Crise política brasileira: Conti: “A elite brasileira quer encerrar o ciclo do PT no poder a qualquer custo” | Brasil | EL PAÍS Brasil
A literatura especializada em impeachment no Brasil não é vasta, mas certamente mais completa do que a de muitos países. Em Notícias do Planalto (Companhia das Letras; 1999), o jornalista Mario Sérgio Conti destrincha o processo de impeachment de Fernando Collor de Mello,
afastado do poder no final de 1992. Relato pioneiro, o livro é
considerado uma importante referência – não só de como Collor caiu, mas
também das fronteiras entre os poderes e a grande imprensa no país. De
1991 a 1997, Conti foi diretor de redação da revista Veja, a quem Pedro Collor revelou os esquemas corruptos do irmão presidente. O hoje apresentador do programa Diálogos, na Globonews, e colunista às terças-feiras na Folha de S.Paulo, onde começou a carreira em 1977, conversou com o EL PAÍS, por telefone, sobre o cenário atual.
Pergunta. Quando compara o impeachment de Dilma
Rousseff com o de Fernando Collor, a maioria dos analistas destaca que
ela ainda tem apoio político, enquanto ele estava praticamente sozinho. É
essa a grande diferença entre os dois processos?
Resposta. Fernando Collor, que estava numa legenda
de aluguel, o PRN, não tinha um partido forte que o respaldasse. Teve o
apoio de Leonel Brizola e de Antônio Carlos Magalhães, que foram contra o
impeachment, e só.
Dilma conta com a sustentação de um partido estruturado, com
governadores e prefeitos, e teve excelente votação em 2014, ainda que o
PT seja contra a política econômica da presidenta e que o apoio a ela
fora do partido esteja erodindo. Ao contrário de Collor, Dilma tem um
amparo popular expressivo: há dez dias, 100.000 pessoas foram à Avenida Paulista defendê-la.
Por fim, ela conta com a simpatia do melhor da intelectualidade.
Antonio Cândido, um dos grandes pensadores da América Latina, está com
ela, assim como Chico Buarque, Luis Fernando Veríssimo, Roberto Schwarz,
Luiz Carlos Bresser-Pereira e Alfredo Bosi, além dos atores Wagner
Moura e Paulo Betti. São personalidades que se posicionam contra a
maneira atropelada como o impeachment vem sendo conduzido, com
desrespeito a direitos fundamentais e à boa prática republicana.
P. Isso é suficiente para evitar a destituição da presidenta?
R. Impossível dizer. A situação é por demais
volátil. Há ainda muito para acontecer até a votação da Câmara. Qualquer
fato dramático pode alterar o resultado. Quem ocupará a Praça dos Três
Poderes e a avenida Paulista no dia da votação? Os pró ou os contra o
impeachment? E a polícia, o que fará? O que é possível dizer é que o
Brasil será diferente depois da votação do impeachment, seja ele
aprovado ou não. O país está dividido – e os derrotados irão reagir à decisão.
P. Em 1992, a corrupção foi um elemento central do impeachment, assim como hoje. Como compara as duas situações?
R. Não acho que a corrupção tenha aumentado de
maneira significativa desde então. Há maior disposição em atacá-la,
porque parte expressiva do povo está exasperada com as denúncias
contínuas, com as cifras formidáveis surrupiadas por larápios. Os
serviços públicos seguem sendo horríveis, enquanto empresários e
políticos se refastelam em roubalheiras. Agora, o sistema político
brasileiro é corrupto, não tem como. Foi criado para ser assim e
continuará assim, enquanto não houver mudanças profundas. No caso do Collor, a corrupção foi caracterizada
– ficou provado com documentos que havia dinheiro do Estado indo para o
bolso dele. No caso de Dilma, pode-se dizer que, até agora, nada foi
comprovado. Está evidente que ela contribuiu para levar o país à
recessão, que mentiu na campanha, que é mal humorada etc. Mas nada disso
é crime de responsabilidade e, portanto, justifica o impeachment.
P. A principal base para o impeachment de Dilma
ainda são as pedaladas fiscais e, principalmente no pedido que está na
Câmara, decretos de suplementação orçamentária de 2015 que, segundo os
acusadores, feriram a lei orçamentária. Muitos dizem, no entanto, que
isso não é o bastante para tirá-la do poder.
R. Pouquíssimos são os que entendem o que sejam pedaladas fiscais. E, os que entendem, informam que prefeitos, governadores e presidentes pedalam desde sempre.
O que ocorreu é que o ambiente político mudou muito, e recentemente. A
santa aliança da Fiesp-tucanos-movimentos de classe média se
solidificou. A elite brasileira quer encerrar o ciclo do PT no poder a
qualquer custo.
P. Quais as diferenças da situação econômica na época de Collor e agora?
R. Assim como com a corrupção, também na economia o
que havia naquele tempo é equiparável ao que há hoje. A situação é
péssima: desemprego, inflação subindo, recessão, desindustrialização.
Mas como a economia melhorou desde 1992, o patamar é hoje mais alto.
Então, os problemas econômicos são mais ou menos semelhantes.
P. Seu livro Notícias do Planalto destrincha o papel da imprensa na destituição do Collor. Como você vê a imprensa no caso de Dilma?
R. No impeachment do Collor, a imprensa teve um
papel preponderante de apurar a corrupção. Os repórteres suaram a camisa
para mostrar os podres do Planalto. E as reportagens tiveram um peso
enorme. Agora, a imprensa não apurou quase nada. São setores da Justiça
que estão à frente das revelações. Até porque a Justiça tem mais
instrumentos que os jornalistas para ir fundo nas apurações. Juízes
dispõem de prisões cautelares, interrogatórios, delações premiadas etc.
Então, a imprensa virou um espaço para veicular opiniões, por meio de
entrevistas, análises, editoriais, artigos, colunistas e cartas. Seu
papel foi reduzido. Naquela época, a Folha e outros jornais fizeram
editoriais contra a permanência de Collor no poder, e como havia bem
menos colunistas, a palavra dos órgãos de imprensa teve peso. Hoje, há
um opinionismo desvairado, potencializado pelas redes sociais,
com seus posts e comentários, em que todo mundo sobe num caixote, grita e
opina.
P. Entendo que esse seja um aspecto negativo. Vê
algo de positivo na internet e nas redes sociais? Não há maior acesso à
informação e menos homogeneidade, por exemplo?
R. A liberdade de expressão, sem dúvida, é um
aspecto positivo. Mas existe uma cacofonia. Muitos blogs e sites
veiculam comentários distorcidos, mentirosos, caluniosos e até
criminosos – ainda que anônimos. Isso gera uma escalada da violência,
que não ficará no plano retórico. A violência verbal está extravasando
em agressividade real. Agora, juízes e ministros são intimidados e
insultados em lugares públicos, em hospitais e restaurantes. Se você
substituir a palavra “petista” por “judeu”, nesses sites e blogs, notará
que eles existem para incentivar o linchamento, como os pogroms.
As pessoas que mantêm esses sites não têm propriamente uma política:
elas querem aniquilar uma força política, o PT. O caldeirão no qual hoje
o impeachment fermenta é bem mais venenoso do que na queda de Collor.
P. O atual protagonismo do Judiciário é positivo?
R. É bom que a Justiça vá atrás de corruptos. Que
apure os fatos, recolha provas categóricas, julgue os acusados com rigor
e os bote na cadeia por um longo tempo. A Lava Jato
fez isso muito bem. Depois, veio mudando. Vazar informações de
processos sigilosos continuamente não é deslize. É um método. É buscar
influir na cena política por meio de uma ilegalidade. Divulgar um
telefonema da presidenta é uma monstruosidade jurídica, porque ela tem
foro superior. Gravar conversas de um cliente e seu advogado é crime.
Então, vejo setores do Judiciário extrapolando suas funções e juízes
virando justiceiros, celebridades.
P. Isso que você vê como distorções atrapalha a democracia?
R. Claro. Se for caracterizada a obstrução da
Justiça no caso da nomeação de Lula para o ministro, por Dilma, se
abrirá espaço para a destituição da presidente. Mas divulgar a conversa
telefônica entre eles, sem qualquer investigação, com base em suposições
toscas, foi outra coisa. Foi um abuso inominável, que, no entanto,
provocou efeitos ribombantes, em cascata. O ministro Teori Zavascki, do STF, encarregado de supervisionar o que a Lava Jato
faz, disse, em termos severos, que a divulgação do telefonema
prejudicou o processo legal e o direito dos grampeados. Acrescentou que o
juiz Sergio Moro não poderia ter feito isso. Agora, porém, o mal já foi
feito. E a declaração do ministro Zavascki teve 0,01% do destaque que
teve o telefonema de Lula e Dilma.
P. O processo tem sido conduzido sob esse lema, “agora o mal já foi feito”?
R. Em momentos determinantes, sim. A democracia tem
muito de conturbado, de sujo mesmo. Funciona assim. O que impressiona é
que no Brasil a resistência à baixaria seja tão reduzida. É legítimo
discordar da presidenta, achar que ela é péssima. Mas cadê o crime de
responsabilidade?
P. Sobre a condução do processo na Câmara dos
Deputados, de que maneira ter um presidente como Eduardo Cunha,
implicado nas investigações da Lava Jato, influencia o processo?
R. Eduardo Cunha
é réu numa penca de processos. Está sendo processado no Supremo
Tribunal Federal, tem contas não declaradas na Suíça, gastou milhares de
dólares com bens de luxo, sonegou impostos etc. E os nobres deputados
não mexem uma palha para afastá-lo da presidência da Câmara, ao menos
enquanto durarem as investigações. Renan Calheiros, presidente do
Senado, está implicado também. Os pró-impeachment podem achar que isso é
desimportante, mas essa avacalhação tira legitimidade do processo. Boa
parte dos integrantes da Câmara foi eleita graças a doações de
empreiteiras – que moral eles têm para julgar o afastamento da
presidenta? Mais da metade da comissão da Câmara que examina o pedido de
impeachment é formada por deputados acusados de ladroagem – e ainda
assim estão lá, vestindo a camisa verde e amarela. Como crer na isenção
da Câmara?
P. Os erros de agora serão cobrados no futuro?
R. Acho o contrário. Quem conspira e age contra a democracia no Brasil nunca é punido. Um Bolsonaro nunca existiria se os algozes do golpe de 1964 tivessem sido responsabilizados,
processados, julgados e punidos. As ilegalidades institucionais jamais
foram punidas. Por isso, os autoritários se sentem à vontade para vergar
a lei, dar um verniz de legalidade a atrocidades contra o direito das
pessoas, e seguirem em frente. Na regra, golpistas são acobertados.
Inclusive pelo PT e Dilma. O seu governo montou uma Comissão da Verdade
que trabalhou três anos e produziu um documento de 1.000 páginas -- que
ninguém leu nem levou a sério. Torturadores e assassinos continuaram a
dormir tranquilos. Por que as pessoas que hoje atropelam a lei pensariam
que serão punidas?
P. O pós-impeachment de Fernando Collor teve certa tranquilidade. O que se pode esperar se Dilma Rousseff cair?
R. Virá, suponho, um período nebuloso e turbulento. É
possível que a economia dê uma melhorada momentânea, caso ela caia.
Vamos ser otimistas e dizer que isso acontecerá. Mas, depois de uns três
meses, os problemas econômicos nacionais, os problemas estruturais,
continuarão do mesmo tamanho. Além da economia em dificuldade, veja o
SUS, a educação, a Previdência etc... Temer tem uma varinha de condão
para enfrentar tudo isso?
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