domingo, 13 de setembro de 2020

‘BRASIL É DESIGUAL DEMAIS PARA SE DESENVOLVER’

 

 

‘BRASIL É DESIGUAL DEMAIS PARA SE DESENVOLVER’

Economista francês defende choque de transparência para diminuir ‘distância entre pessoas e governos’ e também impostos sobre fortunas e heranças no pós-pandemia


Economista francês defende imposto sobre fortunas e heranças no pós-covid.

Andrade tem 33 anos e é filho de Dona Marina e Seu Antonio. Ela sempre cuidou da casa e dos 7 filhos; ele trazia do mar o sustento da família. A vila de pescadores no litoral do Ceará foi batizada como Preá. Por lá as crianças sempre correram soltas pelas ruas de areia, nas idas e vindas entre a única escola pública, a casa simples e a praia.

Aos 18 anos, Andrade enxergava a pesca como única opção de futuro, nada além disso. Decidiu tentar a sorte na cidade grande. Partiu para São Paulo e lá ficou por quase 10 anos. Começou como cumim em um restaurante chique até se tornar sommelier.

Mas os vinhos e a boa mesa ficaram no passado. Ele resolveu voltar para o Ceará, assim como uma centena de jovens locais, que, como Andrade, no passado haviam sido confrontados com o dilema “pescar ou migrar” e tinham optado pela segunda opção.

O bom filho à casa retorna virou uma realidade no Preá por um simples motivo: oportunidades. Conhecida pelas fortes correntes de vento em boa parte do ano, a região se transformou na última década em meca mundial para a prática do kitesurf – esporte aquático em que uma prancha se desloca ao sabor dos ventos puxada por uma pipa gigante, que atrai cada vez mais adeptos.

Hoje, 80% da economia da região gira em função do kitesurf. E o desenvolvimento do turismo local tem sido robusto e sustentável, uma boa referência para o Brasil.

Compartilho esta história porque ela se conecta à nossa conversa desta edição. Andrade nasceu em uma das regiões mais pobres e desiguais do país: o nordeste brasileiro. Ao mesmo tempo, uma das regiões com o maior potencial de desenvolvimento do planeta: sim, o nordeste brasileiro. O Preá e a vida deste jovem de 33 anos são a materialização do que pode e deve ser o nosso futuro: uma nação que gera oportunidades e direito de escolha aos seus cidadãos, independentemente do CEP de nascimento.

Para conversar sobre desigualdades e geração de oportunidades, convidei para dialogar um dos mais respeitados pensadores e autores da atualidade. Seu livro O Capital no Século XXI vendeu no mês de lançamento, em 2013, mais do que qualquer outro livro da Harvard University Press em 101 anos. Nenhuma obra de economia teve impacto tão explosivo. Foi seguramente o livro de economia mais debatido dos últimos anos.

A revista The Economist declarou que a obra poderia “revolucionar o modo como as pessoas enxergam a história econômica dos últimos dois séculos”. A também britânica “Prospect” acrescentou o autor à sua lista de pensadores mais influentes do mundo ocidental.

Economista francês, ele é reconhecido mundialmente pelas pesquisas sobre desigualdade e redistribuição da renda. Partindo de uma fórmula simples, constatou que, sem mudanças políticas, não há nem haverá como escapar do aumento da desigualdade, visto que a renda sobre o capital avança em ritmo mais acelerado do que o crescimento econômico.

Thomas Piketty se junta hoje à galeria de notáveis que se dispuseram a compartilhar, aqui no Estadão, suas visões de vanguarda sobre o mundo contemporâneo e sobre o pós-pandemia. As ideias e teses do francês não são uma unanimidade. Mas, sem dúvida, são provocativas. Bem embasadas, servem de combustível para necessárias reflexões.

• O que me traz a você é minha curiosidade. Tenho buscado aprender e discutir como fazer um Brasil menos desigual, gerador de oportunidades para todos. A enorme maioria da população brasileira vive uma perversa pobreza hereditária, sem mobilidade social. Na sua opinião, o que fez do Brasil um dos países mais desiguais do planeta?

Uma das conclusões-chave que trago no livro Capital e Ideologia é que, no longo prazo, o que traz prosperidade a um país é a diminuição da desigualdade, um sistema educacional mais inclusivo e uma redução da concentração de renda. O Brasil não passou pelas grandes transformações no século 20 que em alguns lugares diminuíram a desigualdade e, com isso, aumentaram a prosperidade da economia. O Brasil não sofreu tanto com os horrores das duas Guerras Mundiais, que, nos EUA e no Leste Europeu, por exemplo, contribuíram bastante para a alteração do cenário político, para a competição pelo poder entre grupos sociais. A depressão econômica antes e depois das Guerras ajudou a desacreditar a antiga elite e a reduzir a legitimidade do sistema de mercado, desse sistema capitalista do laissez-faire, o que forçou um rebalanceamento das forças. No Brasil, isso não aconteceu. O legado da escravidão, esse legado específico da origem do Brasil, não permitiu o desenvolvimento de novas forças. A história dos partidos políticos do país, a importância dos militares, é uma situação inicial de muitas desigualdades.

Está completamente errada, porém, a visão de que uma cultura de igualdade ou de desigualdade é uma característica permanente de um país. Observando diferentes casos, você vê que países que hoje parecem muito igualitários, como a Suécia, e países ainda mais desiguais do que o Brasil se transformaram completamente depois de determinadas mudanças políticas, mudanças até mesmo pacíficas. Na história política do Brasil, você sabe melhor do que eu, o voto universal é relativamente recente. Só começou realmente no final dos anos 1980. Todas as Constituições antes disso excluíam parcelas da população.

Faço televisão há mais de 20 anos. Falo com 30 milhões de brasileiros toda semana. Sou um bom ouvinte e gosto de contar histórias. A desigualdade brasileira ninguém me relatou: eu vi. E esse desconforto me fez sair da zona de conforto e começar a procurar soluções para nossos problemas. Como você explicaria para uma pessoa comum, alguém do povo, que a vida dos filhos dela e dos netos dela pode melhorar?

É difícil estimar prazos e expectativas consistentes quanto ao que pode ser realizado em 5 ou 10 anos. Há um discurso conservador, especialmente no Brasil, em que as elites dizem que a redistribuição de renda só poderá ser feita no futuro, quando o país for mais rico, e que, se feita agora, será um desastre até mesmo para os pobres. O que eu quero dizer para os brasileiros é que, pelas evidências internacionais e pelas evidências históricas, o Brasil é hoje desigual demais para conseguir se desenvolver. Não estou sugerindo zerar a desigualdade e taxar as pessoas ricas em 100%. Mas, no Brasil, hoje você paga altos impostos indiretos – de 20%, 30%, na sua conta de eletricidade, por exemplo. E, se você herda uma herança imensa, você paga somente 1% ou 2% de impostos. Em muitos países, inclusive alguns dos mais ricos do mundo, as pessoas pagam menos impostos na conta de eletricidade e mais impostos sobre altas quantias de dinheiro.

• Sempre que discutimos políticas de proteção social, de diminuição das desigualdades e geração de oportunidades, temos que ficar atentos para que não se torne uma equação de soma zero. Qual o melhor caminho para o Brasil considerando a estrutura do Estado brasileiro: cara, pesada, ineficiente, corrupta e com pouquíssima capacidade de investimento?

Vocês precisam de mais transparência sobre quem está pagando o quê e sobre quem está recebendo o quê. No Brasil, é muito difícil de saber, em nível de bens econômicos, quem está pagando tais e tais impostos e quem está acessando tais e tais serviços. Para gerar confiança no Estado brasileiro e para aumentar a capacidade do governo de investir, essa transparência é fundamental. Supostamente nós vivemos a era da bigdata, mas, na prática, a nossa bigdata é falsa, não passa de um grande monopólio privado das grandes empresas de tecnologia. Estamos, na verdade, na era da grande opacidade no que se refere à administração pública. Da capacidade do governo de rastrear a desigualdade, de rastrear dados de saúde pública etc, tudo é muito mais restrito do que deveria ser. Acho importante municiar as pessoas, dar as informações, dar a possibilidade de as pessoas acompanharem e avaliarem o que o governo está fazendo, acompanhando os progressos e fracassos. Se vo

‘O Brasil é desigual demais para se desenvolver’ Thomas Piketty

cê tem uma certa distribuição da carga tributária no Brasil em 2020 e 2021, é importante fixar uma meta para 2022, 2023, 2024, 2025, e divulgar isso publicamente para mostrar o que foi feito o que não foi. Por enquanto existe um grande discurso sobre justiça social, mas não os meios para rastrear e monitorar se estão realmente indo nessa direção.

Tem uma frase que você repete com frequência: “Vamos aos fatos”. E isso me conecta a você. Mas os seus fatos vêm dos dados e análises históricas. Já os meus fatos vêm da rua. Entre tantas deficiências e ineficiências que a pandemia veio iluminar no Brasil, chama a atenção a maneira como lidamos mal com dados e tecnologia no governo. Temos uma população conectada, com mais de 200 milhões de chips de celular ativos, mas um governo ainda muito distante do que poderia ser um governo digital. Como você avalia a ideia de transformar os governos em plataformas digitais e como isso poderia impactar na redução de desigualdades?

É muito importante disponibilizar informações aos cidadãos. Isso é relativamente fácil agora, ou pelo menos deveria ser relativamente fácil, considerando as novas tecnologias disponíveis. Mas ainda há uma grande distância entre as pessoas e os governos. Acho que temos que criar uma linguagem que traduza princípios e aspirações gerais em ações concretas e notáveis. Quando você diz “nós vamos trazer 90% das crianças para o ensino fundamental e ter um professor para cada 25 ou 30 alunos”, você divulga um objetivo simples, quantitativo, que pode ser monitorado, que pode ser acessado. As grandes transformações históricas precisam conseguir se expressar em termos quantitativos.

No livro você mostra como a França diminuiu desigualdades muito mais depois da guerra do que depois da Revolução Francesa. O Brasil também nunca reduziu tanto sua desigualdade como nesta pandemia, com o necessário auxílio emergencial. Mas é um voo de galinha, porque não está ancorado em nenhum planejamento e porque falta excelência de execução. Muito se tem discutido sobre a origem de recursos para programas de proteção social e investimentos de infraestrutura. Qual sua opinião sobre a necessidade de rigor fiscal e sobre a emissão de dívidas de curto prazo e moeda por países como o Brasil?

Numa crise como esta, é muito tentador dizer “ok nós vamos fazer o Estado bancar tudo, aumentar a dívida pública, etc.”. Vejo, na Europa e nos EUA, pessoas de lados diferentes do espectro político defendendo que o governo se endivide e pague tudo, que os bancos centrais são fortes e que não é preciso se preocupar com os impostos neste momento. Eu entendo essa lógica, mas ela é perigosa. Não é algo que você pode fazer em qualquer lugar do mundo. Os mercados financeiros mundiais podem perseguir e machucar mais intensamente os países que não operam em dólar ou em euro. Mas, mesmo na zona do dólar ou do euro, em algum momento você terá que quitar as dívidas, pagar pelos gastos públicos. É necessário indicar agora em qual direção nós iremos.

Precisamos de um sistema tributário mais igualitário, com mais justiça fiscal, aumentando os impostos dos bilionários, dos milionários. O imposto de renda é importante, mas os impostos sobre as fortunas são mais importantes ainda. Porque o que acontece no topo da pirâmide social é que algumas pessoas concentram sua riqueza em empresas, sem caracterizá-la como renda – e sem serem devidamente taxadas, portanto. Nós vivemos numa época em que, em qualquer país, os bilionários aumentaram as suas fortunas, os seus lucros e os seus bens muito mais rapidamente do que a média das pessoas. Então é natural que em algum momento você peça mais a essas pessoas que cresceram mais o seu patrimônio. Tudo bem existirem pessoas ricas e pessoas pobres, contanto que a diferença não seja muito grande e que todos consigam crescer na mesma velocidade. Se você olha para dez anos atrás, as maiores fortunas eram de US$ 30 bilhões, US$ 40 bilhões; hoje, elas são de US$ 100 bilhões, US$ 150 bilhões, quase US$ 200 bilhões, como é o caso do Jeff Bezos (Amazon). E a economia norteamericana não cresceu nessa velocidade. É importante deixar claro desde já que uma fatia maior vai ser cobrada desses grupos – em parte, para pagar pela nova infraestrutura e pelos novos investimentos e, em parte, para pagar as dívidas que aumentaram por causa da pandemia.

Estes 1% mais ricos sempre foram acusados de passividade em relação às questões da desigualdade. E neste momento da história ou nos comprometemos de fato em sermos parte da solução ou vamos colapsar. Como você entende que deveria ser este comprometimento? Qual o papel do Estado nessa relação?

O que você vê na história é que isso não acontece voluntariamente. Você precisa da força do Estado. Eu acho a filantropia ótima. Mas ela deve ser algo além dos impostos, e não substituí-los. No final das contas, eu defendo que haja um imposto compulsório sobre as fortunas. Foi interessante observar as discussões que aconteceram durante as primárias do Partido Democrático dos

EUA. Tanto a Elizabeth Warren quanto o Bernie Sanders, que não venceram as primárias, conseguiram um apoio imenso dos eleitores com menos de 50 anos ao fazer duas propostas: um imposto anual sobre o patrimônio total dos bilionários e uma taxa de saída para aqueles que quiserem mudar de cidadania para fugir da tributação. Se você quiser ficar nos EUA, você vai continuar pagando os impostos de lá, mas, se você quiser sair dos EUA, desistir da nacionalidade norte-americana para conseguir outra, uma nacionalidade suíça, por exemplo, você tem antes que deixar de 40% a 60% da sua fortuna nos EUA. Acho que necessitamos de algo assim. Nossa ideia de fluxo de capital livre precisa mudar. Nós praticamente sacralizamos os direitos de alguém construir fortunas e poder apertar um botão e tirar seus bens do país. Isso não é sustentável, porque, no final, vai ser a classe média, a classe média-baixa que vai pagar todos os impostos do país. E isso, em algum momento, vai fragilizar o nosso contrato social.

Nessas conversas em que tento iluminar o debate pós-pandemia, eu ouvi do geneticista Peter Diamandis a seguinte frase: “Se você quer ser um bilionário, cause um impacto positivo na vida de um bilhão de pessoas”. O que você acha dela?

Bom, há muitos bilionários e oligarcas no mundo que eu não vejo fazendo nada. É importante observar que todos os bens, todas as coisas boas que acontecem no mundo são naturalmente coletivas. O Bill Gates não inventou o computador sozinho – existem milhares, milhões de engenheiros, de cientistas da computação, de técnicos, de pesquisadores, e nós não colocamos o valor deles no final de cada produto. Sem esse estoque de conhecimento comum, que foi acumulado pela humanidade por centenas de anos, nada seria possível. Então nós temos que ser mais conscientes de que a riqueza não é um passe de mágica de um único indivíduo. As coisas não funcionam assim. Nos EUA, houve uma grande mudança nos anos 1980. O governo decidiu ir atrás de mais inovação, e o presidente Ronald Reagan, em mensagem clara, disse que talvez aumentasse a desigualdade, mas que seriam tantas as inovações, tantas as descobertas úteis realizadas por bilionários que a renda média iria aumentar. Mas o que nós vimos 30 anos depois foi que o crescimento do PIB per capita nos EUA caiu à metade: ele foi de 1,1% por ano no período de 1990 a 2020, e, no período de 1950 a 1990, ou no período de 1910 a 1950, ele era de 2,2%.

No seus livros você discute a riqueza e os sistemas sociais ao longo da história. Também faz uma extensa discussão sobre a evolução da escravidão e da servidão. O Brasil tem uma terrível herança escravocrata, que, mesmo mais de 130 anos depois da abolição, ainda não foi devidamente endereçada. Nossas políticas reparadoras foram muito tímidas e ineficientes. Hoje somos uma sociedade que não gera oportunidades de maneira equilibrada entre brancos e negros. Nossa violência urbana mata de maneira desproporcional muito mais negros do que brancos. Durante a pandemia, o debate sobre racismo e antirracismo ganhou enorme relevância pelo mundo. No Brasil, não foi diferente. Pessoalmente entendo que temos que reconhecer nossos privilégios como homens brancos e ricos, sair da inação e mergulhar na defesa de narrativas antirracistas. Como você enxerga essa questão?

Essas questões foram negligenciadas por tempo demais, não só no Brasil, mas nos EUA, e também em países como a França e a Inglaterra, onde a história colonial, a experiência com a escravidão e a experiência após a escravidão tiveram um papel imenso no processo de industrialização. Na França, o Estado obrigou as antigas colônias de escravos, como o Haiti, a pagarem, de 1825 até 1950, uma compensação pela perda de propriedades dos antigos donos de escravos. Esse pagamento, aliás, gerou grande dívida e acabou afetando o PIB desses países. Então não houve uma reparação da escravidão; houve, sim, reparação para o outro lado, para os donos dos escravos. Recentemente, um dos maiores defensores brancos da abolição da escravidão, Victor Schoelcher, teve suas estátuas derrubadas na Martinica e em Guadalupe, e os franceses ficaram chocados, perguntando “por que estão com raiva do Schoelcher?”. Na verdade, o Schoelcher, a exemplo de muitos intelectuais liberais da época, como o Alexis de Tocqueville, defendiam a indenização dos donos de escravos. Para eles, não deveria haver nenhuma compensação para os escravos, e sim para os donos.

Mas nós não podemos falar só em reparação. Precisamos também de uma política antidiscriminatória combinada a uma política de renda universal. Em Capital e Ideologia, eu falo de um sistema de herança para todos, onde todos receberiam um valor mínimo ao completar 25 anos. Ela não substituiria as outras partes do nosso sistema social, como as escolas públicas, a rede pública de saúde ou a renda básica. Seria algo a mais. E universal, não importa quais os seus antepassados, nós não vamos fazer um estudo de genealogia.

Em alguns casos específicos, porém, isso se uniria a um programa de reparação e a uma política antidiscriminatória devido a injustiças passadas. A França deveria hoje devolver os impostos que foram pagos pelo Haiti, por exemplo. Nos EUA, em 1998 o Congresso aprovou uma indenização aos nipo-americanos que foram prisioneiros durante a Segunda Guerra Mundial. No caso dos nipoamericanos, não era muito, eram US$ 400, para pessoas que ainda estavam vivas em 1998 e passaram um, dois ou três anos num como prisioneiros durante a Segunda Guerra. Não houve nada assim para as pessoas que sofreram com a escravidão. E, de certa maneira, é tarde demais. Mas, para os afrodescendentes que sofreram com a segregação racial até os anos 1960, ainda há tempo.

No Brasil, as questões agrárias poderiam servir como uma ferramenta de reparação por injustiças do passado. No caso da Guiana Francesa, da Martinica, de Guadalupe, foram feitas propostas concretas nesse sentido. Eu não sei tanto sobre o Brasil, mas existem áreas nas Guianas, na Martinica, e em Guadalupe que ainda pertencem aos descendentes dos antigos donos de escravos, enquanto que os descendentes dos próprios escravos não têm terra nenhuma. É possível formar uma comissão para redistribuir parte dessas terras. Hoje existe o mesmo problema na África do Sul. Depois do fim do apartheid, não houve reforma agrária. Está na hora de pensar sobre isso.

• A reforma agrária no Brasil lidou mais com o lado social e pouco com a viabilidade econômica das terras distribuídas. Por isso acho que não funcionou tão bem. Ouço com atenção a ideia, mas eu não consigo enxergar de onde virá o dinheiro para esta herança mínima. Como pagar uma quantia para todas as pessoas de 25 anos?

Hoje, a herança média em um país como a França é de ¤ 200 mil. Mais da metade da população, porém, não recebe nada. As pessoas do topo recebem milhões. Algumas recebem bilhões. O sistema que estou propondo não é muito radical. Eu defendo que todas as pessoas com 25 anos recebam ¤ 120 mil – e que os herdeiros de milionários recebam ¤ 600 mil, bem mais do que os ¤ 120 mil dos demais. Então ainda estamos muito longe da igualdade de oportunidades. As pessoas gostam de falar sobre a igualdade de oportunidades, mas, quando se trata de aplicar o princípio, principalmente quando se trata do imposto sobre a herança, elas rechaçam o conceito. Existem muitas pessoas que, em termos de patrimônio, estão na metade de baixo da população e, mesmo assim, têm ideias boas de negócios: ¤ 120 mil, em vez de zero, farão muita diferença para elas.

Eu e você somos parte da geração 1971. Segundo o filósofo austríaco Rudolf Steiner, a vida humana se desenvolve ao longo de setênios. Estamos fechando o nosso sétimo setênio, que, segundo a teoria de Steiner, é o setênio do altruísmo, de uma fase expansiva, do questionamento diante do medo do envelhecimento, um período sedento por novidades. Qual deveria ser o legado da nossa geração?

Eu fiz 18 anos no fim do comunismo na Europa. O início do meu trabalho, das minhas pesquisas, foi observando esse fracasso imenso do comunismo soviético e do Leste Europeu. E, na época, se alguém me dissesse que, 30 anos depois, eu seria a favor do socialismo participativo, eu ia achar isso uma piada. Na época, eu era bastante anticomunista – eu ainda sou, na verdade – e muito mais a favor do livre mercado. A tarefa da nossa geração, pelo menos para mim, na Europa, é perceber que nós fomos muito longe na direção do hipercapitalismo e tentar construir alternativas econômicas, alguma esperança em outro sistema econômico. O nosso sistema capitalista atual está danificando o planeta, criando muita desigualdade. Depois do desastre comunista do século 20, nós precisamos pensar em uma nova forma de socialismo, muito mais descentralizada, mais participativa, democrática, federal. Precisamos continuar pensando. As pessoas da geração da Guerra Fria ou eram tentadas a serem comunistas ou eram muito anticomunistas – e elas ainda estão vivendo na Guerra Fria e não querem saber de alternativas econômicas. Penso que nós temos que reabrir a discussão. E penso que o crescimento das políticas identitárias é uma consequência de termos encerrado as discussões econômicas. Então, se você continuar dizendo para as pessoas que há apenas uma forma de política econômica e que os governos não podem fazer nada além de controlarem suas fronteiras e suas identidades, não é de se surpreender que, 20 anos depois, as pessoas só falem do controle de fronteiras e de proteção de identidade. Nós precisamos retomar a discussão econômica. Precisamos refletir sobre os desastres do século 20 e partir para um novo século.


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