domingo, 20 de junho de 2021

Bolsonarismo vicia

 

Milhões sorvem a torpeza bolsonarista como quem degusta um cálice de absinto

Eugênio Bucci

Em abril do ano passado, em artigo publicado na revista piauí (edição 163), Uma esfinge na presidência, o cientista político Miguel Lago propôs uma chave intrigante para interpretar o bolsonarismo. Segundo o autor, quanto maior e mais conflagrado for o confronto nas redes sociais, mais sustentação terá o presidente da República – e quanto mais baixo descer a reputação do governante, mais alto soará o alarido daqueles que o sustentam. Miguel Lago previu que a bandeira do impeachment não iria minar as bases de apoio de Bolsonaro; ao contrário, ajudaria a solidificá-las. Previu e acertou. A força política de Jair Bolsonaro tornou-se tanto mais determinada, embora minoritária, quanto pior ficou sua imagem perante a opinião pública minimamente esclarecida.

A explicação para essa modalidade pútrida de “quanto pior, melhor” vem da dinâmica peculiar das mídias sociais. As compactações das multidões virtuais seguem leis que pouco ou nada têm que ver com a política dita convencional. Enquanto na cartilha dos politólogos as alianças políticas resultam da negociação de interesses e se formalizam em programas propositivos, nos algoritmos das plataformas sociais tudo acontece de ponta-cabeça: o que rende audiência, empolgação e adesão não é o que pacifica, mas o que choca, ofende, escarnece – daí o sucesso das agressões, das manifestações de ódio e da infâmia. Se nos sindicatos ou nos partidos políticos o que reúne as pessoas são os acordos mais ou menos racionais, na internet o que as congrega é o êxtase de insultar e ultrajar um inimigo real ou imaginário, num fragor que não tem parte com a razão.

Quanto mais desaforado for, quanto mais animalesco e mais boçal, mais amado será o líder ciberpopulista – para usar aqui o conceito que Andrés Bruzzone apresenta no livro Ciberpopulismo: democracia e política no mundo digital, lançado no mês passado pela Editora Contexto. Quanto mais asqueroso e mais contrário aos bons modos, mais festejado. Essa é a receita seguida pelo presidente da República. As falanges virtuais o aclamam não apesar de sua falta de boas maneiras, mas justamente por causa delas. Quanto mais desclassificado ele for, mais idolatrado será.

Se levarmos essa perspectiva analítica um pouco mais longe, além daquilo que sustentam Miguel Lago ou Andrés Bruzzone, veremos que há um nexo nervoso, neuronal, entre a vileza dos discursos da extrema direita antidemocrática e o prazer das massas. Milhões de anônimos, encolhidos em suas misérias afetivas, sorvem a torpeza bolsonarista como quem degusta um cálice de absinto. Vão se entorpecendo de fluxos de gozo. Esses infelizes, tomados pela paixão da raiva e da intolerância, encontram nas barbaridades proferidas e alardeadas pelo fascismo de silício uma satisfação libidinal equivalente à que vai buscar nos sites pornográficos ou nos jogos online, que sabidamente exploram a dependência psíquica do freguês.

O caráter viciante das atrações da internet não é uma novidade. Em artigo para a edição 96 da revista Estudos Avançados (IEA-USP), em 2019, os professores Ricardo Abramovay e Rafael Zanata documentaram fartamente como as empresas de tecnologia administram suas funcionalidades para “gerar adição”. No ano passado, o filme O Dilema das Redes trouxe depoimentos de altos executivos da indústria confirmando a estratégia de causar dependência. A propósito, um deles lembra que o termo “usuário” só é utilizado para designar o consumidor de drogas e o frequentador das redes sociais, como a dizer que os traficantes e os gigantes da internet lucram com o mesmo negócio: o vício. E foi nesse negócio que o trumpismo e o bolsonarismo se deram muito bem, obrigado.

Quando confessa que veio para destruir, Bolsonaro diz a verdade. Ele é o herói da devastação, o ídolo dos que culpam o “sistema” por seus infortúnios pessoais. As almas viciadas na bestialogia querem varrer do mapa o saber científico, a imprensa crítica e as artes, pois essas instituições fazem doer, de forma humilhante, a ferida da ignorância bruta. Os adictos do bolsonarismo querem banir os jornalistas com a mesma sanguinolência com que os homofóbicos assassinam gays e os machistas espancam o feminismo, com a mesma tara mortífera com que os racistas proclamam que o Brasil é uma “democracia” racial. O ódio contra o tal “sistema” – que no fundo é o que nos resta de civilização – leva o sujeito a exterminar a própria liberdade para se entregar à tirania. Só aí deixará de padecer. A visão da beleza é insuportável para ele.

As massas dependentes no ciberbolsonarismo são descendentes diretas dos espectadores do circo romano, em que gladiadores e feras se retalham reciprocamente. O frêmito que experimentam é o mesmo. Apontando o polegar para o chão, plateia do horror, de ontem e de hoje, se imagina admitida na arena dos assuntos de Estado. A política vai se reduzindo à celebração gozosa dos linchamentos físicos e morais. Ser cidadão é esquartejar o outro. Por prazer. Esse vício vai nos matar a todos de overdose.

*Jornalista, é professor da ECA-USP

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,bolsonarismo-vicia,70003749335

domingo, 13 de junho de 2021

A brasilianização do mundo

 

A brasilianização do mundo

A periferia é onde o futuro se revela.
                   atribuída a JG Ballard por Mark Fisher

"EUnão poderia acontecer aqui. ” Supõe-se que as pandemias e outras ameaças à segurança da saúde sejam problemas no hemisfério sul. Mas as deficiências que os estados ocidentais enfrentaram para desenvolver e executar planos coerentes, coordenar agências estaduais, comunicar-se com o público ou mesmo apenas produzir e armazenar equipamento médico e farmacêutico suficiente (para não falar da escandalosa distribuição de vacinas da UE), destacaram a falha do estado no coração do capitalismo global. Capacidades estatais esvaziadas, confusão política, clientelismo, pensamento conspiratório e déficits de confiança expuseram a legitimidade decadente que agora faz com que Estados ricos e poderosos pareçam repúblicas de bananas.

Ao pesquisar as classificações de prontidão para pandemia antes do ataque da Covid-19 , como o Índice de Segurança Global ou o Índice de Preparação para Epidemias, constatamos que os Estados Unidos e o Reino Unido eram supostamente os dois países mais bem preparados, com os países da UE também bem classificados . Esses eram estados que achavam que nada tinham a aprender com as experiências anteriores de países como Brasil, China, Libéria, Serra Leoa ou República Democrática do Congo. E embora os países que administraram bem a pandemia sejam poucos e distantes entre si, o fracasso do Estado no coração do capitalismo ocidental acaba com qualquer noção complacente sobre o Fim da História e a primazia de um modelo sobre o outro. Todos nós aparentemente vivemos em “países menos desenvolvidos” agora.

A realidade é que o século XX - com suas máquinas de estado confiantes, forjadas na guerra, aplicando-se para determinar resultados sociais - acabou. O mesmo ocorre com suas outras características: conflito político organizado entre esquerda e direita, ou entre a social-democracia e a democracia cristã; competição entre forças universalistas e seculares levando à modernização cultural; a integração das massas trabalhadoras à nação por meio de empregos formais e razoavelmente pagos; e crescimento rápido e compartilhado.

Agora nos encontramos no Fim do Fim da História . Ao contrário dos anos 1990 e 2000, hoje muitos estão bem cientes de que as coisas não estão bem. Estamos sobrecarregados, como escreveu o falecido teórico cultural Mark Fisher, pelo “lento cancelamento do futuro”, de um futuro prometido mas não entregue, da involução no lugar da progressão.

A involução do Ocidente encontra sua imagem espelhada no país originário do futuro, a nação condenada para sempre a ser o país do futuro, aquele que nunca chega ao seu destino: o Brasil. A brasilianização do mundo é o nosso encontro com um futuro negado, e no qual essa frustração se tornou constitutiva de nossa realidade social. Embora o fechamento de horizontes históricos muitas vezes tenha sido uma preocupação esquerdista, na verdade marxista, a sensação de que as coisas não funcionam como deveriam agora é amplamente compartilhada por todo o espectro político.

Bem vindo ao Brasil. Aqui, as únicas pessoas satisfeitas com sua situação são as elites financeiras e os políticos venais. Todos reclamam, mas todos dão de ombros. Esta lenta degradação da sociedade não é tanto um trem desgovernado, mas mais uma montanha-russa agitada, ocasionalmente oferecendo a promessa de ascensão, mas nunca se libertando dos trilhos. Sempre voltamos ao ponto de partida, abalados e desorientados, assombrados pelo que poderia ter sido.

Na maioria das vezes, “Brasil” tem sido sinônimo de desigualdade, com favelas empoleiradas em encostas com vista para arranha-céus milionários. Em seu romance de 1991, Geração X , Douglas Coupland referiu-se à brasilianização como “o abismo crescente entre ricos e pobres e o consequente desaparecimento das classes médias”. 1 Mais tarde naquela década, a brasilidade foi implantada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck para significar o ciclo de entrada e saída do emprego formal e informal, com o trabalho se tornando flexível, casual, precário e descentralizado. 2 Em outro lugar, o processo de se tornar brasileiro refere-se à sua geografia urbana, com o crescimento das favelas ou favelas, a gentrificação dos centros das cidades com a pobreza empurrada para as periferias. Para outros, o Brasil conota um novo impasse étnico entre uma classe trabalhadora racialmente mista e uma elite branca .

terça-feira, 8 de junho de 2021

E SE ELE FOR LOUCO?

 

E SE ELE FOR LOUCO?

Suspeitar da sanidade mental de Bolsonaro não permite encurtar caminho para afastá-lo; saída legal é o impeachment

RAFAEL MAFEI
 Revista Piaui - 31mar2020_09h16

Há não muito tempo, um país sul-americano elegeu um presidente que disputou a eleição com uma bandeira de oposição ao establishment político e de proximidade com o povo. Embora não fosse favorito, para surpresa de muitos, acabou vencendo. Na campanha, proferia discursos virulentos contra “a elite” e adotava um estilo de animador de auditório. Seus comícios eram espetáculos de simbiose com a plateia. Por seus desafios aos protocolos da comunicação política, ganhou de seus apoiadores o apelido de “Louco”.

Uma vez eleito, “Louco” manteve, no exercício da Presidência, o mesmo comportamento excêntrico da campanha: seguiu fazendo shows com astros da música que o apoiavam, cantando e dançando ao lado de animadoras de palco em trajes menores. Envolveu-se com cartolagem futebolística e prometeu 1 milhão de dólares a Maradona caso ele  jogasse uma partida por seu time. Tornou-se também um campeão da grosseria política: atacava autoridades e ex-presidentes com linguagem chula; na sua relação com o Legislativo, optava sempre pelo confronto.

“Louco” nunca fora apreciado pelas elites econômicas, que o tomavam por demagogo e populista. Seu comportamento hostil à liturgia presidencial rapidamente lhe rendeu também a antipatia da imprensa. Ao propor um plano econômico de viés neoliberal, alienou as centrais sindicais e boa parte de sua camada de apoio nas classes mais baixas. Sua grosseria descompensada afastou progressivamente a classe média urbana. Em meio a denúncias de corrupção contra seu governo, o embaixador dos Estados Unidos no país veio a público reclamar da escorchante cobrança de propinas por funcionários de alfândega. 

Quando as ruas se encheram de manifestantes, o Congresso entendeu o recado: Abdalá “El Loco” Bucaram foi afastado da presidência do Equador após uma sessão relâmpago do Congresso, com fundamento em sua inaptidão mental para exercer o cargo. Foi presidente por breves seis meses, de agosto de 1996 a fevereiro de 1997.

As reações do presidente Jair Bolsonaro à pandemia de Covid-19, especialmente a partir de seu pronunciamento na noite de 24 de março, contrariando evidências, desafiando cientistas e debochando da realidade, fizeram subir as apostas de que algo muito sério não vai bem em seu juízo. A hipótese da loucura já havia sido cogitada no primeiro semestre de 2019, quando Bolsonaro coroou o errático início de seu governo com ofensas ignóbeis à memória do pai do presidente nacional da OAB, vítima da ditadura militar. “O caso de Bolsonaro não é de impeachment, é de interdição”, disse, à época, Miguel Reale Júnior. A saída para o Brasil de Bolsonaro seria análoga àquela adotada pelo Equador de Bucaram.

A ideia ensaia voltar com força agora. Em face do maior desafio da saúde pública de nossa história, Bolsonaro escolheu embrulhar desinformação epidemiológica (“gripezinha”, “histeria”, “meu passado de atleta”, “pula em esgoto e não acontece nada”, “vidro blindado”) nos trajes de gala dos pronunciamentos presidenciais. Optou por partir para o confronto aberto com profissionais da respeitável tradição sanitarista brasileira, com secretários de Saúde estaduais e até com seu ministro da Saúde. A hashtag #InterdicaoJa disputa espaço entre os trending topics do Twitter.

A hipótese da loucura é embalada por uma aposta jurídica: seus proponentes acreditam que ela permitiria o afastamento de Bolsonaro por uma via mais expedita que um processo de impeachment, seja porque não ficaria condicionada à comprovação de crimes de responsabilidade, seja porque dispensaria a Câmara e o Senado de se ocuparem, neste momento de emergência nacional, com os desgastantes processos de autorização e julgamento da denúncia contra o presidente. O cálculo é estratégico: se não há clima para um processo de impeachment, tentemos outra via, que não depende das mesmas condicionantes políticas, econômicas e sociais.

A aposta não tem fundamento. O afastamento de um presidente por incapacidade mental, como via alternativa ao impeachment, não é um atalho jurídico disponível para nós. O Brasil não fez a opção de tratar a incapacidade mental superveniente do presidente como hipótese autônoma para sua remoção, e o impeachment serve também para dar conta desses casos.

Alguns países têm mecanismos jurídicos específicos para salvaguarda de suas instituições na hipótese de o presidente tornar-se mentalmente incapacitado para o exercício do cargo. Além do já citado exemplo do Equador, a constituição do Paquistão prevê afastamento do presidente por “incapacidade física ou mental, ou impeachment por grave ofensa à Constituição”; e previsão semelhante existe nos EUA, desde que o Congresso aprovou a 25a emenda constitucional, em 1967.

Na falta de um procedimento voltado à superveniência de incapacidade física ou mental do presidente, a situação é muitas vezes enfrentada por acordos, remendos e muitos segredos.

No Brasil, o mais conhecido exemplo foi o de Artur da Costa e Silva, segundo presidente da linhagem da ditadura de 1964-1985. O general sofreu uma sequência de acidentes vasculares cerebrais no final de agosto de 1969. Já vinha manifestando sintomas de confusão na fala desde dias antes, quando não conseguiu se expressar em uma solenidade política em Taquari, Rio Grande do Sul, sua cidade natal. Colocou-se a culpa em uma gripe.

Os episódios de perda de fala se renovaram nos dias seguintes. O médico do serviço de saúde da Presidência da República examinou Costa e Silva e concluiu tratar-se de estafa. Já o próprio presidente autodiagnosticou seu caso como baixa glicêmica, e chupou balas de mel para ver se melhorava, conforme relata Elio Gaspari. Não melhorou.

O quadro era, na verdade, de isquemia: falta de irrigação nas veias cerebrais. Em pouco tempo, Costa e Silva ficou sem fala, perdeu a mobilidade do lado direito do corpo e acabou com a face repuxada, escondida do público por um grande cachecol usado entre o calor do Rio de Janeiro e de Brasília.

Para não dar posse ao vice-presidente Pedro Aleixo, um civil que havia se oposto ao AI-5 na reunião em que foi decidido, em dezembro de 1968, os militares decidiram deixar Costa e Silva dentro do Palácio do Planalto, embora estivesse absolutamente incapacitado. O raciocínio: enquanto ele lá estivesse, e conquanto permanecesse vivo, seria possível sustentar que a Presidência não estava vaga, e que portanto não seria o caso de passar a faixa para Aleixo. A Constituição de 1967, com idêntica redação à atual nesta matéria, dizia que o vice substituiria o presidente “em caso de impedimento” e o sucederia “no de vaga”. 

De forma improvisada e sem qualquer previsão legal, o exercício do Poder Executivo foi transmitido a uma junta composta pelos ministros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Costa e Silva morreu três meses depois, e Pedro Aleixo jamais assumiu o cargo: Emílio Garrastazu Médici foi escolhido presidente após consulta aos generais das Forças Armadas e tomou posse em 30 de outubro de 1969.

Nos Estados Unidos, há abundantes histórias de segredos e arranjos furtivos em razão de incapacidade presidencial antes da aprovação da 25ª emenda. Woodrow Wilson, durante seu segundo mandato (1918-1921), sofreu um derrame que o comprometeu física e mentalmente. Por um ano e meio, sua esposa Edith tornou-se uma espécie de guardiã fiduciária da Presidência: além de agir para ocultar da opinião pública a real condição de saúde do presidente, participava das reuniões ministeriais e decidia quais assuntos eram importantes a ponto de merecer a reduzida atenção de que seu marido ainda dispunha. Segundo a historiadora Judith Weaver, Edith foi decisiva em episódios importantes da história política dos EUA: sua animosidade em relação ao secretário de Estado Robert Lansing levou Wilson a demiti-lo, e sua recusa em permitir que o presidente se aconselhasse com outros políticos foi decisiva para a derrota da proposta de adesão dos EUA à Liga das Nações, ao final da Primeira Guerra Mundial.

A história de Woodrow Wilson não é única: James Madison, durante a Guerra de 1812 entre Estados Unidos e Grã-Bretanha, passou quatro semanas incapacitado por uma febre delirante; Grover Cleveland, em 1893, submeteu-se a uma cirurgia para retirada de um tumor no iate particular de um amigo (nem mesmo seu vice-presidente sabia do plano mirabolante); e Dwight Eisenhower, após sofrer um infarto em 1955 e um derrame anos depois, combinou privadamente com seu vice, Richard Nixon, uma transição suave em caso de eventual incapacidade duradoura.

Esses fatos foram reavivados quando John F. Kennedy foi baleado em Dallas, em 1963. Até que se confirmasse a notícia de sua morte, houve dúvidas sobre como o Executivo seria dirigido caso ele permanecesse vivo, mas acabasse física ou mentalmente incapacitado. Seria Jackie uma nova Edith? Haveria alguma espécie de acordo de cavalheiros com seu vice, Lyndon Johnson? A morte de Kennedy não impediu que a hipótese contrafactual – sua sobrevivência em condições de incapacidade física ou mental – animasse o Congresso a agir. Assim nasceu a 25ª emenda, aprovada em 1967.

Em relação à incapacidade presidencial, a 25ª emenda da Constituição dos Estados Unidos tem duas partes – uma fácil, outra difícil.

A parte fácil, contida na seção terceira, cuida dos casos em que o presidente requer seu afastamento do cargo por reconhecer que está ou ficará incapacitado: ele pede, o vice-presidente assume e ele volta quando estiver bem. A parte difícil está em sua seção quarta, e diz respeito à situação em que o presidente incapaz se recusa a reconhecer sua condição. Nesses casos, o vice-presidente e a maioria simples da totalidade dos ministros de Estado podem submeter ao Congresso uma declaração de que o chefe do Executivo está incapacitado para o exercício de suas funções. A questão então é decidida pelo Congresso, após uma investigação livre: se dois terços de ambas as casas assim decidirem, o presidente é afastado do cargo.

Comentadores desta emenda apontam que ela é mais complicada do que a hipótese do impeachment, não apenas porque requer ação conjunta do vice-presidente e da maioria dos ministros, mas também porque ela leva não à remoção definitiva, mas ao afastamento enquanto dure a incapacidade: em tese, o presidente pode pedir sua reavaliação periodicamente, buscando provar que está apto a voltar ao cargo.

Há consenso também de que a incapacidade que autoriza o afastamento presidencial deve ser genuína e impeditiva de sua atuação funcional: ela deve ser de tal ordem que o presidente reste impossibilitado de usar suas faculdades mentais usuais para a tomada de decisões. “A questão é saber se ele é capaz de desempenhar suas funções constitucionais”, afirma Cass Sunstein em Impeachment: a Citizen’s Guide. Consequentemente, “se o presidente é capaz de fazer seu trabalho, a Constituição não autoriza a transferência do poder apenas porque ele não o desempenha bem”, escrevem Tribe e Matz em To End a Presidency. Incompetência, omissão, despreparo intelectual, inexperiência, má escolha de prioridades, estupidez incorrigível, mitomania, pendor autoritário, falta de caráter: nada disso é sinal de incapacidade em sentido próprio, embora sejam ingredientes seguros para uma presidência desastrosa e indigna, e possam levar a um impeachment.

A declaração de incapacidade contra a vontade do presidente é, portanto, um procedimento dificílimo de se sustentar, não só porque seu gatilho é politicamente complexo, mas principalmente porque a duração de seus efeitos é efêmera. Não houve quem cogitasse seriamente essa estratégia contra Donald Trump, por fundadas que sejam as suspeitas de que há parafusos soltos em sua cabeça.

Nos Estados Unidos, o impeachment é cabível contra qualquer autoridade civil, e não apenas contra alguns poucos ocupantes de cargos políticos elevados, como no Brasil. Por lá, já houve outras autoridades que, diante de alegada incapacidade mental, encontraram o destino do impeachment. Nesse tema, os EUA são referência importante para nós, já que nosso desenho do impeachment, em grande parte inalterado desde a Constituição de 1891, foi explicitamente inspirado no modelo norte-americano. O registro é importante pois sugere que, na falta de previsão específica, o remédio para a remoção de uma autoridade mentalmente incapacitada há de ser mesmo o impeachment. 

John Pickering, juiz de corte superior no estado de New Hampshire, sofreu impeachment no início do século XIX por incapacidade mental para o exercício da magistratura. Pickering, ao que tudo indica, desenvolveu alcoolismo severo durante sua carreira de juiz: passou a comparecer bêbado às sessões de seu tribunal, usava palavrões contra seus colegas e perambulava delirante pelas ruas da cidade. Deixou de ir ao julgamento de seu caso em Washington, D.C. porque adquiriu um medo paralisante de cruzar rios. Sua conduta foi considerada imprópria, danosa à imagem e à integridade de seu tribunal. O precedente sugere que nada há de incompatível entre o instituto de impeachment e seu uso para defender a dignidade de uma instituição política da incapacidade mental de seu ocupante.

Ao Brasil: na justificativa do Projeto de Lei do Senado (PLS) 22, que viria a se tornar a atual Lei do Impeachment (Lei 1.079, de 1950), o deputado Raul Pilla, um dos proponentes do projeto, lembrou oportunamente que o termo “crimes de responsabilidade” é enganoso, e só é guardado entre nós por uma tradição que remonta à legislação do Império. A conduta que enseja afastamento do cargo não precisa ser propriamente criminosa, na estrita acepção jurídica (penal) do termo. Sua maior característica não é a reprovabilidade, mas sim a danosidade às instituições da República, a começar pela própria Presidência. Consequentemente, o que importa é constatar a “inaptidão para exercer a função pública”, discursou Pilla. Em termos de enquadramento legal, o caminho seria considerar o presidente indigno para o exercício do cargo (Lei 1.079, art. 9, n. 7), e afastá-lo por esse motivo ao final de um processo de impeachment.

Assim, não faz diferença se a inaptidão para o exercício da Presidência, e o trauma institucional que ela acarreta, decorrem de malícia, de traços de personalidade, de maquiavelismo político ou de incapacidade mental – ou de tudo isso somado. No sistema brasileiro, o caminho para reconhecê-la será sempre o impeachment. Neste ponto, há uma curiosa semelhança com o sistema dos EUA, embora lá os ritos não se confundam: lá, como aqui, a decisão final sobre a incapacidade do presidente, embora possa considerar opiniões e relatos médicos, é uma decisão política, porque tomada pela Câmara de Deputados e pelo Senado Federal.

A hipótese da loucura parece sedutora porque sugere a possibilidade de remoção presidencial por um caminho mais breve do que o impeachment. Mas, diante da falta de previsão específica no direito brasileiro, ela seria um improviso descabido.

No já citado exemplo de Bucaram, no Equador, o Legislativo aproveitou-se de que não se tratava de impeachment propriamente, mas de remoção por incapacidade, para dispensar-se de atingir a maioria qualificada de dois terços. Bucaram foi apeado da Presidência por votação da maioria simples do Congresso, num rito que durou apenas poucas horas. Embora o desfecho final do episódio não tenha sido o de um golpe de Estado clássico, a impressão que sobrou foi a de um remendo acochambrado. Não há qualquer razão institucionalmente respeitável para tratar a remoção de um presidente da República por insanidade mental como algo de seriedade menor, inclusive em comparação à declaração de incapacidade de um cidadão comum, um rito cercado de cuidados com sua dignidade.

Jair Bolsonaro não adquiriu a morbidez de espírito que o caracteriza por força de uma decomposição moral progressiva ao longo de sua Presidência. Sua degenerescência política sempre foi ostentada com orgulho: o pendor pela mentira, pelo conflito figadal, pela paranoia desinformada, pela incivilidade e pela descompostura constituem seu figurino de homem público desde sempre. Foi marca de sua campanha, infelizmente referendada pelo eleitorado em 2018, que ele apenas levou consigo para o Planalto. Quem acredita, seriamente, que seu comportamento agora decorre de condição mental superveniente

Não faltam motivos para a denúncia, o processo e a condenação de Jair Bolsonaro por crimes de responsabilidade. Seu comportamento na crise da pandemia de Covid-19 sem dúvida aumenta seu rol de ofensas ao decoro e à dignidade presidenciais, às demais instituições e a direitos fundamentais. Mas o caminho para reagir continua sendo o do impeachment. É esse o esforço que a Constituição nos impõe. Não existem atalhos.

O país desabando

 

O país desabando

por Antonio Prata

Se fosse ‘Star Wars’, vocês estariam do lado de Darth Vader

Um edifício irregular, num bairro irregular, numa cidade irregular, num estado irregular, num país irregular, desabou. Quando o delinquente Ricardo Salles fala em “passar a boiada”, em desregulamentar, ele está simplesmente aplicando à Amazônia os métodos da milícia em Rio das Pedras. A gente sabe como termina: em escombros, fogo e morte.

Rio das Pedras, o berço das milícias cariocas, do Escritório do Crime, dos assassinos da Marielle, é também curral eleitoral da família Bolsonaro. Local de grande influência do Fabrício Queiroz, capataz do presidente e babá de seus filhos. O MP-RJ tem gravação do Queiroz falando com a mulher sobre ajudar os milicianos do bairro. E isso deve ser só a ponta do iceberg.

Deus do céu, precisa de CPI?! Fabrício Queiroz até outro dia estava escondido na casa do advogado do senador Flávio Bolsonaro. Flávio que, segundo matéria do The Intercept, financiou com dinheiro da “rachadinha”, coletado por Queiroz, construções irregulares de milicianos em Rio das Pedras. Tipo essa que desabou. O dinheiro era dado ao matador Adriano da Nóbrega. Um homem que assassinava por dinheiro, mas também por prazer: se pudesse escolher, preferia a faca. O artesão do homicídio foi homenageado por Flávio Bolsonaro com a maior honraria legislativa do Rio de Janeiro, a Medalha Tiradentes. Bolsonaro disse, em março deste ano, que foi ele quem mandou Flávio fazer a homenagem.

O prédio desabado em Rio das Pedras e a anistia das Forças Armadas a Pazuello são a mesma coisa: a destruição das estruturas. O desprezo à lei. Como é a mesma coisa o silêncio cúmplice do Conselho Federal de Medicina e dos CRMs diante de profissionais criminosos que recomendaram e seguem recomendando cloroquina. É a mesma coisa o apoio tácito ou explícito dos industriais, dos empresários, do mercado financeiro, do Facebook e do Twitter, que analisam a morte de 500 mil brasileiros de HP na mão. Talvez digam que já estava “precificado”. Se fosse “Star Wars”, vocês estariam do lado de Darth Vader. Como vocês dormem?

Está errado dizer que Bolsonaro é um genocida: o genocida quer acabar exclusivamente com um grupo étnico, religioso ou cultural. Bolsonaro é mais generoso em sua morbidez. Ele passará por cima de quem for preciso para instalar seu projeto miliciano, para perpetuar-se em seu Gabinete do Crime e do Ódio, com a ajuda dos “consiglieri” de pós-doc na parede, óculos de tartaruga na fuça e sangue nas mãos. Guedes e Salles, o contador e o meirinho da máfia. Perdão pela comparação, Corleone, pois este bando não conhece a “omertà”.

Todos os que não estão se insurgindo agora diante do desmoronamento do país terão que explicar aos filhos e netos, um dia, quando esta mortandade for ensinada nas escolas: por que se calaram? Por que não fizeram nada quando os judeus embarcavam em trens de carga e o chicote cantava no pelourinho? Covardes.

Eu sei o que direi aos meus filhos. Olivia e Daniel, deixo aqui registrado: eu e muitos à minha volta estávamos lutando pela lei, pela verdade, pela justiça. Estávamos escrevendo, nos manifestando, reportando, unindo forças, arrecadando dinheiro para a resistência e assim continuaremos até o fim, o nosso ou o da tragédia, para que vocês e todos os outros brasileiros, brancos e pretos, homens e mulheres, possam um dia viver num país decente. Pode soar piegas, mas eu não quero ser original, eu quero sobreviver.

*Publicado na Folha de S.Paulo