sábado, 11 de outubro de 2014

Os pobres e ignorantes não sabem votar? — CartaCapital

Os pobres e ignorantes não sabem votar? — CartaCapital

Os pobres e ignorantes não sabem votar?

A onda de preconceito de classe e racismo geográfico mostra uma grande
dificuldade em admitir outras razões para o voto. Mas classes sociais
votam por razões distintas

por Wilson Gomes



publicado
09/10/2014 14:48,


última modificação
09/10/2014 14:58

Elza Fiúza/ Agência Brasil
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Santinhos espalhados pelo chão de uma zona eleitoral no Núcleo Bandeirante, em Brasília
Tem
sido assim desde, pelo menos, 2006. Basta o PT vencer uma eleição
presidencial para a nossa fábrica social de diagnósticos e explicações
começar a funcionar com força total. Jornalistas, comentaristas de
política, pessoas nos bares da vida e nos botecos das redes sociais
digitais, e até
FHC, contrariados
ou intrigados com o que as urnas disseram, todos passam compulsivamente
a “explicar” como pode ter sido possível tamanho contrassenso, tal
violação da lógica e das evidências, erro de tal proporção e tantas
consequências. O raciocínio de base é sempre o mesmo: a) a maioria dos
eleitores fez escolhas diferentes da minha; b) escolhas divergentes da
minha são erradas; c) quem foi esse insensato, irresponsável,
desqualificado, inocente útil, desvalido a cometer tamanho desvario?



Neste ano, notei a inauguração de
outro veio argumentativo, desta vez a respeito do resiliente voto tucano
em São Paulo, que provavelmente deve intrigar o Brasil inteiro. A lista
dos deméritos do governador é enorme: provocou a fúria das massas nas,
agora elevadas à glória dos altares, “manifestações de junho”; “a
polícia de Alckmin” barbarizou jornalistas e manifestantes naquela e em
outras ocasiões; o seu governo conseguiu fazer com que os paulistanos
temessem a falta de água como sertanejos do semiárido.



Como é que depois de tudo isso ele é
reeleito de forma consagradora? Estarão os paulistas hipnotizados? São
antipetistas tão fanáticos que votariam até em Lúcifer - desde que ele
tucanasse -, não importa as consequências?



A base do argumento é a mesma: eu sei
que X não merece ser eleito, por N razões; mas X é eleito; logo, algum
erro moral ou intelectual há nessa decisão de eleger X.



O site UOL abriu a usina de
explicações ontem com “Dilma vence nos sete Estados com menor renda
média”. As garotas e garotos do canal GloboNews, com o luxuoso auxílio
dos meninos descolados do Manhattan Connection, deixavam entender, sem
disfarce, que “o Nordeste” é a única força capaz de impedir que Aécio
cumpra a sua sentença, ser presidente do Brasil, que SP estava fazendo,
com entusiasmo, a sua parte para recolar o cosmo no seu lugar, mas tinha
uma Bahia de votos no meio do caminho.



No Twitter, no Facebook e no WhatsApp
as explicações eram as mesmas desde 2006, com poucas variações. As
alternativas são as de sempre: a) Dilma vence onde o IDH é menor; b)
Dilma só vence acima do trópico de Capricórnio (sim, Sílvio Romero, não
há civilização que preste entre os Trópicos); c) Dilma só ganha por
causa do Nordeste; d) Dilma só vence por causa dos ferrados, vendidos à
dinheirama que o Bolsa Família - esta fábrica de preguiçosos e
acomodados, esta usina de dependência que, em vez de eliminar a pobreza
faz com que ela se perpetue para que o PT nunca mais perca eleições -
distribui; e) Dilma vence apenas em estados com baixo consumo de
proteína e com menor estatura média da população.



Um amigo muito querido no WhatsApp
disparou, em dasalento, que deixará "esta merda de país" assim que for
possível, que não aguenta mais ver os analfabetos e desdentados
decidindo as eleições presidenciais.



Vou chamar o raciocínio à base de
tudo de silogismo Oliveira Vianna. Premissa maior: Só ferrados, famintos
e ignorantes votam em Dilma. Premissa menor: Ferrados, famintos e
ignorantes são inferiores a nós. Conclusão: Dilma é eleita apenas com o
voto dos inferiores. Depois de exercício tão consistente de lógica,
estamos autorizados a vociferar a nossa fúria mediante o racismo
geográfico (então nordestino, baiano, paraíba etc. voltam a ser
palavrões), o preconceito de classe (miseráveis e ignorantes dependentes
do Bolsa Família) e na atribuição de inferioridades e vulnerabilidades
aos outros (a mídia paralisa o cérebro dos pobres, todo mundo sabe
disso, abrindo a brecha para João Santana entrar e inocular o veneno
petista diretamente no hipocampo). Nessas três coisas, nós, os
brasileiros, somos muito bons.



O problema com esse raciocínio é que
ele tem grande dificuldade de admitir outras razões para o voto,
diferente das que eu adoto para a minha própria decisão. As minhas são
razões, as dos outros, não. Quanto mais longe de mim é o outro (a outra
classe social, a outra região do país), cognitivamente, politicamente ou
moralmente, menos ele tem razões: ele age por instintos, interesses,
necessidades. Nunca racionalmente. Racionais como “nós”.



Peguemos os pobres, onde se resume
toda a questão. Se os pobres votam no PT, o fazem porque são
vulneráveis, ignorantes, não têm discernimento? Para os petistas
tatuados os pobres são vulneráveis à mídia e ao capitalismo, que os leva
pelo nariz como são levados os boi de arrasto. Para a classe média
antipetista, os pobres são vulneráveis ao marketing político e às
esmolas que o PT distribui no lugar remoto onde eles vivem, chamado,
alternativamente de “as favelas”, “os grotões” ou “o Nordeste”.



Basta admitir que os pobres têm, sim,
boas razões para o seu voto e todo esse edifício de argumentos montados
para a conveniência da classe média cai por terra. A teoria poderia,
naturalmente, ser diferente. É bastante admitir que diferentes classes
sociais votam por diferentes razões. Todas legítimas.



Vem cá, é razoável esperar que os
31,7% dos brasileiros que vivem com R$ 150 de renda per capita por mês
votem por razões diferentes de nós, da classe média, ou não? Não é que
os pobres votem em Dilma porque não usam a razão. Os pobres votam em
Dilma porque têm lá as suas muito justificadas razões. Os pobres são tão
inteligentes que sabem que as razões de voto da classe média não podem
ser as suas razões de voto. São pobres, não são burros. Burro é o cara
de classe média que acha que tanto o rico quanto o pobre devem votar
pelas suas mesmas razões. Burro e autocentrado.



O PSDB decidiu que as pessoas devem
votar em Aécio por causa da corrupção do PT e do baixo crescimento
econômico. Para mim, é um bom argumento. Aécio vai insistir nos "pecados
capitais" de Dilma: crescimento anêmico da economia, inflação e
incapacidade de conter corrupção. Para mim, são bons argumentos. Ainda
mais que não sou petista e a minha simpatia pelo partido está em
acentuado declínio. Mas, se eu ganhasse R$ 150 por mês para cada pessoa
que sustento na minha família, esse argumento não me diria NADA. São,
pois, ótimos argumentos para a classe média, crescentemente antipetista.
E para os outros? O PSDB vai dizer o quê? "Vamos conversar?". Rá.



Na situação atual, acho que os pobres
é quem têm mais motivos de queixa do que nós da classe média, afinal é
só nas eleições que eles contam mais que nós. Nos intervalos, mandamos
nós. Em suma, nós é que atrapalhamos o voto deles, não eles o nosso. A
GloboNews acha que o Nordeste é o que atrapalha a vitória de Aécio. Ué,
não é SP quem atrapalha a vitória de Dilma?



O que os eleitores dos tucanos no Sul, Sudeste, Nordeste etc. precisam entender é que se os pobres contam eleitoralmente, precisam
contar também como cidadãos. Como a democracia nos obriga a reconhecer
nos pobres ao menos os mesmos direitos eleitorais que temos, o PSDB tem
um nó a desatar. Enquanto os tucanos acharem que as razões de voto dos
distritos financeiros e industriais de SP, Rio, Minas etc. têm que ser
as mesmas dos 50 milhões de brasileiros pobres, terá um problema.



Do jeito que a coisa anda, ou os tucanos acabam com a pobreza,
ou a pobreza acaba com os tucanos. Ou, de tanto bater na tecla, quem
sabe, convençam os pobres de que o PT inventou a corrupção e que se
deita toda noite com ela. Continuem tentando, quem sabe?



Pobre não é raça, não é casta, não é
natural. Pobre é circunstancial. Ponha todo mundo na classe média e aí
prioridades e urgências eleitorais da classe média poderão ser
generalizadas. Não quer que as razões eleitorais de gente dependente de
bolsa esmola, com baixa escolarização e mal nutrida atrapalhem e
perturbem a sua cristalina decisão de voto, puxando o resultado para o
lado que eles pendem? A solução é simples: acabe com a pobreza e
universalize a educação. Enquanto isso, aceite que eles terão diferentes
razões para as suas escolhas eleitorais ou desista da democracia. Ou
continuemos a nos divertir com o preconceito social e o racismo
geográfico que as más explicações e os falsos diagnósticos nos
autorizam. São escolhas.



* Wilson Gomes é professor e pesquisador da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia.

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