções e mandam informação sobre onde estão instalados. Essa informação às vezes é descomunal: relatórios extensos com características técnicas do telefone, identificadores únicos, localização, contatos na agenda, mensagens e e-mails. Tudo isso é reunido num servidor, e é tomada uma decisão sobre o que fazer com esse celular. Por exemplo, segundo o país no qual se encontre, o software pode decidir instalar um ou outro aplicativo, ou promover determinados anúncios. Verificamos isso analisando o código e o comportamento dos aplicativos”, diz Tapiador.
O servidor que recebe a informação inclui desde o fabricante, uma rede social que vende publicidade, um desconhecido comerciante de dados ou um obscuro endereço IP que ninguém sabe a quem pertence.
Um perigo é que esses obscuros aplicativos pré-instalados usam as permissões personalizadas (custom permissions) para expor informação a aplicativos da Play Store. As permissões personalizadas são uma ferramenta que o Android oferece aos desenvolvedores de software para que os aplicativos compartilhem dados entre si. Por exemplo, se um operador ou um serviço de banco tem várias, é plausível que possam falar entre si e compartilhar dados. Mas às vezes não é simples verificar quais dados algumas peças desse software compartilham.
Dentro de um celular novo há por exemplo um aplicativo pré-instalado que tem acesso a câmera, aos contatos e ao microfone. Esse aplicativo foi programado por um sujeito chamado Wang Sánchez e tem um certificado com sua chave pública e sua assinatura. Aparentemente é legítima, mas ninguém comprova que o certificado de Wang Sánchez seja real. Esse aplicativo está sempre ligado, capta a localização, ativa o microfone e conserva as gravações. Mas não manda isso a nenhum servidor, porque o aplicativo de Wang Sánchez não tem permissão para enviar nada pela Internet. O que ele faz é declarar uma permissão personalizada que regula o acesso a esses dados: quem tiver essa permissão poderá obtê-los.
Aí um dia o proprietário desse celular vai à Google Play Store e encontra um aplicativo esportivo magnífico. Que permissões oficiais lhe pedem? Só acessar a Internet, o que é perfeitamente comum entre aplicativos. E também pede a permissão personalizada do aplicativo de Wang Sánchez. Mas você não percebe, porque estas permissões não são mostradas ao usuário. Então, a primeira coisa que o app esportivo recém-chegado dirá ao pré-instalado é: “Ah, você mora aqui? Me dá acesso ao microfone e à câmera?”. Era aparentemente um app sem risco, mas as complexidades do sistema de permissões tornam possíveis situações desse tipo.
Os Governos e a indústria há anos conhecem esse emaranhado. As agências federais dos Estados Unidos pedem seus celulares com sistemas operacionais livres deste software pré-instalado e adaptados às suas necessidades. E os cidadãos? Que se virem. Seus dados não são tão secretos como os de um ministério.
“Exercer controle regulatório sobre todas as versões possíveis do Android do mercado é quase impraticável. Exigiria uma análise muito extensa e custosa”, explica Vallina. Esse caos lá fora permite que sofisticadas máquinas de vigilância maciça vivam em nossos bolsos.


OS AUTORES DOS APLICATIVOS


Os autores desses aplicativos são um dos grandes mistérios do Android. A investigação encontrou um panorama similar ao submundo da Dark Web: há, por exemplo, aplicativos assinados por alguém que diz ser “o Google”, mas não tem jeito de sê-lo. “A atribuição aos atores foi feita quase manualmente em função do vendedor no qual se encontram, quem as assina e se têm, por exemplo, alguma cadeia que identifique alguma biblioteca ou fabricante conhecido”, diz Vallina. O resultado é que há muitas que mandam informação aceitável a fabricantes ou grandes empresas, mas muitas outras se escondem detrás de nomes enganosos ou falsos.
Essa informação é facilmente vinculada a um número de telefone ou dados pessoais como nomes e sobrenomes, não a números identificativos tratados de forma anônima. O telefone sabe quem é o seu dono. O chip e dúzias de aplicativos vinculados ao e-mail ou à sua conta em redes sociais revelam facilmente a origem dos dado