quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Juiz dos EUA propõe projeto-piloto com magistrados conduzindo o plea bargaining



Juiz dos EUA propõe projeto-piloto com magistrados conduzindo o plea bargaining

Por     - site CONJUR
Nos EUA, quando o juiz federal Jed Rakoff fala, a comunidade jurídica escuta. Nos últimos anos, ele vem criticando muito o sistema de plea bargaining do país. Mas ele sabe que é impossível acabar com esse sistema que retira dos réus todos os direitos constitucionais, transfere aos promotores todos os poderes, incluindo o de coagir a defesa, e manda inocentes para a cadeia. Por isso, ele defende a reforma do sistema.
Para o juiz, a reforma do sistema de plea bargaining virá com seus próprios defeitos. Por isso, ele propõe a criação de um projeto-piloto de um sistema em que um juiz auxiliar conduza as negociações do plea bargaining, em vez do promotor. Em um artigo para o The New York Review of Books, intitulado “Por que inocentes admitem culpa”, ele diz que qualquer programa que acabe com a vergonha de mandar inocentes para a cadeia vale a pena.
Rakoff sugere usar um juiz auxiliar, chamado de magistrado nos EUA, para conduzir as negociações com o promotor e advogado de defesa — e não o juiz que irá presidir o julgamento — por uma razão muito simples: caso não se chegue a um acordo, a objetividade do juiz pode estar comprometida. O juiz auxiliar sequer deve relatar as negociações ao juiz.
A reunião do juiz auxiliar com o promotor e o advogado de defesa deve ser feita em um ambiente reservado e todos os participantes deverão ter os fatos e as provas colhidas até o momento, para servirem de base para as negociações. Em algumas circunstâncias, o juiz auxiliar poderá entrevistar testemunhas e examinar outras provas, reservadamente, para não comprometer as estratégias das partes.
O juiz auxiliar poderia até mesmo entrevistar o réu. Mas isso teria de ser feito de uma forma que não negasse ao réu seu direito constitucional de não se incriminar. O promotor não poderia fazer qualquer oferta de plea bargaining, enquanto o juiz auxiliar estivesse estudando o caso.
Quando o juiz auxiliar estiver pronto, ele pode se reunir separadamente com o promotor e advogado e fazer recomendações, tais como trancar o processo (se as provas forem muito fracas), proceder com o julgamento (se não houver uma oferta razoável de plea bargaining) ou celebrar um acordo na linha de seu entendimento do caso.
Nenhuma das partes seria obrigada a acatar a recomendação do juiz auxiliar. Mas a recomendação viria de “um terceiro neutro”, que é uma autoridade judicial, perante a qual os promotores e advogados de defesa teriam que comparecer em muitos outros casos. Procedimentos semelhantes acontecem na área civil com mediadores de conflitos.
Contrato de adesão
Os direitos dos réus a que o juiz Rakoff se refere e que sempre são negados a ele quando há uma negociação de plea bargaining são os previstos na Sexta Emenda da Constituição dos EUA: no julgamento, o réu terá assistência de um advogado, que irá confrontar e fazer a inquirição cruzada de seus acusadores e apresentar provas a seu favor. Ele poderá ser condenado por um júri imparcial, se os jurados chegarem ao veredicto unânime de que é culpado e assim declará-lo publicamente.
No sistema de plea bargaining, o réu abre mão não só desses direitos, mas também o de recorrer a um tribunal de segundo grau.
A Suprema Corte sugeriu, em uma decisão, que o plea bargaining é um arranjo de contrato justo e voluntário entre duas partes relativamente iguais. Para o juiz Rakoff, isso é um “mito total”. O plea bargaining é muito mais um “contrato de adesão’, no qual uma parte pode, efetivamente, forçar sua vontade à outra parte.
Parte do problema deriva do fato de que os promotores, como os defensores públicos, lidam com sobrecarga de processos. Assim, eles são orientados a jogar duro com a defesa, para obter um acordo e evitar o julgamento. Outra parte deriva da legislação que estabeleceu sentenças mínimas mandatórias e por duras diretrizes de sentenças para certos tipos de crime.
Por exemplo, o promotor pode informar o advogado que pode acusar o réu de posse ou tráfico de uma certa quantidade de drogas e formação de quadrilha, que significa de 10 a 20 anos de prisão. Mas, se ele aceitar o acordo, pode acusá-lo de venda de apenas uma pequena quantidade de droga, que implica sentença mínima de menos de 2 anos.
Na negociação inicial, o promotor sabe muito, até porque dispõe de relatórios policiais, e o advogado de defesa sabe pouco, diz o juiz. Se ele não topar o acordo na primeira oferta, o promotor poderá piorá-la em uma segunda negociação. Em muitos casos, o advogado e seu cliente discutem a situação e o réu, pensando no risco de pegar mais de 20 anos de prisão e preocupado com sua família, decide “garantir” a pena menor.
Segundo Jed Jakoff, dos 2,2 milhões de prisioneiros nos EUA, mais de 2 milhões aceitaram um acordo de plea bargaining, sendo culpados ou inocentes. Rakoff citou dados do Registro Nacional de Libertações, que confirmam a condenação de inocentes à prisão. De 1.428 presos inocentes libertados nos últimos anos, 151 (mais de 10%) haviam feito admissão falsa de culpa em acordos de plea bargaining.
O Projeto Inocência confirmou essa percepção: nos últimos 300 casos de libertação de presos inocentes, graças ao trabalho da entidade, mais de 30 (ou seja, mais de 10%) se referiam a réus que fizeram acordo de plea bargaining, mesmo sendo inocentes, para não pegar penas tão altas como prisão perpétua.
Segundo o juiz, as maiores vítimas de um mau acordo de plea bargaining são jovens, pessoas pobres com menor capacidade intelectual e pessoas avessas a risco, por causa das circunstâncias de suas vidas. Outra grande vítima é a defesa.
Vídeo
O juiz Jed Rakoff demonstrou, em um vídeo publicado no YouTube, sua aversão ao atual sistema de plea bargain nos EUA.
Leia a tradução:
“Em reação às crescentes taxas de criminalidade, então, o Congresso e os estados impuseram todos os tipos de penalidades muito severas: sentenças obrigatórias de cinco, dez, 15 e 20 anos, em alguns casos ainda mais.
E por essa e outras razões, quando essas leis entraram em vigor, havia uma tremenda penalidade para quem fosse a julgamento. Você pegaria uma sentença muito maior se fosse a julgamento do que se você se confessasse culpado, particularmente se você pudesse negociar uma pena menor pela confissão ou alguma coisa desse tipo.
As estatísticas são muito impressionantes. A partir de meados dos anos 80 e até o presente, em vez de 15% a 20% de todos os casos criminais indo a julgamento, esse percentual caiu rapidamente para cerca de 3% — e esse é o patamar onde estamos hoje.
E uma porção disso são pessoas realmente, factualmente, inocentes, que decidem confessar a culpa porque não podem correr o risco de, se forem a julgamento e forem condenados, pegar 10, 15, 20 anos ou mais, com efeitos devastadores para eles e suas famílias.
Assim elas preferem, apesar de serem inocentes, fazer um acordo de admissão de culpa, que resulte em uma pena de prisão de um ou dois ou mesmo cinco anos, em vez de assumir o risco.
Isso não é uma especulação. É um fato comprovado. E o Projeto Inocência (Innocence Project) tem fornecido parte da prova de que mais de 300 pessoas, que o Projeto Inocência provou que eram factualmente inocentes e cujas condenações, frequentemente de crimes mais sérios, se comprovaram erradas e isso levou a suas libertações.
Dessas pessoas, cerca de 10% concordaram em realmente se declarar culpadas. Confessaram crimes como homicídio, confessaram crimes como estupro, apesar de não terem cometido esses crimes. E mais tarde foi provado, definitivamente, que elas não cometeram esses crimes.
Mas não poderiam assumir o risco de pegar pena de morte ou de prisão perpétua — ou, de alguma forma, sentenças muito rigorosas, caso fossem a julgamento e perdessem.
Assim, isso é um problema sério. Qual o tamanho do problema em toda a nação ninguém sabe com segurança. É realmente uma avaliação dos réus sobre suas chances.
E o fato de que eles são inocentes não significa que serão absolvidos, mesmo que seriam. A combinação dessas pressões psicológicas os leva a confessar a culpa.
A lei coloca mais poderes nas mãos dos promotores. O promotor recebe ordens de seus superiores: “Acuse o réu dos crimes mais graves que você puder, que você tiver qualquer chance de provar, porque isso irá encorajar confissões de culpa e nós temos muito mais casos do que podemos administrar, de forma que precisamos de confissões de culpa para nos livrarmos deles”.
Em muitos tribunais estaduais, onde a pauta é sobrecarregada, o defensor público pode se reunir com seu cliente por cinco minutos, antes de formalizar um acordo com o promotor.
E os promotores podem fazer 40 acordos em uma manhã. E assim o juiz terá de aprovar acordos com 40 réus e essas serão alocuções muito atenuadas.
Assim, depois de ver isso em minha corte, não de maneiras tão extremas mas preocupantes, comecei a examinar a matéria.
Também devo dizer que, como qualquer juiz nesse país, fui impactado pelo Projeto Inocência, porque o que o Projeto Inocência tem mostrado, além de qualquer outra coisa, é que nosso sistema jurídico é muito menos perfeito do que pensávamos que era.”

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Funerária Moro



Funerária Moro

por Vladimir Safatle

Em meio a escândalos de corrupção, servilismo diplomático e descrições de brasileiros como canibais prestes a roubar os primeiros talheres de hotel que estiverem à mão, o desgoverno atual mostra ao menos um eixo claramente organizado de política social.
No primeiro mês, tivemos a flexibilização da posse de armas e a descoberta da proximidade incestuosa entre o clã Bolsonaro e grupos de milícias, além do pacote de medidas do sr. Moro para a segurança pública.
Esses três fatos têm mais relações do que se imagina. Eles são figuras de uma verdadeira necropolítica característica do Estado brasileiro que agora aparece de forma a mais descomplexada possível.
Pois se trata de fornecer as condições institucionais otimizadas para a definição da arte de governar como decisão de extermínio e eliminação. Nota-se agora o eixo efetivo da adesão do núcleo duro dos eleitores de Bolsonaro a seu governo.
Rapidamente caiu o pano do combate à corrupção sem que abalasse a fé de seus seguidores.
Da mesma forma, o discurso de um governo de técnicos competentes não resiste a uma passada de olhos nos currículos do primeiro e segundo escalão de sua gestão.
Um conjunto de pessoas completamente despreparadas, sem nenhuma qualificação técnica efetiva para gerir questões complexas de um país continental. Mas a adesão do núcleo duro não se move por uma razão elementar. O verdadeiro desejo desses grupos está ancorado em uma visão bélica da vida social. O que realmente os move é a possibilidade de aplicar uma política de guerra civil contra as classes que eles veem como ameaçadoras.
Assim, eles podem se indignar contra o crime, mas não passa sequer pela imaginação compreender a existência de milícias como o pior de todos os crimes, pois isso explicita a função do aparato estatal como máquina de medo, chantagem e extermínio.
Afinal, seus avôs aplaudiam a existência de esquadrões da morte e tortura. A promessa de que o Estado irá agora “abater” cidadãs e cidadãos envolvidos com o crime, como se estivéssemos a falar de gado, indica não um deslize de vocabulário, mas uma visão precisa do que significa para alguns “governo”.
Nesse sentido, o pacote do sr. Moro só se explica se o referido for, na verdade, um agente funerário disfarçado de ministro da Justiça. Pois ele equivale a uma condenação de morte, à institucionalização final do extermínio dessas classes que são, desde sempre, objeto da eliminação policial contínua.
Estamos a falar de um país onde a polícia mata, em média, 14 pessoas por dia, segundo dados do 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Só no Rio de Janeiro, 23% dos assassinatos ocorridos no ano passado foram cometidos pela polícia.
Por outro lado, o Brasil hoje tem a terceira maior população de pessoas encarceradas do mundo, além de ser o único entre os seis países com mais presos que mantém um ritmo ininterrupto de aumento desde o começo dos anos 1980.
Mas o sr. Moro acredita que esse número é ainda pequeno, mesmo que não falte estudos demonstrando o caráter contraprodutivo de tal política, com o fortalecimento de organizações criminosas que atuam nos presídios.
O caráter falimentar dessa política não é algo difícil de enxergar. Mas nada disso fará diferença, pois não se trata efetivamente de combater as causas da insegurança social em um país no qual um presidente pode dizer a uma deputada que não a estupra porque ela não merece e vê seu processo ser suspenso.
A questão gira simplesmente em torno do uso do Estado como instrumento aberto de extermínio e amedrontamento de classes sociais vulneráveis. Em casos mais patológicos, trata-se simplesmente de retirar o sentimento de vingança social de qualquer amarra legal.
Assim, o aspecto circense de um presidente cujo gesto fundamental são os dedos simulando uma arma apontada se junta ao semblante duro de um ministro da Justiça que, depois de prender políticos desafetos, agora se volta contra as classes que atrapalham o paraíso distópico de condomínio fechado e muros eletrificados que alguns gostariam de impor ao país.
*Publicado na Folha de S.Paulo

Bebianno enfrentou o esquema das milícias em hospital e pode ser esta a real razão de ter caído em desgraça.




Bebianno enfrentou o esquema das milícias em hospital e pode ser esta a real razão de ter caído em desgraça.

 Por Joaquim de Carvalho


A fritura do ministro Gustavo Bebianno pode esconder um problema ainda mais grave do que a liberação de dinheiro do Fundo Partidário para o esquema de laranja em Pernambuco.
O titular da Secretaria Geral da Presidência bateu de frente com o esquema de milicianos que operaria no Hospital Federal de Bonsucesso, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Desde antes da posse de Bolsonaro, o ex-presidente do PSL já tinha alardeado que uma das prioridades do governo seria acabar com o controle dos milicianos no hospital.
”Chega ao ponto de as pessoas que precisam de tratamento terem de pegar senha com milicianos, que determinam quem vai ser atendido ou operado”, disse ele, em entrevista ao Estadão, publicada em 20 de dezembro.
Na época, não tinha sido revelada a relação da família Bolsonaro com as milícias da Zona Oeste, onde o ex-assessor de Flávio Bolsonaro tinha grande influência.
O caso teve repercussão depois que o Ministério Público do Rio de Janeiro deflagrou a operação que levou milicianos à prisão, em janeiro.
Soube-se então que um dos líderes da milícia, o ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega, estava presente no gabinete de Flávio na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro.
A mãe e a mulher de Adriano tinham sido assessoras de Flávio, com salário em torno de 6 mil reais.
Adriano e um dos comparsas, o major Ronald Paulo Alves Pereira, também tinham sido homenageados por Flávio, com diploma de mérito, e um deles recebeu a Medalha Tiradentes, uma das maiores honrarias concedidas pelo Legislativo do Estado.
De fato, depois de posse de Bolsonaro, o Ministério da Saúde interveio no hospital, e Bebianno estava na linha de frente desse movimento.
Um vídeo postado na internet mostra Bebianno na cabeceira da mesa de uma reunião entre representantes do governo federal e a diretoria interina do hospital.
“Eu gostaria de dizer para o senhor que há duas maneiras de fazer as coisas. Uma é pela dor. A outra é pelo amor”, afirmou.
Olhando no olho do diretor Paulo Roberto Cotrim de Souza, batendo na mesa, ele afirmou:
“Nós não vamos nos intimidar com ameaças veladas, com discursos contrários ao nosso trabalho. Nós esperamos que o senhor tenha liderança suficiente, tenha sensatez suficiente, para passar esse espírito ao corpo médico lá do hospital, porque nós vamos entrar no hospital e nós vamos fazer o trabalho que precisa ser feito. Aqueles que colaborarem estarão conosco. Quem não colaborar não estará conosco, e eles responderão pelos seus atos, inclusive criminalmente. A Polícia Federal estará dentro do Hospital de Bonsucesso, o Exército Brasileiro estará dentro do hospital de Bonsucesso, a Consultoria Fagundes estará dentro do hospital de Bonsucesso, os hospitais estarão dentro do hospital, tudo isso para fazer um trabalho que pode ser muito harmônico e feliz para todo mundo. Agora, quem vier com gracinha, com ameaça, a Presidência da República está diretamente interessada no assunto, nós não vamos arredar o pé do Hospital do Bonsucesso, e nós vamos fazer o que tem que ser feito. Então o senhor, por favor,  transmita esse meu recado ao Doutor Baltazar, eu até vou fazer uma visita ao hospital qualquer hora dessas, e vou dizer isso para ele. Está certo? Eu quero ver quem vai ter peito de peitar a Presidência da República, e o trabalho que está sendo feito. Se tiver que haver confronto, sangue na camisa, como disseram lá, ameaçando as pessoas que estiveram lá — ‘oh, tome cuidado para não sair daqui com sangue na camisa, aqui é uma região muito perigosa’ —, isso foi dito lá. Então, eu pago para ver, pessoalmente, como pessoa física, como representante da Presidência da República, eu gostaria de contar com sua colaboração para que o hospital pudesse progredir assim como todos os outros progredirão, essa conversinha fiada, de cafajeste do Rio de Janeiro, não vai prosperar conosco, nós não vamos nos intimidar.”
É cedo para afirmar que existe alguma relação entre essa ofensiva do governo federal comandada por Bebianno e o processo de fritura dele, mas esta é uma hipótese que não se deve descartar.
A indignação de Bolsonaro com o esquema de laranjas do PSL não faz sentido se se considerar que, antes da denúncia vazada à Folha de S. Paulo sobre da existência de uma candidatura de fachada em Pernambuco, já era de conhecimento público outro caso, em Minas Gerais, que envolve o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio.
No caso mineiro, o ministro foi até prestigiado. Marcelo Álvaro Antônio foi exonerado para tomar posse da Câmara e renomeado no dia seguinte, sem que a família Bolsonaro tenha se movimentado.
Pelo contrário. Marcelo recebeu até elogios da Casa Civil e contou com o silêncio do ministro da Justiça, Sergio Moro.
Bebianno é um dos membros do governo federal mais articulados com o que se poderia chamar de sociedade civil organizada.
Ex-sócio de um grande escritório de advocacia no Rio, tem vínculos com a cúpula do Poder Judiciário tanto do Estado do Rio de Janeiro quanto em Brasília.
Os jornalistas da velha imprensa têm em Bebianno uma fonte privilegiada, uma das poucas, em um governo que se destaca por ter ministros sem prestígio público, como Damares Alves, Ricardo Vélez, Ernesto Araújo e Ricardo Salles.
Bebianno está sendo responsabilizado por ato em que tem a menor culpa, no caso dos laranjas, já que é evidente que a formação da chapa eleitoral está sob controle das lideranças estaduais — no caso de Minas, o ministro Marcelo Álvaro Antônio, e no caso de Pernambuco, o deputado federal Luciano Bivar.
Bebianno pode ter pisado em um território proibido no governo Bolsonaro, ao declarar guerra aos esquemas de milicianos que vendiam atendimento em um hospital público.
Se se quiser entender esse episódio, é preciso olhar com lupa para a ação das milícias na Saúde Pública.
Pode estar aí a razão do rompimento dos Bolsonaros com o ex-homem de confiança do presidente da república.



sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

20 pontos para entender a trajetória de Sergio Moro



20 pontos para entender a trajetória de Sergio Moro

Cronologia dos fatos: 20 tópicos explicam a trajetória do juiz que conduziu a Lava Jato desde sua origem e os interesses por trás de seus objetivos


José Crispiniano*, RBA
1↬ Em 2004: Sérgio Moro redige artigo sobre a metodologia da Operação Mãos Limpas da Itália (“Considerações sobre a Operação Mani Pulite”) , falando de delações, vazamentos e destruição de imagem pública. Todas práticas habituais da Lava Jato, 10 anos depois.
2↬ Em 2005: Segundo declaração do atual ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, a Roberto D’Ávila, na Globonews, Moro sugeriu duas mudanças na legislação. Delação premiada e transformação de lavagem de dinheiro em crime autônomo, que não precisa de delito anterior. Foi, segundo Onyx, a diferença entre “chegar ou não no Lula“, do mensalão para a Lava Jato.
3↬ Em 2007: Moro fecha um acordo de delação premiada com o doleiro Alberto Youssef, no caso Banestado.
4↬ Entre 2006 e 2014: Dentro de investigações contínuas do caso Banestado, Moro monitorou Youssef com interceptações telefônicas. Inclusive contra a opinião do Ministério Público da época (que não era o Dallagnol). A investigação só para com a detonação da Lava Jato.
5↬ Em 2009: Documento diplomático americano revelado pelos vazamentos do Wikileaks (código: 09BRASILIA1282_a) registra Sérgio Moro participando de uma conferência de uma semana sobre lavagem de dinheiro dentro do “Projeto Pontes”, para aproximar Judiciário, Ministério Público e polícia, americanos e brasileiros. O documento registra que os participantes no seminário (não diz quem) pediram treinamento adicional no “modelo de força-tarefa pró-ativa”.
6↬ Em 2012: Moro é assistente de acusação da juíza Rosa Weber no caso do mensalão, o primeiro caso de uso da teoria do domínio do fato (o autor da teoria, o alemão Claus Roxin, disse que ela foi mal usada no processo do mensalão).
É Rosa Weber quem pronuncia a famosa frase “não há provas, mas a literatura me permite” para condenar José Dirceu, como ela mesma disse, sem provas. Há grande possibilidade de essa frase ter sido escrita por Moro no seu voto, porque Weber não é da área do direito penal.
7↬ Em 2013: Em parte como resposta às manifestações de junho, Dilma assina dentro de um pacote de medidas contra a corrupção, a lei de combate às Organizações Criminosas, que permite acordos de delação com praticamente nenhuma supervisão, e com trechos e tipificações criminais extremamente vagas, que permitem aplicação e interpretação amplas.
8↬ Em 2014: Estoura a Lava Jato, com um batida em posto de gasolina e prisão de Alberto Youssef. Todo filme e livro que você viu dizem que foi acaso, mas há o item 4 dessa lista fartamente documentado.
9↬ De 2014 a 2016: Estabelecendo casos de conexão em conexão, seguem-se prisões preventivas e delações de ex-diretores da Petrobras, e executivos de diversas empreiteiras. A partir de Alberto Youssef pessoas são presas, em geral com base apenas em delação, confessam crimes e fazem novas delações, que levam a novas prisões e delações, como previsto no artigo de Moro no item 1.
As cinco maiores empresas de construção no Brasil são destruídas no processo, a Petrobras perde valor, milhares de empregos são destruídos e os executivos fecham acordos pessoais por redução de tempo de prisão. Só no caso da Odebrecht, o maior e mais paradigmático, são cerca de 70 acordos de delação, em que a empresa se responsabilizou a pagar os executivos delatores pelos próximos 15 anos.
As outras consequências são 100 mil empregos destruídos, de pessoas que não cometeram crime nenhum e não receberão prêmio nenhum nem compensação salarial de 15 anos. Em maio de 2017 eram R$ 47 bilhões de dívidas financeiras (só no caso da Odebrecht, as perdas, inclusive dos bancos públicos, são várias vezes maiores do que o valor recuperado em TODA a Lava jato) sendo roladas esperando o pagamento da venda dos ativos lucrativos que restaram do grupo, como concessões rodoviárias e a Braskem.
Em outubro de 2017, as empresas investigadas pela Lava Jato já tinham vendido R$ 100 bilhões em ativos. E para você, que não tem bandido de estimação, que acha que todo esse estrago vale a pena se colocou gente poderosa na cadeia, sabe quantas pessoas da Odebrecht estão presas hoje na operação implacável “lei é para todos”? Só o Marcelo Odebrecht, em prisão domiciliar. Na cadeia, ninguém.
Bem, talvez algum operário dos 100 mil desempregados tenha caído no crime e sido preso também, mas aí não é Lava Jato.
10↬ Em janeiro de 2016: Moro cria uma conexão forçada com um apartamento no Guarujá na fase ‘triplo X”, supostamente sobre um escritório acusado de ser um centro de lavagem de dinheiro no Panamá, o Mossack & Fonseca, que só serve de ponte para chegar em Lula e depois é esquecido.
11↬ Em 14 de março de 2016: Há uma disputa entre promotores de São Paulo e da Justiça Federal do Paraná pelo caso do triplex contra Lula. A juíza de São Paulo passa apenas o caso de Lula e Dona Marisa para Moro. Os demais réus ficam em São Paulo e são posteriormente absolvidos.
12↬ Em 16 de março de 2016: Lula é apontado ministro, o que faria seu caso ser investigado pela Procuradoria-Geral da República e julgado no Supremo Tribunal Federal (STF), indo direto para a última instância (a PGR, chefiada por Rodrigo Janot, que investigaria Lula, considerou isso “obstrução de Justiça“. Janot considerou a si próprio e redução das instâncias processuais obstrução de Justiça!!!!).
Moro solta gravações da intimidade de Lula, grampeia seus advogados alegando “engano” apesar de ter sido avisado que estava grampeando advogados três vezes pelas companhias telefônicas, e divulga uma gravação ilegal, por qualquer parâmetro, de um telefonema da Presidenta da República.
13↬ Em setembro de 2016: Michel Temer já é presidente e o TRF-4 decide por 13 a 1 que Moro não sofrerá qualquer sanção por ter cometido o crime de divulgar uma gravação ilegal da Presidência da República. A Lava Jato seria uma investigação excepcional que não precisaria então seguir as regras da “normalidade“.
O relator justifica citando texto do ex-ministro do Supremo Eros Grau que, por sua vez, no trecho está citando um livro de Giorgio Agamben intitulado O Estado de Exceção. No livro, e no trecho, Agambem está estudando o jurista Carl Schmitt e o direito nazista. Ele está explicando como o nazismo aplicava o direito de exceção. Ele não está dizendo para fazer isso, justificando a aplicação. É essa a base teórica que justifica a excepcionalidade da Lava Jato no TRF-4. Carl Schmitt.
14↬ Em julho de 2017: Moro condena Lula no caso do triplex. A tese do Ministério Público do que teria sido o crime por trás do triplex (a lavagem seria uma compensação financeira interna da OAS Empreendimentos na contabilidade do projeto do prédio no Guarujá em troca de três contratos), não bate com a tese na sentença (um “caixa geral” de propinas em parte constituído por recursos oriundos de um dos três contratos).
Essa tese surge no fim do processo, nas audiências com o co-réu Léo Pinheiro – na segunda prisão preventiva decretada por Moro –, que trocou de advogado justamente na audiência em que foi depor (como noticiado pela própria imprensa na época, por pressão da promotoria), e teve sua pena reduzida.
Léo Pinheiro não apresenta provas de sua história. No recurso, o Ministério Público insiste com a tese original da acusação, mesmo ela sendo contraditória com a elaborada por Moro na sentença, e sendo estranho que o juiz tenha uma tese acusatória própria, construída e validada apenas pelo depoimento de um co-réu negociando redução de pena (a qual recebe).
Moro também dispensa que Lula teria que ter cometido ato de ofício, ou atuado nos contratos, citando várias vezes o voto da ministra Rosa Weber no mensalão. Voto que provavelmente foi escrito por ele mesmo. (São apenas duas das muitas questões envolvendo a sentença, que já renderam alguns livros.)
15↬ Em janeiro de 2018: No processo mais rápido de tramitação entre a primeira e segunda instância da história da Lava Jato, Lula é condenado. Os desembargadores fazem, até onde eu sei, o único julgamento de revisão da Lava Jato com concordância unânime e absoluta dos três em relação a tudo: crimes, dosimetria, tudo. Assim aceleram a execução e não abrem espaço para a defesa apresentar embargos.
16↬ Em agosto de 2018: O ministro do Supremo, Luis Barroso, muda toda a jurisprudência do TSE para acelerar o impedimento da candidatura de Lula antes de começar a campanha na TV.
Uma liminar de um comitê da ONU, com o qual o Brasil ratificou compromisso de que acataria as decisões, e em um processo onde o governo brasileiro se defendeu reconhecendo o comitê, diz que Lula deve concorrer.
A liminar não é contra a Lei da Ficha Limpa, como a imprensa brasileira fez parecer. Sua base é a dúvida se Lula teve um julgamento justo, e que ele não pode sofrer danos irreparáveis, como não concorrer às eleições, antes do fim do processo na ONU.
Raquel Dodge defende uma posição contrária a toda a sua carreira de procuradora, a de que o Brasil não deve seguir um tratado internacional assinado. E O TSE, por 6 x 1, decide que o Brasil não precisa cumprir o tratado que assinou. O Supremo depois referenda a interdição da candidatura de Lula, que lidera com ampla vantagem, chegando a quase 40% dos votos.
17↬ Em outubro de 2018: Bolsonaro é eleito e chama Moro para ser seu ministro da Justiça. Moro aceita e deixa de ser juiz. Na Inglaterra, o Times de Londres resume assim em sua manchete “Bolsonaro nomeia para alto cargo juiz que aprisionou seu rival”. Dizem que em muitos países se um juiz for, anos depois, para uma empresa beneficiada por uma decisão sua, ele vai preso.
Fica temporariamente no cargo a juíza substituta Gabriela Hardt, admiradora pública de Moro e crítica pública de Lula. Moro se defende dizendo que não tem culpa se Lula foi condenado por “cometer crimes” e que era a obrigação dele condená-lo se ele tinha cometido crimes.
Quem disse que Lula cometeu crimes? Moro.
Qual foi a ação criminosa de Lula que resultou na condenação, segundo Moro? Depois de anos de investigação, ato indeterminado.
O que ele supostamente roubou? Um apartamento que estava listado como patrimônio da OAS e colocado pela empresa como garantia de uma operação financeira da OAS.
Ou seja, em qualquer sentido: monetário, uso, financeiro, documental, perante a diversos outros processos, uma propriedade da OAS. Na realidade o apartamento foi tomado pela Justiça Penal da massa falida da OAS (com a conivência do juiz que supervisiona a massa falida da empresa) para justificar a condenação.
18↬ Em janeiro de 2019: É escolhido pelo TRF-4 o novo juiz que irá assumir os dois casos restantes de Lula que eram de Moro.
19↬ Em 4 de fevereiro de 2019: Moro apresenta um pacote de medidas. Várias delas legalizam práticas cotidianas e bandeiras defendidas pela Lava Jato que se já fossem legais certamente não precisariam ser legalizadas:
– prisão em segunda instância;
– cooperação informal (ou seja, secreta e não documentada) entre instâncias de investigação de diferentes países, um absurdo em termos de soberania (o procurador americano Kenneth Blanco disse publicamente, em vídeo, que ajudou no caso contra Lula);
– gravação de diálogos de advogados, que Moro já autorizou e não é permitida por lei;
– congelamento de bens de origem lícita (Moro congelou até o espólio de Dona Marisa!) exigindo que depois de ter seus bens congelados o cidadão prove que eles foram adquiridos de maneira legal (e que faça isso sem nenhum tostão pois seus bens foram congelados).
Grande parte das propostas são inconstitucionais, há violações de cláusulas pétreas da Constituição. A ampliação do “plea bargain” é na prática uma mudança da natureza do direito brasileiro, que adotaria parte do modelo anglo-saxão.
Só parte. Porque lá MP não é independente, nem vitalício e há separação entre juiz que acompanha investigações autorizando medidas e aquele que julga. Isso Moro e o MP não querem mudar.
20↬ Em 6 de fevereiro de 2019: A juíza Gabriela Hardt, que já estava com os dias contados para deixar o caso, emite a sentença da segunda condenação de Lula antes da troca de juízes.
decisão se fundamenta, principalmente, nas decisões anteriores de Moro e do TRF-4 da primeira condenação de Lula. Há citação seguida de citação delas. Lembrando que essas se basearam no julgamento do mensalão. Onde atuou Moro.
Não há nexo causal entre os contratos listados e qualquer ação de Lula, mas não precisa, porque já foi julgado e pode condenar assim. Não há ato de ofício, mas não precisa, porque em 2012 o julgamento do mensalão permitiu condenar assim (haveria uma outra discussão a fazer aí sobre o conceito, vedado na Constituição, de lei retroativa, também conhecida como “lei em movimento“, outro fenômeno conceitual do direito nazista. Está escrito que a lei só pode retroagir em benefício do réu. Uma conceituação de 2012 criminalizando práticas anteriores a essa data seria punição retroativa por algo que na época em que foi praticado não seria crime).
Recicla-se a delação de Delcídio do Amaralconsiderada mentirosa pelo Ministério Público Federal e Justiça de Brasília. Não há ação de Lula nos contratos, mas não precisa, porque o desembargador Gebran já escreveu que não precisa e que Lula é responsável por tudo dentro da Lava Jato.
Os cálculos dos desvios que teriam acontecidos nos contratos não são fruto de quebra de sigilo e análise contábil, e sim da aplicação de um percentual estimado de 3% (nascido de uma tabela de delação do Barusco, e produzido por ele, não apreendida) que vai sendo aplicado em tudo que é denúncia, às vezes de forma repetida sobre o mesmo contrato.
Apesar de não ter inspeção contábil se dinheiro da Petrobras foi usado no sítio, nem prova de que Lula atuou nos contratos listados na denúncia (aliás não tem nem prova de que os contratos foram obtidos por manipulação de licitação), apesar de tudo isso Lula foi condenado a ressarcir os prejuízos não provados em contratos em que ele não atuou, de licitações que não foram provadas fraudulentas, por obras que ele não pediu, em um sítio que está provado que não é dele.

O que está provado?

Provaram que as empresas pagaram dinheiro para Pedro Barusco, gerente de terceiro escalão da Petrobras, relacionado a alguns desses contratos. Daí ela pula para a indenização que Lula teria que pagar, um ressarcimento estimado de 3% desses contratos, mesmo Barusco tendo dito em depoimento – que não está na sentença –, mas registrado nos autos do processo, jamais ter conversado com Lula, feito ou sabido de pagamentos para Lula.
E aqui estamos. Lula está preso, Moro está reformulando a natureza do Estado brasileiro e da Constituição de 1988, Bolsonaro é presidente, e dizem que basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo.
Mas até aí qual a referência, que lei é para todos, se como diz e pratica Moro a interpretação da Constituição não deve ser feita de modo literal?

Brilhante estratégia de Trump para esquartejar a hegemonia do EUA-dólar



Brilhante estratégia de Trump para esquartejar a hegemonia do EUA-dólar

1/2/2019, Michael Hudson, Hudson Website

“O fim do imperialismo monetário norte-americano, sobre o qual escrevi pela primeira vez em 1972 em Super Imperialism, surpreende até mesmo um observador bem informado como eu. Requerem-se níveis colossais de arrogância, de visão curta e total desconsideração à lei, para acelerar o declínio norte-americano: isso tudo, precisamente, é o que só neoconservadores completamente alucinados feito John Bolton, Elliot Abrams e Mike Pompeo podem fornecer a Donald Trump.”

Taí! Isso, sim, afinal, explica os Bs no governo, o ônix, a doida no ministério da mulher, o analfabeto no ministério da educação, o animal no ministério do meio ambiente e coisa e tal... [pano rápido].
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Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga -
 blog do alok



O fim da dominação econômica norte-americana não contestada chegou antes do esperado, graças aos mesmos neoconservadores que deram ao mundo a guerra do Iraque, da Síria e as sujas guerras na América Latina. Assim como a Guerra do Vietnã arrancou os EUA do padrão ouro em 1971, o patrocínio e o financiamento que estão garantindo as violentas guerras para mudança de regime contra a Venezuela e a Síria – e as ameaças de sanções contra outros países que não se unam na mesma cruzada – estão hoje levando países europeus e outros a ter de criar suas próprias instituições financeiras alternativas.

Esse rompimento está-se armando já há algum tempo, e com certeza aconteceria. Mas quem teria imaginado Donald Trump como o agente catalisador? Nenhum partido de esquerda, líder socialista, anarquista, nacionalista estrangeiro em algum canto do mundo teria conseguido o que Trump está fazendo para quebrar o Império Norte-americano. 

O Estado Profundo reage com choque, sem compreender como esse corretor de imóveis de luxo está conseguindo que outros países passem a se autodefender, desmontando a ordem mundial centrada nos EUA. 

Como se não bastasse, está usando criminosos incendiários da era Bush e Reagan – John Bolton e, agora, Elliott Abrams, para abanar a brasa e fazer subir as chamas na Venezuela. É quase como uma comédia política noir. O mundo da diplomacia virado de pés para cima. Um mundo no qual já nem se tenta fingir que se respeitam normas internacionais, imagine se se leem leis ou tratados.

Os neoconservadores que Trump nomeou estão fazendo o que há pouco tempo ainda parecia impensável: uniram China e Rússia – o grande pesadelo de Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski. Estão também empurrando a Alemanha e outros países europeus para a órbita da “Terra Central”, ou “pivô geográfico” [ing. Heartland (correspondente à Eurásia)], o pesadelo de Halford Mackinder há um século.[1]

A causa raiz é clara: depois do crescendo de falsidades e embustes em torno do Iraque, da Líbia e da Síria, além da absolvição preventiva que garantimos ao regime criminoso da Arábia Saudita, os líderes políticos em todo o mundo estão começando a ver o que pesquisas de opinião pública em todo o mundo já diziam desde antes de os rapazes dos Contra do Iraque-Irã pusessem os olhos nas reservas de petróleo da Venezuela, as maiores do mundo: os EUA são hoje a maior ameaça à paz no planeta.

Pretender que o golpe que os EUA patrocinam contra a Venezuela seria alguma defesa de alguma democracia revela o Duplipensar que subjaz a toda a política exterior dos EUA. “Democracia” aparece definida, para efeitos de golpe, como: apoiar a política exterior dos EUA; cometer a privatização neoliberal de toda a infraestrutura pública; desmantelar a regulação que haja sobre o governo; e seguir o que ordenem instituições globais comandadas pelos EUA, de FMI e Banco Mundial à OTAN. Durante décadas, as guerras distantes do território dos EUA, que resultaram dessa política, os programas de arrocho doméstico – ditos “de austeridade” (mas não são, são programas de arrocho, NTs) – e intervenções militares só geraram mais violência, nunca alguma democracia.

No Dicionário do Diabo, que diplomatas norte-americanos são ensinados a adotar como guia de ‘Elementos de Estilo’ para Duplipensar, país “democrático” é país que obedeça aos comandos ditados pelos EUA e abra a própria economia ao investimento de empresas norte-americanas e à privatização patrocinada pelo FMI e pelo Banco Mundial. Ucrânia é dita ‘país democrático’ como Arábia Saudita, Israel e outros países que atuam como protetorados financeiros e militares dos EUA, sempre dispostos a tratar os inimigos dos EUA como se fossem inimigos também seus.

Tinha de acontecer e aconteceu, de esses autointeresses dos norte-americanos entrarem em choque com os autointeresses de outros países. E esse conflito está, afinal quebrando as linhas e entrelinhas da retórica das Relações ‘Públicas’ do império. Vários países já cuidam de desdolarizar os próprios negócios e de descartar o que só a diplomacia norte-americana ainda chama de “internacionalismo” (que significa o nacionalismo norte-americano imposto a ferro e fogo ao resto do mundo), para abraçarem, afinal, os próprios respectivos reais autointeresses nacionais.

Essa trajetória já era visível há 50 anos (já escrevi sobre ela em Super Imperialism [1972, em PDF, ing.] e em Global Fracture [1978, em PDF, ing.].) Tinha de acontecer. Mas ninguém pensou que o fim chegaria como está acontecendo hoje. A história virou comédia, ou, no mínimo, ironia, conforme se desdobram os seus movimentos dialéticos.

Ao longo dos últimos 50 anos, os estrategistas norte-americanos, o Departamento de Estado e a ONG do Partido Democrata “Dotação para a Democracia” [ing. Endowment for Democracy (NED)] acreditaram firmemente que a oposição ao imperialismo financeiro dos EUA lhes viria de partidos de esquerda. Por isso gastaram quantias descomunais de recursos para manipular partidos autodenominados socialistas (o Partido Trabalhista Britânico de Tony Blair; o Partido Socialista Francês, o Partido Social-democrata da Alemanha, etc.) no sentido de fazê-los adotar políticas neoliberais que eram diametralmente opostas ao que “social-democracia” significara há um século. 

Mas os estrategistas norte-americanos e a CIA dos tocadores do grande “órgão Wurlitzer”[2] simplesmente deixaram de lado a direita, supondo que a direita apoiaria instintivamente a violência norte-americana.

Fato é que os partidos da direita querem ser eleitos, e um nacionalismo populista é hoje quase garantia de vitória eleitoral na Europa e em outros países, como foi nos EUA, em 2016, na eleição de Donald Trump in 2016.

É perfeitamente possível que a agenda de Trump seja realmente rachar o Império Norte-americano, usando a velha retórica isolacionista doUncle Sucker,[3] de há 50 anos. Não há dúvidas de que está atacando os órgãos mais vitais do Império. Mas será agente anti-norte-americano deliberado, consciente? Também é possível que seja – mas não basta, para assumir que Trump esteja agindo deliberadamente, usar um raciocínio simplório de “quem mais ganha”.

Afinal, se nenhum terceirizado, fornecedor, sindicato ou banco quer negociar com Trump... Vladimir Putin, China ou o Irã seriam talvez mais ingênuos? É possível que o problema estivesse maduro para aparecer, como resultado de a dinâmica interna do globalismo patrocinado pelos EUA ter-se tornado inviável, impossível de impor depois de o resultado já verificado ser só ‘austeridade financeira’ (é arrocho!), ondas de emigrados que fogem das guerras patrocinadas pelos EUA e, principalmente, depois de os EUA recusarem-se a seguir regras e leis internacionais que os próprios EUA patrocinaram há 70 anos, imediatamente depois da 2ª Guerra Mundial.

Desmantelar a Lei Internacional e respectivos tribunais

Não há sistema internacional de controle se não há estado de direito e leis. Pode até ser exercício moralmente degradado de poder sem qualquer controle para impor e ‘legalizar’ a exploração, mas ainda assim alguma Lei tem de existir. E a Lei exige tribunais que a apliquem (apoiada por força policial para fazer cumprir as decisões e punir violadores).

Aqui já se vê a primeira contradição da diplomacia global dos EUA, no plano da Lei: os EUA jamais admitiram que qualquer outro país tivesse voz nas políticas domésticas norte-americanas, no Legislativo ou na diplomacia dos EUA. Isso faz dos EUA “a nação excepcional”. Mas há 70 anos os diplomatas norte-americanos só fazem repetir – sem qualquer comprovação na realidade – que aquele seu julgamento ‘superior’ teria promovido um mundo em paz (tão em paz quanto o Império Romano dizia ser), paz a qual teria permitido que outros países partilhassem a prosperidade e os altos padrões de vida dos norte-americanos.

Na ONU, diplomatas dos EUA defendem a manutenção do poder de veto. No Banco Mundial e no FMI, os EUA também cuidam de assegurar que a parte dos EUA no quadro acionário seja suficientemente maior para lhes garantir poder de veto em todos os empréstimos ou outras políticas. Sem esse poder, os EUA recusam-se a participar de qualquer organização internacional. Ao mesmo tempo, os EUA só fazem exibir o próprio nacionalismo como força que protegeria a globalização e o internacionalismo. Tudo isso jamais passou de puro eufemismo, para encobrir um processo absolutamente unilateral autoritário norte-americano de tomar decisões.

Inevitavelmente, o nacionalismo norte-americano acabaria por destruir a miragem do internacionacionalismo no Primeiro Mundo, e, em seguida, até a noção de que pudesse existir alguma corte internacional. Sem poder de veto sobre aqueles juízes, os EUA jamais aceitaram a autoridade de qualquer tribunal, notadamente da Corte Internacional da ONU em Haia. Recentemente, essa corte iniciou investigação dos crimes de guerra dos EUA no Afeganistão, das políticas de tortura ao bombardeio de alvos civis como hospitais, casamento e infraestrutura. “Essa investigação encontrou ‘base razoável’ para crer que houve crimes de guerra e crimes contra a humanidade.”[4]

O conselheiro de Segurança Nacional de Donald Trump explodiu em fúria, ameaçando, em setembro, que “Os EUA usarão todos os meios necessários para proteger nossos cidadãos e cidadãos dos países nossos aliados contra qualquer julgamento ou condenação injusta que seja feita por essa corte ilegítima,” – e ainda acrescentou que a Corte Internacional de Justiça da ONU não se atrevesse a investigar “Israel ou outros aliados dos EUA”. Um veterano juiz, Christoph Flügge, da Alemanha, renunciou em sinal de protesto. 

De fato, Bolton disse à Corte que não se intrometesse em assuntos dos EUA. E ameaçou proibir “juízes e promotores dessa corte, de entrar nos EUA”. Nas palavras de Bolton: “Sancionaremos o dinheiro deles no sistema financeiro dos EUA, e os processaremos pelo sistema criminal dos EUA. Não cooperaremos com a Corte Internacional. Cortaremos toda a assistência que damos à Corte Internacional. Deixaremos que a Corte Internacional morra à míngua. Afinal, para todos os seus objetivos e finalidades, a Corte Internacional já está morta.”

Significava, como disse o juiz alemão: “Se esses juízes algum dia intervierem nos interesses domésticos dos EUA ou investigarem algum cidadão norte-americano, [Bolton] disse que o governo dos EUA fará tudo que consiga para assegurar que tais juízes nunca mais entrem nos EUA – e que talvez, mesmo, sejam processados criminalmente.”

A inspiração original dessa corte – usar as leis de Nuremberg que foram aplicadas contra os nazistas alemães, para julgar países e funcionários considerados culpados por crimes de guerra –, verdade seja dita, já deixara de ter qualquer significado quando a corte não conseguiu maioria para indiciar por crimes de guerra, os autores do golpe no Chile, do Iran-Contra ou da invasão do Iraque.

Desmantelar a hegemonia do EUA-dólar, do FMI ao sistema SWIFT de compensações 

De todas as áreas da política do poder global hoje, a finança internacional e o investimento estrangeiro tornaram-se as principais. Reservas monetárias internacionais tinham de ser vistas como os itens mais sacrossantos, com a limitação da dívida externa intimamente associada.

Há muito tempo os bancos centrais mantinham suas reservas monetárias, em ouro e outras, nos EUA e em Londres. Parecia razoável à altura de 1945, porque o New York Federal Reserve Bank (em cujo porão era guardado o ouro dos bancos centrais estrangeiros) tinha segurança de nível militar, e porque o London Gold Pool era o veículo pelo qual o Tesouro dos EUA mantinha o dólar “firme como ouro”, a $35 a onça. Outras reservas estrangeiras eram guardadas em papéis do Tesouro dos EUA, para serem vendidos e comprados nos mercados de câmbio de New York e Londres, para estabilizar as taxas de câmbios. Muitos empréstimos externos para outros governos eram denominados em EUA-dólares, de modo que bancos de Wall Street eram tidos normalmente como agentes pagadores.

Foi assim com o Irã do Xá, que os EUA instalaram no poder depois de patrocinar o golpe de 1953 contra Mohammed Mosaddegh, quando ele tentou nacionalizar a empresa Anglo-Iranian Oil (hoje, British Petroleum) ou pelo menos, que fosse, cobrar-lhe impostos. Derrubado o Xá, o regime Khomeini requereu ao seu agente pagador, o banco Chase Manhattan, que usasse as reservas do Irã para pagar os seus acionistas. Por ordem do governo dos EUA, o banco Chase recusou-se a pagar. Tribunais dos EUA então declararam o Irã insolvente, e congelaram seus bens nos EUA e em todos os lugares do planeta onde conseguiram agir.

Assim se viu que a finança internacional era braço do Departamento de Estado dos EUA e do Pentágono. Mas aconteceu já lá se vai uma geração, e só recentemente outros países começaram a manifestar preocupações quanto a deixar o próprio ouro nos EUA, onde poderia ser facilmente confiscado para punir qualquer país que agisse de modo que a diplomacia norte-americana achasse ofensivo. Ano passado afinal a Alemanha arranjou coragem para pedir que parte do ouro alemão fosse devolvido à Alemanha. Funcionários dos EUA manifestaram um simulacro de choque extremo ante o insulto de os alemães suporem que os norte-americanos fossem capazes de fazer a um país cristão civilizado o mesmo que haviam feito ao Irã. E a Alemanha concordou em adiar a transferência do ouro.

Mas na sequência veio a Venezuela. Desesperada para usar as próprias reservas em ouro para pagar por importações que tanta falta faziam à economia nacional devastada por sanções impostas pelos EUA – crise que os diplomatas dos EUA declararam ser efeito do “socialismo”, não das providências dos norte-americanos para “fazer gemer a economia” (como funcionários de Nixon disseram do que faziam ao governo de Salvador Allende no Chile) –, a Venezuela ordenou que o Banco da Inglaterra transferisse para o país parte dos $11 bilhões de dólares em ouro que jaziam nos cofres do Banco da Inglaterra e de outros bancos, em dezembro de 2018. Simples. Como qualquer correntista perfeitamente solvente de qualquer banco, que espera que o banco pague um cheque que aquele correntista emitiu.

A Inglaterra recusou-se a honrar o cheque venezuelano, obedecendo ordens de Bolton e do secretário de Estado Michael Pompeo. Como Bloomberg noticiou: “Funcionários dos EUA estão tentando transferir os fundos venezuelanos no exterior para Juan [Chicago Boy] Guaidó, para aumentar-lhe as chances de efetivamente tomar pleno controle do governo. O $1,2 bilhão de ouro é parcela significativa dos $8 bilhões em reservas estrangeiras depositadas no banco central venezuelano.”[5]

A Turquia apareceu como destino provável, o que levou Bolton e Pompeo a ameaçar a Turquia com sanções, caso auxiliasse a Venezuela a enfrentar sua crise econômica. Quanto ao Banco da Inglaterra e outros países europeus, a matéria de Bloomberg concluía: “Funcionários do banco central em Caracas receberam ordens para não tentar qualquer contato com o Banco da Inglaterra. Caracas foi informada de que funcionários do Banco da Inglaterra foram proibidos de responder mensagens de Caracas.”

Daí surgiram rumores de que a Venezuela estava vendendo 20 toneladas de ouro a serem transportadas num Boeing 777 russo – cerca de $840 milhões de EUA-dólares. O dinheiro provavelmente destinava-se a pagar acionistas russos e chineses e a comprar comida.[6] A Rússia desmentiu a matéria, mas Reuters confirmou que a Venezuela vendera 3 toneladas de planejadas 29 toneladas de ouro aos Emirados Árabes Unidos, com mais 15 toneladas a serem embarcadas na 6ª-feira, 1/2/2019.[7]  Rubio, linha-dura cubano-batista no Senado dos EUA, denunciou a operação como “roubo”, como se alimentar o próprio povo para aliviar o sofrimento provocado pela crise gerada e alimentada pelos EUA fosse crime contra a ação diplomática dos EUA.

Se há país que os diplomatas norte-americanos odeiam mais que país rebelde na América Latina, é o Irã. O fim decidido pelo presidente Trump dos acordos nucleares de 2015 negociados por europeus e o governo Obama escalou a ponto de Alemanha e outros países europeus já estarem ameaçados de sanções se não se retirarem dos acordos que assinaram. Como se não bastasse a oposição a que Alemanha e outros países europeus importem gás russo, as ameaças dos EUA acabaram por empurrar a Europa a buscar algum modo de se autopreservar.

As ameaças imperiais já não são militares. Nenhum país (nem Rússia ou China) tem meios para montar invasão militar a outro grande país. 

Desde os dias do Vietnã, o único tipo de guerra possível para países ainda democráticos é a guerra atômica, ou pelo menos guerra de bombardeios pesados como os que EUA infligiram ao Iraque, Líbia e Síria. Mas agora a ciberguerra tornou-se meio eficaz para quebrar as conexões de qualquer economia. E as principais ciberconexões hoje são ordens financeiras de transferência de dinheiro – compensações bancárias mundiais –, coordenadas hoje pela SWIFT, sigla em inglês da Sociedade Mundial para Telecomunicações Financeiras Interbancárias (Worldwide Interbank Financial Telecommunication), que tem sede na Bélgica.

Rússia e China já se movimentaram para criar um sistema alternativo de compensações bancárias, para o caso de os EUA desconectarem os dois países, do sistema SWIFT. Mas agora países europeus já entenderam que as ameaças feitas por Bolton e Pompeo podem gerar multas pesadas e confisco de patrimônio, se tentarem insistir em manter o comércio com o Irã, como determinado nos acordos que todos firmaram.

Dia 31 de janeiro, o bloqueio foi rompido, com o anúncio de que a Europa criou seu próprio sistema de compensação de pagamentos para usar com o Irã e outros países que sejam alvo dos ataques ‘diplomáticos’ dos norte-americanos. Alemanha, França e até a Grã-Bretanha, poodledos EUA, uniram-se para criar o INSTEX — Instrumento (também dito “Mecanismo” [NTs]) para Apoio de Compensações Interbancárias [ing. Instrument in Support of Trade Exchanges]. A promessa é que será usado só para ajuda “humanitária” para salvar o Irã de uma devastação provocada pelos EUA semelhante à que a Venezuela sofreu. Mas, se se considera a crescente e cada dia mais furiosa oposição que os EUA fazem à ideia de que o gasoduto Ramo Norte transporte gás russo, essa via alternativa para compensações bancárias está pronta e capacitada para se tornar plenamente operante, caso os EUA tentem um ataque com sanções contra a Europa.

Acabo de voltar da Alemanha e vi impressionante divisão entre empresários e industriais e o governo político. Durante anos, as grandes empresas viram a Rússia como mercado natural, como economia complementar que precisava modernizar a própria base manufatureira e capaz de abastecer a Europa com gás natural e outras matérias-primas. A posição dos EUA nessa Nova Guerra Fria tenta bloquear essa complementaridade comercial. EUA alertaram a Europa contra o risco de se tornar ‘dependente’ do gás russo de baixo preço, para vender o gás natural liquefeito caríssimo que os EUA oferecem (prometendo instalações portuárias que ainda não existem em lugar algum, sequer próximas do volume exigido). O presidente Trump também tem insistido em que membros da OTAN gastem na compra de armas no mínimo 2% dos respectivos PIB – e armas a serem compradas, claro, dos mercadores de morte norte-americanos, não franceses nem alemães.

O modo como os EUA fazem pesar a mão está levando diretamente à realização do pesadelo eurasiano de Mackinder-Kissinger-Brzezinski ao qual me referi no início. Como se não bastasse, os EUA estão aproximando Rússia e China. A diplomacia norte-americana está ‘unindo’ a Europa ao “pivô geográfico” bem conhecido dos norte-americanos, operando contra, até, o mesmo tal estado de dependência, para cuja criação a diplomacia norte-americana trabalha desde 1945.

O Banco Mundial, por exemplo, sempre, tradicionalmente, foi presidido por um secretário da Defesa dos EUA. A política desse banco, desde que foi criado, é prover empréstimos a países que aceitem usar a própria terra para exportar suas colheitas, não para alimentar o próprio povo. 

Por isso os empréstimos são sempre feitos em moeda estrangeira, não na moeda doméstica necessária para dar suporte aos preços e aos vários serviços que orbitam em torno da agricultura e a promovem, como os que tornaram a agricultura dos EUA tão produtiva. Cada país que seguiu a orientação dos EUA expôs-se completamente indefeso à chantagem do racionamento de comida – sob a forma de sanções que impedem aqueles países de comprar comida, caso se afastem um passo da linha traçada pela diplomacia norte-americana.

Vale a pena observar que a imposição pelos EUA, da mítica “eficiência” na agricultura, imposição cujo resultado foi converter os países latino-americanos em plantations para exportar colheitas (como café, banana), em vez de cada país cultivar o próprio trigo e o próprio milho, fracassou escandalosamente e jamais melhorou a vida de nenhum cidadão latino-americano, sobretudo na América Central. 

O fracasso da receita ensinada nos manuais norte-americanos – as colheitas exportáveis seriam trocadas por alimentos baratos a serem importados dos EUA, a troca miraculosa prometida aos países que seguissem o manual dos norte-americanos – é hoje tragicamente evidente nas procissões de refugiados e sem-teto que cruzam o México. 

Claro que os EUA terem apoiado todos os mais brutais militares-ditadores, chefes de milícias e senhores do crime organizado em toda a América Latina não ajudou a fortalecer nossa posição naquela região.

Assim também o FMI foi forçado a admitir que suas ‘orientações’ sempre foram pura ficção, desde o início. Uma das funções centrais do FMI foi obrigar países pobres a pagar dívidas intergovernamentais, usando como instrumento de pressão e chantagem o corte do crédito para países maus pagadores. Essa regra foi instituída num tempo em que praticamente toda a dívida intergovernos tinha os EUA como credor. Mas há alguns anos, a Ucrânia deixou de pagar empréstimo de $3 bilhões devidos à Rússia. O FMI declarou que, de fato, nem a Ucrânia nem qualquer outro país teria qualquer obrigação de pagar dívidas cujo credor fosse a Rússia ou qualquer outro país que mantivesse comportamento excessivamente independente do que os EUA ordenassem. O FMI continua a jogar dinheiro no poço sem fundo do corrupto governo da Ucrânia, para promover a política desse governo, essencialmente anti-Rússia; nada diz ou faz na defesa do princípio de que dívidas intergovernamentais tenham de ser pagas algum dia.

É como se o FMI operasse agora numa salinha no porão do Pentágono em Washington. A Europa já se deu conta de que seu próprio sistema monetário de trocas internacionais e suas conexões financeiras podem a qualquer momento atrair a fúria dos EUA. Foi o que ficou muito claro no outono passado, nos funerais de George H. W. Bush, quando o diplomata representante da União Europeia foi deixado para o fim da lista de autoridades chamadas para assumir seu lugar na cerimônia. Foi informado de que os EUA já não consideram a União Europeia entidade muito importante. Em dezembro, “Mike Pompeo fez um discurso em Bruxelas sobre a Europa – seu primeiro discurso, ansiosamente aguardado – no qual exortou as virtudes do nacionalismo, criticou o multilateralismo e a União Europeia e disse que “corpos internacionais” que limitam a soberania nacional “devem ser reformados ou eliminados.”[8]

A maior parte desses eventos apareceram na mídia num só dia, 31/1/2019. A conjunção de tantos movimentos dos EUA em tantos fronts, contra Venezuela, Irã e Europa (para nem falar da China e das ameaças de retaliação comercial e ações contra a Huawei que também emergiram hoje) faz crer que esse será um ano de fratura no mundo.

Claro que não é feito só do presidente Trump. O Partido Democrata desfila com as mesmas cores. Em lugar de aplaudir a democracia, quando os países não elegem candidato aprovado (quando não nomeado diretamente) pelos diplomatas norte-americanos (seja Allende ou Maduro), os Democratas já deixaram cair a máscara e mostram o que realmente são: imperialistas na Nova Guerra Fria. Saíram do armário. Assumiram o que são, sinceramente, empenhadamente: querem fazer da Venezuela um neo-Chile-de-Pinochet. Trump não está sozinho no apoio à Arábia Saudita e aos seus terroristas wahabistas, nas palavras de Lyndon Johnson “filhos da puta, mas nossos filhos da puta”.

E a esquerda, em tudo isso?!

Comecei o artigo com essa pergunta. É espantoso que só partidos de direita – Alternativa para a Alemanha (al. AFD), ou os nacionalistas franceses de Marine le Pen e de outros países – façam hoje oposição à militarização da OTAN e busquem reativar o comércio e laços econômicos em geral com toda a Eurásia.

O fim do imperialismo monetário norte-americano, sobre o qual escrevi pela primeira vez em 1972 em Super Imperialism, surpreende até mesmo um observador bem informado como eu. Requerem-se níveis colossais de arrogância, de visão curta e total desconsideração à lei, para acelerar o declínio norte-americano: isso tudo, precisamente, é o que só neoconservadores completamente alucinados como John Bolton, Elliot Abrams e Mike Pompeo podem fornecer a Donald Trump.*******



[1] Sobre isso, ver, interessante “De volta ao Grande Jogo: vingança das potências terrestres”, 30/8/2019, Pepe Escobar, Consortium Newsvol. 24, n. 242, traduzido no Blog do Alok [NTs].
[2] Referência a um instrumento musical (um órgão), e metáfora para descrever a grande operação da CIA para ‘manipular’ longa série de figuras muito conhecidas na sociedade dos EUA nos anos 60s. A expressão apareceu na revista Ramparts. Um funcionário da CIA é citado, vangloriando-se de ser capaz de “tocar, como num grande órgão” qualquer hino de propaganda anticomunista. O órgão era chamado "Todo-poderoso Wurlitzer”. A matéria não poupava ninguém, todos denunciados como ‘braços’ da CIA: emigrados, líderes trabalhistas, artistas, estudantes, mulheres, negros e jornalistas e foi um dos maiores desastres que a CIA enfrentou em toda sua história. O autor oferece análise reveladora da sociedade da Guerra Fria nos EUA, importante ainda hoje [NTs, com informações de Amazon, na página de divulgação do livro The Mighty Wurlitzer: How the CIA Played America, 2009].
[3] Gíria para “Tio Sam”, quando se aplica à Receita Federal dos EUA. Lit. “Tio Chupador” [NTs, com informação de Urban Dictionary]
[5] Patricia Laya, Ethan Bronner and Tim Ross, “Maduro Stymied in Bid to Pull $1.2 Billion of Gold From U.K.,”Bloomberg, 25/1/2019. Prevendo esse tipo de chantagem, o presidente Chávez já em 2011 providenciou para que 160 toneladas do ouro venezuelano fossem repatriadas para Caracas, vindas dos EUA e Europa.
[6] Ibid.
[8] Constanze Stelzenmüller, “America’s policy on Europe takes a nationalist turn,” Financial Times, 31/1/2019.