terça-feira, 8 de julho de 2014

Que fim levou a direita ilustrada?

Que fim levou a direita ilustrada? | Blog da Boitempo

Que fim levou a direita ilustrada?

Confira aqui a tréplica de Christian Dunker à resposta de Rodrigo Constantino a este artigo.
Quando
entrei na USP em 1984 meus avós ficaram preocupados. Ainda era época do
degelo militar e a Psicologia vinha com um traço “róseo” que levantava
suspeitas em meu querido avô. Formado da tradição liberal inglesa, voraz
leitor do Estadão, ele iniciou uma espécie de profilaxia que
consistia em receber-me, às quartas feiras, para uma conversa sobre
temas de sua livre escolha: economia, política ou cultura. Minha avó
esperava a ocasião com uma generosa torrada sobre a qual repousavam dois
ovos pochés, em cima dos quais salpicava-se pimenta, extraída
de um daqueles antigos e compridos moedores feitos de madeira. Depois do
fausto e antes da partida de xadrez, vinha a chamada oral em torno dos
artigos, previamente selecionados na semana anterior: Delfim Neto,
Pedreira, Paulo Francis, Simonsen, Joelmir Beting e ao fim o
indefectível Bob Fields (Roberto Campos), combinavam-se com artigos mais
informativos do The Economist ou das revistas francesas ou
alemãs, que minha avó conseguia interpolar na conversa. Lembro
particularmente de um luminar da direita americana chamado Rush
Limbaugh, que quando ativado era o código para “agora o comunismo vai
tremer nas bases” e Cuba deixará de ser o exemplo eterno de
superioridade moral em matéria de educação e saúde. Rapidamente descobri
que havia alguns caras que “pegavam mais leve” e que havia uma tensão a
ser explorada entre meus dois avós, já que ela gostava mesmo era da Folha.
À medida que
a esquerda foi entrando, no país e nos meus anos de graduação, as
batalhas verbais com meu avô aumentavam em teor de pimenta. Daquela
época retive o diagnóstico de que as verdadeiras ideias liberais jamais
tinham sido realmente implantadas no Brasil. Não tínhamos instituições
fortes, nossa economia era ridiculamente fechada e o espírito de
discussão livre, pública e democrática havia sido sequestrado por dois
grandes malfeitores: o governo corruptor de adultos e a esquerda
corruptora de jovens. A alma do capitalismo é o risco, e as joint ventures
públicas ou privadas deviam ser o ponto nevrálgico de um grande sistema
baseado em punições e recompensas, praticadas pelas mãos invisíveis de
Adam Smith.
Havia ainda
outro lado da direita liberal. Sua capacidade de erudição, seu gosto
cultivado e seu exercício da ilustração. Independente do sentido
aristocrático ou popular deste tipo de virtude, ela não vinha sem alguma
humildade, característica daqueles que sabem o tamanho do problema que
se está a enfrentar. Talvez seja por isso que os antigos cadernos
culturais tinham títulos diminutivos como o Pasquim e o Folhetim, ou que indicavam sua condição acessória como o Suplemento Literário. Hoje passamos para a época dos superlativos como o Mais!, ou a atual Ilustríssima.
À esquerda podia-se perdoar a falta de lastro cultural, que em tese
seria substituído pela aposta em novas formas, vanguardas ou não,
populares se benfazejas. Afinal, cultura implica conservar, cuidar,
manter. Por isso a direita tinha a obrigação moral de pagar o imposto
por sua própria vocação e conservar os clássicos, louvar as origens e
cantar as descendências. Foi assim que a própria relação entre política e
cultura tornou-se um tema mais político para a esquerda e mais cultural
para a direita.
Fato é que
aprendi a respeitar este tipo de pensamento liberal que era realmente
uma forma de pensamento, um estilo, que podia ser mais ou menos
conservador, mais inglês que francês, mais protestante que católico,
mais liberal do que progressista, mais aderido aos fatos do que às
interpretações, mais realista do que construtivista. Ser de direita não
tornava o sujeito imediatamente desrespeitável, mas um adversário a ser
batido. Podia-se refazer a genealogia imaginária deste tipo de
liberalismo no pessimismo auto-irônico de Machado de Assis (o nosso
Chesterton), na poesia densa de João Cabral, na sobriedade metodológica
de Villa Lobos, ou nas tragédias de Nelson Rodrigues (o nosso Swift).
Todos eles expressões mais ou menos reativas ao positivismo francês e
seu moralismo de ocasião.
Nos anos
1980 a ecologia apareceu como um tema emergente, meio político, meio
cultural. Logo foi metabolizado pelos liberais na seguinte máxima: “nada menos ecológico do que uma criança com a barriga vazia”.
Para este tipo de pensamento progresso e economia vêm primeiro, justiça
e distribuição são uma espécie de consequência natural: “Primeiro vamos fazer o bolo crescer, depois distribuímos suas fatias
– era a lei de Delfim. Para esta narrativa nossos heróis são os
capitães de indústria de Mauá a Hermírio de Morais passando por Chatô.
Foi também nesta época que o tema do “social” caiu no colo da esquerda,
para desespero de meu avô. Como observou outro dia Paulo Arantes, em entrevista a Mario Sergio Conti, no… GloboNews
(isso sim teria levado meu velho ao colapso) a identificação entre a
esquerda e a defesa de temas sociais é relativamente recente. E esta
ideia de um Estado benemérito, sem mexer no “core” da economia, é, no fundo, senão estratégica, um pouco estranha.
Tais
“maravilhosas” sínteses facultavam que na hora de escolher entre o
sórdido caráter egoísta e hobbesiano ou a alegre idealização de nós
mesmos, promovida pela Liga da Justiça formada pelos descendentes de
Rousseau e Marx, seria preciso optar sempre pela primeira alternativa.
Gostaria que
meu velho avô Colin voltasse para este mundo, apenas para ver ao que se
reduziu o pensamento de direita e quiçá dar-me razão, pelo menos uma
vez, senão em vida, depois da morte. Talvez ele tenha prenunciado os
novos tempos quando em um de seus últimos gestos renunciou à revista Veja
dizendo que aquilo tinha virado propaganda de remédio aplicada à
política. Quando leio Reinaldo Azevedo, Olavo de Carvalho, Diogo
Mainardi, Rodrigo Constantino e os chamados neoconservadores eu me
pergunto: o que aconteceu com a tênue, mas boa, tradição da direita
ilustrada brasileira? Que fim levou o pessoal que realmente acreditava
nas ideias de Milton Friedman, que queria discutir Ayn Rand ou que, no
geral, tinha teses para interpretar o Brasil?
Gostaria de dizer para meu velho avô: olha aí, aquilo deu nisso.
Mas não é verdade. Há uma espécie de erro de continuidade neste filme
onde, de repente, aparece um pessoal dançando uma espécie de “Lepo Lepo”
sanguinário contra o PT. Uma espécie de macarthismo retórico contra
tudo o que cheire, pareça ou suporte a projeção vermelha. É uma turma
que surge do nada, fantasiada de Capitão Nascimento, dizendo coisas que
nem o Maluf do “estupra, mas não mata” seria capaz de dizer. Há uma
fratura de gerações na direita, que de repente deu a luz a espécimes
mutantes capazes de argumentar que o “2014” escrito em vermelho no
logotipo da Copa do Mundo só pode ser uma propaganda subliminar da
esquerda. Se o poder perdeu a vergonha, a reflexão de direita sobre o
poder transformou a crítica em pichação. Esquecendo sua nobre origem
liberal, não se pode reconhecer nos neoconservadores nem mesmo os
bibelôs da história: seus heróis, ideias ou compromissos. Basta entrar
no Bonde do “Ai se eu te pego” para perseguir, criar e vender inimigos,
qual romanos vendendo bárbaros aprisionados como escravos.
Ninguém viu,
ninguém sabe como chegaram esses sujeitos a posições de reputada
representação em grandes diários, revistas, canais de televisão ou blogs
correlatos. Passagem pelo governo, partido ou qualquer outro órgão
politicamente formativo: nenhuma. Experiência com movimentos sociais,
terceiro setor ou com grandes corporações: desprezível. Reputação
acadêmica da moçada: zero. Aliás, para esta turma, a academia deveria
ser extinta, privatizada, vendida como ferro velho, ou comprimida e
coada antes da floculação tendo em vista a extração vendável de pigmento
vermelhiforme.
Da antiga
indignação liberal, ainda que com a típica arrogância dos vencedores,
que não obstante entendiam-se como guardiões da virtude, não sobrou mais
que a raiva dos impotentes. Leia-se: a cólera esbravejante dos que
acreditam que possuem mais poder do que realmente têm. Antes a velha
direita cheirava a dinheiro e gostava de dizer-se acima de esquerdas ou
direitas, pois era tão somente contrária à vulgaridade. Ao que a velha
esquerda respondia com “o meu partido é um coração partido”. Hoje,
denunciam, reagem e latem como caçadores baratos de celebridade. E o
sentimento basal é de vergonha alheia.
Com uma direita destas quem precisa de esquerda?
Esta direita está mais para os ovos poché
de minha avó do que para o Rush Limbaugh de meu avô. São quadrados,
ásperos e chatos como uma torrada queimada. Os ovos são moles e espalham
tudo com qualquer furinho à toa. Mas o pior é que ainda não entenderam
que não é para sentar em cima do moedor de pimenta.
***
miniaturaEm outubro a Boitempo lança Mal-estar, sofrimento e sintoma,
de Christian Dunker. Novo título da coleção Estado de Sítio, coordenada
por Paulo Arantes, o livro parte de uma psicanálise da vida
em condomínios para desenvolver uma aprofundada
reflexão interdisciplinar sobre a privatização do espaço público e
inserção da psicanálise no Brasil.



***


Christian Dunker assina a orelha de A visão em paralaxe, de Slavoj Žižek. Confira a aula Žižek e a psicanálise de Christian Dunker ministrada no “Curso de introdução à obra de Slavoj Žižek” do Seminário Internacional Marx: a criação destruidora, que trouxe, entre outros, David Harvey e o filósofo esloveno ao Brasil:

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Christian Ingo Lenz Dunker é
psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do
Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012, seu livro mais recente é Sofrimento, mal-estar e sintoma (Boitempo, 2014, no prelo). Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa 
Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

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