Economista francês defende imposto sobre fortunas e heranças no pós-covid.
Andrade
 tem 33 anos e é filho de Dona Marina e Seu Antonio. Ela sempre cuidou 
da casa e dos 7 filhos; ele trazia do mar o sustento da família. A vila 
de pescadores no litoral do Ceará foi batizada como Preá. Por lá as 
crianças sempre correram soltas pelas ruas de areia, nas idas e vindas 
entre a única escola pública, a casa simples e a praia.
Aos
 18 anos, Andrade enxergava a pesca como única opção de futuro, nada 
além disso. Decidiu tentar a sorte na cidade grande. Partiu para São 
Paulo e lá ficou por quase 10 anos. Começou como cumim em um restaurante
 chique até se tornar sommelier.
Mas os 
vinhos e a boa mesa ficaram no passado. Ele resolveu voltar para o 
Ceará, assim como uma centena de jovens locais, que, como Andrade, no 
passado haviam sido confrontados com o dilema “pescar ou migrar” e 
tinham optado pela segunda opção.
O bom 
filho à casa retorna virou uma realidade no Preá por um simples motivo: 
oportunidades. Conhecida pelas fortes correntes de vento em boa parte do
 ano, a região se transformou na última década em meca mundial para a 
prática do kitesurf – esporte aquático em que uma prancha se desloca ao 
sabor dos ventos puxada por uma pipa gigante, que atrai cada vez mais 
adeptos.
Hoje, 80% da economia da região 
gira em função do kitesurf. E o desenvolvimento do turismo local tem 
sido robusto e sustentável, uma boa referência para o Brasil.
Compartilho
 esta história porque ela se conecta à nossa conversa desta edição. 
Andrade nasceu em uma das regiões mais pobres e desiguais do país: o 
nordeste brasileiro. Ao mesmo tempo, uma das regiões com o maior 
potencial de desenvolvimento do planeta: sim, o nordeste brasileiro. O 
Preá e a vida deste jovem de 33 anos são a materialização do que pode e 
deve ser o nosso futuro: uma nação que gera oportunidades e direito de 
escolha aos seus cidadãos, independentemente do CEP de nascimento.
Para
 conversar sobre desigualdades e geração de oportunidades, convidei para
 dialogar um dos mais respeitados pensadores e autores da atualidade. 
Seu livro O Capital no Século XXI vendeu no mês de lançamento, em 2013, 
mais do que qualquer outro livro da Harvard University Press em 101 
anos. Nenhuma obra de economia teve impacto tão explosivo. Foi 
seguramente o livro de economia mais debatido dos últimos anos.
A
 revista The Economist declarou que a obra poderia “revolucionar o modo 
como as pessoas enxergam a história econômica dos últimos dois séculos”.
 A também britânica “Prospect” acrescentou o autor à sua lista de 
pensadores mais influentes do mundo ocidental.
Economista
 francês, ele é reconhecido mundialmente pelas pesquisas sobre 
desigualdade e redistribuição da renda. Partindo de uma fórmula simples,
 constatou que, sem mudanças políticas, não há nem haverá como escapar 
do aumento da desigualdade, visto que a renda sobre o capital avança em 
ritmo mais acelerado do que o crescimento econômico.
Thomas
 Piketty se junta hoje à galeria de notáveis que se dispuseram a 
compartilhar, aqui no Estadão, suas visões de vanguarda sobre o mundo 
contemporâneo e sobre o pós-pandemia. As ideias e teses do francês não 
são uma unanimidade. Mas, sem dúvida, são provocativas. Bem embasadas, 
servem de combustível para necessárias reflexões.
•
 O que me traz a você é minha curiosidade. Tenho buscado aprender e 
discutir como fazer um Brasil menos desigual, gerador de oportunidades 
para todos. A enorme maioria da população brasileira vive uma perversa 
pobreza hereditária, sem mobilidade social. Na sua opinião, o que fez do
 Brasil um dos países mais desiguais do planeta?
Uma
 das conclusões-chave que trago no livro Capital e Ideologia é que, no 
longo prazo, o que traz prosperidade a um país é a diminuição da 
desigualdade, um sistema educacional mais inclusivo e uma redução da 
concentração de renda. O Brasil não passou pelas grandes transformações 
no século 20 que em alguns lugares diminuíram a desigualdade e, com 
isso, aumentaram a prosperidade da economia. O Brasil não sofreu tanto 
com os horrores das duas Guerras Mundiais, que, nos EUA e no Leste 
Europeu, por exemplo, contribuíram bastante para a alteração do cenário 
político, para a competição pelo poder entre grupos sociais. A depressão
 econômica antes e depois das Guerras ajudou a desacreditar a antiga 
elite e a reduzir a legitimidade do sistema de mercado, desse sistema 
capitalista do laissez-faire, o que forçou um rebalanceamento das 
forças. No Brasil, isso não aconteceu. O legado da escravidão, esse 
legado específico da origem do Brasil, não permitiu o desenvolvimento de
 novas forças. A história dos partidos políticos do país, a importância 
dos militares, é uma situação inicial de muitas desigualdades.
Está
 completamente errada, porém, a visão de que uma cultura de igualdade ou
 de desigualdade é uma característica permanente de um país. Observando 
diferentes casos, você vê que países que hoje parecem muito 
igualitários, como a Suécia, e países ainda mais desiguais do que o 
Brasil se transformaram completamente depois de determinadas mudanças 
políticas, mudanças até mesmo pacíficas. Na história política do Brasil,
 você sabe melhor do que eu, o voto universal é relativamente recente. 
Só começou realmente no final dos anos 1980. Todas as Constituições 
antes disso excluíam parcelas da população.
Faço
 televisão há mais de 20 anos. Falo com 30 milhões de brasileiros toda 
semana. Sou um bom ouvinte e gosto de contar histórias. A desigualdade 
brasileira ninguém me relatou: eu vi. E esse desconforto me fez sair da 
zona de conforto e começar a procurar soluções para nossos problemas. 
Como você explicaria para uma pessoa comum, alguém do povo, que a vida 
dos filhos dela e dos netos dela pode melhorar?
É
 difícil estimar prazos e expectativas consistentes quanto ao que pode 
ser realizado em 5 ou 10 anos. Há um discurso conservador, especialmente
 no Brasil, em que as elites dizem que a redistribuição de renda só 
poderá ser feita no futuro, quando o país for mais rico, e que, se feita
 agora, será um desastre até mesmo para os pobres. O que eu quero dizer 
para os brasileiros é que, pelas evidências internacionais e pelas 
evidências históricas, o Brasil é hoje desigual demais para conseguir se
 desenvolver. Não estou sugerindo zerar a desigualdade e taxar as 
pessoas ricas em 100%. Mas, no Brasil, hoje você paga altos impostos 
indiretos – de 20%, 30%, na sua conta de eletricidade, por exemplo. E, 
se você herda uma herança imensa, você paga somente 1% ou 2% de 
impostos. Em muitos países, inclusive alguns dos mais ricos do mundo, as
 pessoas pagam menos impostos na conta de eletricidade e mais impostos 
sobre altas quantias de dinheiro.
• Sempre
 que discutimos políticas de proteção social, de diminuição das 
desigualdades e geração de oportunidades, temos que ficar atentos para 
que não se torne uma equação de soma zero. Qual o melhor caminho para o 
Brasil considerando a estrutura do Estado brasileiro: cara, pesada, 
ineficiente, corrupta e com pouquíssima capacidade de investimento?
Vocês
 precisam de mais transparência sobre quem está pagando o quê e sobre 
quem está recebendo o quê. No Brasil, é muito difícil de saber, em nível
 de bens econômicos, quem está pagando tais e tais impostos e quem está 
acessando tais e tais serviços. Para gerar confiança no Estado 
brasileiro e para aumentar a capacidade do governo de investir, essa 
transparência é fundamental. Supostamente nós vivemos a era da bigdata, 
mas, na prática, a nossa bigdata é falsa, não passa de um grande 
monopólio privado das grandes empresas de tecnologia. Estamos, na 
verdade, na era da grande opacidade no que se refere à administração 
pública. Da capacidade do governo de rastrear a desigualdade, de 
rastrear dados de saúde pública etc, tudo é muito mais restrito do que 
deveria ser. Acho importante municiar as pessoas, dar as informações, 
dar a possibilidade de as pessoas acompanharem e avaliarem o que o 
governo está fazendo, acompanhando os progressos e fracassos. Se vo
‘O Brasil é desigual demais para se desenvolver’ Thomas Piketty
cê
 tem uma certa distribuição da carga tributária no Brasil em 2020 e 
2021, é importante fixar uma meta para 2022, 2023, 2024, 2025, e 
divulgar isso publicamente para mostrar o que foi feito o que não foi. 
Por enquanto existe um grande discurso sobre justiça social, mas não os 
meios para rastrear e monitorar se estão realmente indo nessa direção.
Tem
 uma frase que você repete com frequência: “Vamos aos fatos”. E isso me 
conecta a você. Mas os seus fatos vêm dos dados e análises históricas. 
Já os meus fatos vêm da rua. Entre tantas deficiências e ineficiências 
que a pandemia veio iluminar no Brasil, chama a atenção a maneira como 
lidamos mal com dados e tecnologia no governo. Temos uma população 
conectada, com mais de 200 milhões de chips de celular ativos, mas um 
governo ainda muito distante do que poderia ser um governo digital. Como
 você avalia a ideia de transformar os governos em plataformas digitais e
 como isso poderia impactar na redução de desigualdades?
É
 muito importante disponibilizar informações aos cidadãos. Isso é 
relativamente fácil agora, ou pelo menos deveria ser relativamente 
fácil, considerando as novas tecnologias disponíveis. Mas ainda há uma 
grande distância entre as pessoas e os governos. Acho que temos que 
criar uma linguagem que traduza princípios e aspirações gerais em ações 
concretas e notáveis. Quando você diz “nós vamos trazer 90% das crianças
 para o ensino fundamental e ter um professor para cada 25 ou 30 
alunos”, você divulga um objetivo simples, quantitativo, que pode ser 
monitorado, que pode ser acessado. As grandes transformações históricas 
precisam conseguir se expressar em termos quantitativos.
No
 livro você mostra como a França diminuiu desigualdades muito mais 
depois da guerra do que depois da Revolução Francesa. O Brasil também 
nunca reduziu tanto sua desigualdade como nesta pandemia, com o 
necessário auxílio emergencial. Mas é um voo de galinha, porque não está
 ancorado em nenhum planejamento e porque falta excelência de execução. 
Muito se tem discutido sobre a origem de recursos para programas de 
proteção social e investimentos de infraestrutura. Qual sua opinião 
sobre a necessidade de rigor fiscal e sobre a emissão de dívidas de 
curto prazo e moeda por países como o Brasil?
Numa
 crise como esta, é muito tentador dizer “ok nós vamos fazer o Estado 
bancar tudo, aumentar a dívida pública, etc.”. Vejo, na Europa e nos 
EUA, pessoas de lados diferentes do espectro político defendendo que o 
governo se endivide e pague tudo, que os bancos centrais são fortes e 
que não é preciso se preocupar com os impostos neste momento. Eu entendo
 essa lógica, mas ela é perigosa. Não é algo que você pode fazer em 
qualquer lugar do mundo. Os mercados financeiros mundiais podem 
perseguir e machucar mais intensamente os países que não operam em dólar
 ou em euro. Mas, mesmo na zona do dólar ou do euro, em algum momento 
você terá que quitar as dívidas, pagar pelos gastos públicos. É 
necessário indicar agora em qual direção nós iremos.
Precisamos
 de um sistema tributário mais igualitário, com mais justiça fiscal, 
aumentando os impostos dos bilionários, dos milionários. O imposto de 
renda é importante, mas os impostos sobre as fortunas são mais 
importantes ainda. Porque o que acontece no topo da pirâmide social é 
que algumas pessoas concentram sua riqueza em empresas, sem 
caracterizá-la como renda – e sem serem devidamente taxadas, portanto. 
Nós vivemos numa época em que, em qualquer país, os bilionários 
aumentaram as suas fortunas, os seus lucros e os seus bens muito mais 
rapidamente do que a média das pessoas. Então é natural que em algum 
momento você peça mais a essas pessoas que cresceram mais o seu 
patrimônio. Tudo bem existirem pessoas ricas e pessoas pobres, contanto 
que a diferença não seja muito grande e que todos consigam crescer na 
mesma velocidade. Se você olha para dez anos atrás, as maiores fortunas 
eram de US$ 30 bilhões, US$ 40 bilhões; hoje, elas são de US$ 100 
bilhões, US$ 150 bilhões, quase US$ 200 bilhões, como é o caso do Jeff 
Bezos (Amazon). E a economia norteamericana não cresceu nessa 
velocidade. É importante deixar claro desde já que uma fatia maior vai 
ser cobrada desses grupos – em parte, para pagar pela nova 
infraestrutura e pelos novos investimentos e, em parte, para pagar as 
dívidas que aumentaram por causa da pandemia.
Estes
 1% mais ricos sempre foram acusados de passividade em relação às 
questões da desigualdade. E neste momento da história ou nos 
comprometemos de fato em sermos parte da solução ou vamos colapsar. Como
 você entende que deveria ser este comprometimento? Qual o papel do 
Estado nessa relação?
O que você vê na 
história é que isso não acontece voluntariamente. Você precisa da força 
do Estado. Eu acho a filantropia ótima. Mas ela deve ser algo além dos 
impostos, e não substituí-los. No final das contas, eu defendo que haja 
um imposto compulsório sobre as fortunas. Foi interessante observar as 
discussões que aconteceram durante as primárias do Partido Democrático 
dos
EUA. Tanto a Elizabeth Warren quanto o
 Bernie Sanders, que não venceram as primárias, conseguiram um apoio 
imenso dos eleitores com menos de 50 anos ao fazer duas propostas: um 
imposto anual sobre o patrimônio total dos bilionários e uma taxa de 
saída para aqueles que quiserem mudar de cidadania para fugir da 
tributação. Se você quiser ficar nos EUA, você vai continuar pagando os 
impostos de lá, mas, se você quiser sair dos EUA, desistir da 
nacionalidade norte-americana para conseguir outra, uma nacionalidade 
suíça, por exemplo, você tem antes que deixar de 40% a 60% da sua 
fortuna nos EUA. Acho que necessitamos de algo assim. Nossa ideia de 
fluxo de capital livre precisa mudar. Nós praticamente sacralizamos os 
direitos de alguém construir fortunas e poder apertar um botão e tirar 
seus bens do país. Isso não é sustentável, porque, no final, vai ser a 
classe média, a classe média-baixa que vai pagar todos os impostos do 
país. E isso, em algum momento, vai fragilizar o nosso contrato social.
Nessas
 conversas em que tento iluminar o debate pós-pandemia, eu ouvi do 
geneticista Peter Diamandis a seguinte frase: “Se você quer ser um 
bilionário, cause um impacto positivo na vida de um bilhão de pessoas”. O
 que você acha dela?
Bom, há muitos 
bilionários e oligarcas no mundo que eu não vejo fazendo nada. É 
importante observar que todos os bens, todas as coisas boas que 
acontecem no mundo são naturalmente coletivas. O Bill Gates não inventou
 o computador sozinho – existem milhares, milhões de engenheiros, de 
cientistas da computação, de técnicos, de pesquisadores, e nós não 
colocamos o valor deles no final de cada produto. Sem esse estoque de 
conhecimento comum, que foi acumulado pela humanidade por centenas de 
anos, nada seria possível. Então nós temos que ser mais conscientes de 
que a riqueza não é um passe de mágica de um único indivíduo. As coisas 
não funcionam assim. Nos EUA, houve uma grande mudança nos anos 1980. O 
governo decidiu ir atrás de mais inovação, e o presidente Ronald Reagan,
 em mensagem clara, disse que talvez aumentasse a desigualdade, mas que 
seriam tantas as inovações, tantas as descobertas úteis realizadas por 
bilionários que a renda média iria aumentar. Mas o que nós vimos 30 anos
 depois foi que o crescimento do PIB per capita nos EUA caiu à metade: 
ele foi de 1,1% por ano no período de 1990 a 2020, e, no período de 1950
 a 1990, ou no período de 1910 a 1950, ele era de 2,2%.
No
 seus livros você discute a riqueza e os sistemas sociais ao longo da 
história. Também faz uma extensa discussão sobre a evolução da 
escravidão e da servidão. O Brasil tem uma terrível herança 
escravocrata, que, mesmo mais de 130 anos depois da abolição, ainda não 
foi devidamente endereçada. Nossas políticas reparadoras foram muito 
tímidas e ineficientes. Hoje somos uma sociedade que não gera 
oportunidades de maneira equilibrada entre brancos e negros. Nossa 
violência urbana mata de maneira desproporcional muito mais negros do 
que brancos. Durante a pandemia, o debate sobre racismo e antirracismo 
ganhou enorme relevância pelo mundo. No Brasil, não foi diferente. 
Pessoalmente entendo que temos que reconhecer nossos privilégios como 
homens brancos e ricos, sair da inação e mergulhar na defesa de 
narrativas antirracistas. Como você enxerga essa questão?
Essas
 questões foram negligenciadas por tempo demais, não só no Brasil, mas 
nos EUA, e também em países como a França e a Inglaterra, onde a 
história colonial, a experiência com a escravidão e a experiência após a
 escravidão tiveram um papel imenso no processo de industrialização. Na 
França, o Estado obrigou as antigas colônias de escravos, como o Haiti, a
 pagarem, de 1825 até 1950, uma compensação pela perda de propriedades 
dos antigos donos de escravos. Esse pagamento, aliás, gerou grande 
dívida e acabou afetando o PIB desses países. Então não houve uma 
reparação da escravidão; houve, sim, reparação para o outro lado, para 
os donos dos escravos. Recentemente, um dos maiores defensores brancos 
da abolição da escravidão, Victor Schoelcher, teve suas estátuas 
derrubadas na Martinica e em Guadalupe, e os franceses ficaram chocados,
 perguntando “por que estão com raiva do Schoelcher?”. Na verdade, o 
Schoelcher, a exemplo de muitos intelectuais liberais da época, como o 
Alexis de Tocqueville, defendiam a indenização dos donos de escravos. 
Para eles, não deveria haver nenhuma compensação para os escravos, e sim
 para os donos.
Mas nós não podemos falar 
só em reparação. Precisamos também de uma política antidiscriminatória 
combinada a uma política de renda universal. Em Capital e Ideologia, eu 
falo de um sistema de herança para todos, onde todos receberiam um valor
 mínimo ao completar 25 anos. Ela não substituiria as outras partes do 
nosso sistema social, como as escolas públicas, a rede pública de saúde 
ou a renda básica. Seria algo a mais. E universal, não importa quais os 
seus antepassados, nós não vamos fazer um estudo de genealogia.
Em
 alguns casos específicos, porém, isso se uniria a um programa de 
reparação e a uma política antidiscriminatória devido a injustiças 
passadas. A França deveria hoje devolver os impostos que foram pagos 
pelo Haiti, por exemplo. Nos EUA, em 1998 o Congresso aprovou uma 
indenização aos nipo-americanos que foram prisioneiros durante a Segunda
 Guerra Mundial. No caso dos nipoamericanos, não era muito, eram US$ 
400, para pessoas que ainda estavam vivas em 1998 e passaram um, dois ou
 três anos num como prisioneiros durante a Segunda Guerra. Não houve 
nada assim para as pessoas que sofreram com a escravidão. E, de certa 
maneira, é tarde demais. Mas, para os afrodescendentes que sofreram com a
 segregação racial até os anos 1960, ainda há tempo.
No
 Brasil, as questões agrárias poderiam servir como uma ferramenta de 
reparação por injustiças do passado. No caso da Guiana Francesa, da 
Martinica, de Guadalupe, foram feitas propostas concretas nesse sentido.
 Eu não sei tanto sobre o Brasil, mas existem áreas nas Guianas, na 
Martinica, e em Guadalupe que ainda pertencem aos descendentes dos 
antigos donos de escravos, enquanto que os descendentes dos próprios 
escravos não têm terra nenhuma. É possível formar uma comissão para 
redistribuir parte dessas terras. Hoje existe o mesmo problema na África
 do Sul. Depois do fim do apartheid, não houve reforma agrária. Está na 
hora de pensar sobre isso.
• A reforma 
agrária no Brasil lidou mais com o lado social e pouco com a viabilidade
 econômica das terras distribuídas. Por isso acho que não funcionou tão 
bem. Ouço com atenção a ideia, mas eu não consigo enxergar de onde virá o
 dinheiro para esta herança mínima. Como pagar uma quantia para todas as
 pessoas de 25 anos?
Hoje, a herança média
 em um país como a França é de ¤ 200 mil. Mais da metade da população, 
porém, não recebe nada. As pessoas do topo recebem milhões. Algumas 
recebem bilhões. O sistema que estou propondo não é muito radical. Eu 
defendo que todas as pessoas com 25 anos recebam ¤ 120 mil – e que os 
herdeiros de milionários recebam ¤ 600 mil, bem mais do que os ¤ 120 mil
 dos demais. Então ainda estamos muito longe da igualdade de 
oportunidades. As pessoas gostam de falar sobre a igualdade de 
oportunidades, mas, quando se trata de aplicar o princípio, 
principalmente quando se trata do imposto sobre a herança, elas rechaçam
 o conceito. Existem muitas pessoas que, em termos de patrimônio, estão 
na metade de baixo da população e, mesmo assim, têm ideias boas de 
negócios: ¤ 120 mil, em vez de zero, farão muita diferença para elas.
Eu
 e você somos parte da geração 1971. Segundo o filósofo austríaco Rudolf
 Steiner, a vida humana se desenvolve ao longo de setênios. Estamos 
fechando o nosso sétimo setênio, que, segundo a teoria de Steiner, é o 
setênio do altruísmo, de uma fase expansiva, do questionamento diante do
 medo do envelhecimento, um período sedento por novidades. Qual deveria 
ser o legado da nossa geração?
Eu fiz 18 
anos no fim do comunismo na Europa. O início do meu trabalho, das minhas
 pesquisas, foi observando esse fracasso imenso do comunismo soviético e
 do Leste Europeu. E, na época, se alguém me dissesse que, 30 anos 
depois, eu seria a favor do socialismo participativo, eu ia achar isso 
uma piada. Na época, eu era bastante anticomunista – eu ainda sou, na 
verdade – e muito mais a favor do livre mercado. A tarefa da nossa 
geração, pelo menos para mim, na Europa, é perceber que nós fomos muito 
longe na direção do hipercapitalismo e tentar construir alternativas 
econômicas, alguma esperança em outro sistema econômico. O nosso sistema
 capitalista atual está danificando o planeta, criando muita 
desigualdade. Depois do desastre comunista do século 20, nós precisamos 
pensar em uma nova forma de socialismo, muito mais descentralizada, mais
 participativa, democrática, federal. Precisamos continuar pensando. As 
pessoas da geração da Guerra Fria ou eram tentadas a serem comunistas ou
 eram muito anticomunistas – e elas ainda estão vivendo na Guerra Fria e
 não querem saber de alternativas econômicas. Penso que nós temos que 
reabrir a discussão. E penso que o crescimento das políticas 
identitárias é uma consequência de termos encerrado as discussões 
econômicas. Então, se você continuar dizendo para as pessoas que há 
apenas uma forma de política econômica e que os governos não podem fazer
 nada além de controlarem suas fronteiras e suas identidades, não é de 
se surpreender que, 20 anos depois, as pessoas só falem do controle de 
fronteiras e de proteção de identidade. Nós precisamos retomar a 
discussão econômica. Precisamos refletir sobre os desastres do século 20
 e partir para um novo século.