sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Quem tem o direito de falar?

Quem tem o direito de falar? - 25/09/2015 - Vladimir Safatle - Colunistas - Folha de S.Paulo












Quem tem o direito de falar?






A política não é uma questão apenas de circulação de bens e riquezas. Ou
seja, ela não se funda simplesmente em uma decisão a respeito de como
as riquezas e os bens devem circular, como eles devem ser distribuídos.





Embora essa seja uma questão central que mobiliza todos nós, ela não é
tudo, nem é razão suficiente de todos os fenômenos internos ao campo que
nomeamos "política". Na verdade, a política é também uma questão de
circulação de afetos, da maneira com que eles irão criar vínculos
sociais, afetando os que fazem parte destes vínculos.





A maneira com que somos afetados define o que somos e o que não somos
capazes de ver, o que somos e não somos capazes de sentir e perceber.
Definido o que vejo, sinto e percebo, define-se o campo das minhas
ações, a maneira com que julgarei, o que faz parte e o que está excluído
do meu mundo.





Percebam, por exemplo, como um dos maiores feitos políticos de 2015 foi a
circulação de uma mera foto, a foto do menino sírio morto em um
naufrágio no Mar Mediterrâneo.





Nesse sentido, foi muito interessante pesquisar as reações de certos
europeus que invadiram sites de notícias de seu continente com posts e
comentários. Uma quantidade impressionante deles reclamava daqueles
jornais que decidiram publicar a foto. Por trás de sofismas primários,
eles diziam basicamente a mesma coisa: "parem de nos mostrar o que não
queremos ver", "isto irá quebrar a força de nosso discurso".





Pois eles sabiam que seu fascismo ordinário cresce à condição de
administrar uma certa zona de invisibilidade. É necessário que certos
afetos não circulem, que a humanização bruta produzida pela morte
estúpida de um refugiado não nos afete. Todo fascismo ordinário é
baseado em uma desafecção.





Toda verdadeira luta política é baseada em uma mudança nos circuitos
hegemônicos de afetos. Prova disso foi o fato de tal foto produzir o que
vários discursos até então não haviam conseguido: a suspensão
temporária da política criminosa de indiferença em relação à sorte dos
refugiados.





Mas essa quebra da invisibilidade também se dá de outras formas. De
fato, sabemos como faz parte das dinâmicas do poder decidir qual
sofrimento é visível e qual é invisível. Mas, para tanto, devemos antes
decidir sobre quem fala e quem não fala, qual fala ouvirei e qual fala
representará, para mim, apenas alguma forma de ressentimento.





Há várias maneiras de silêncio. A mais comum é simplesmente calar quem
não tem direito à voz. Isso é o que nos lembram todos aqueles que se
engajaram na luta por grupos sociais vulneráveis e objetos de violência
contínua (negros, homossexuais, mulheres, travestis, palestinos, entre
tantos outros).





Mas há ainda outra forma de silêncio. Ela consiste em limitar sua fala.
Assim, um será a voz dos negros e pobres, já que o enunciador é negro e
pobre. O outro será a voz das mulheres e lésbicas, já que o enunciador é
mulher e lésbica. A princípio, isto pode parecer um ato de dar voz aos
excluídos e subalternos, fazendo com que negros falem sobre os problemas
dos negros, mulheres falem sobre os problemas das mulheres, e por aí
vai.





No entanto, essa é apenas uma forma astuta de silêncio, e deveríamos
estar mais atentos a tal estratégia de silenciamento identitário. Ao
final, ela quer nos levar a acreditar que negros devem apenas falar dos
problemas dos negros, que mulheres devem apenas falar dos problemas das
mulheres.





Pensar a política como circuito de afetos significa compreender que
sujeitos políticos são criados quando conseguem mudar a forma como o
espaço comum é afetado.





Posso dar visibilidade a sofrimentos que antes não circulavam, mas
quando aceito limitar minha fala pela identidade que supostamente
represento, não mudarei a forma de circulação de afetos, pois não
conseguirei implicar quem não partilha minha identidade na narrativa do
meu sofrimento. Minha produção de afecções continuará circulando em
regime restrito, mesmo que agora codificada como região setorizada do
espaço comum.





Ser um sujeito político é conseguir enunciar proposições que implicam
todo mundo, que podem implicar qualquer um, ou seja, que se dirigem a
esta dimensão do "qualquer um" que faz parte de cada um de nós. É quando
nos colocamos na posição de qualquer um que temos mais força de
desestabilização de circuitos hegemônicos de afetos.





O verdadeiro medo do poder é que você se coloque na posição de qualquer um.



quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Não é golpe, mas parece

Não é golpe, mas parece - 23/09/2015 - Marcelo Coelho - Colunistas - Folha de S.Paulo



Não é golpe, mas parece

O impeachment, leio em toda parte, é um instrumento legítimo,
democrático e previsto na Constituição. Certo que pode ser traumático e
excepcional, mas...


Mas, dizem todos, dane-se. Vamos em frente.

"Traumático" tornou-se apenas um adjetivo vazio, que se emprega sem
pensar. Estamos vivendo o verdadeiro oba-oba do impeachment, sem nenhuma
preocupação com o que pode acontecer no dia seguinte.





Pouquíssima coisa sustenta Dilma Rousseff na Presidência, mas um fator a
ser levado em conta são as possíveis reações a seu afastamento. Ainda
que minoritária, não é feita de gatos-pingados a parcela da sociedade
pronta a classificar como golpe a derrubada de Dilma.





Conflitos em torno desse tema, de uma radicalidade já visível e que só
se compara à vivida em 1964 e no suicídio de Getúlio, não estão
afastados do horizonte. Pode-se pensar que o impeachment seria a solução
da atual crise política e econômica; há motivos para acreditar, também,
que venha a agravar ainda mais o quadro.





Suponha-se, entretanto, que não. Que os petistas e seus simpatizantes
simplesmente se conformem com o que aconteceu, não tendo mais moral para
protestar.





Os próximos anos continuarão sendo de cortes e desemprego. Quem vier a
assumir o poder terá de pagar o preço de todo o desgaste atualmente
concentrado em Dilma.





Se tudo correr como preveem os otimistas do impeachment, a crise estará
mais ou menos debelada, num clima de maior consenso do que o possível
hoje em dia, aí por 2017 ou 2018.





Talvez a essa altura o PT esteja completamente esfacelado pelos
julgamentos da Lava Jato; mas também é possível que a impopularidade
geral, que agora concentra, se disperse em direção aos novos personagens
no poder .





O quanto de Vaccari, Edinho e outros personagens será lembrado daqui a
três anos? Não sabemos –e não dá para descartar a possibilidade de um
retorno de Lula, como o Grande Injustiçado do processo.





São apenas hipóteses, talvez improváveis. O que me preocupa é que a
maioria dos defensores do impeachment nem mesmo se dispõe a pensar nisso
–cabendo a alguns poucos oposicionistas, como Geraldo Alckmin, o
difícil papel de encarnar a prudência nessa situação.





O impeachment, ora essa, é democrático. Sim, é um ritual previsto na Constituição. Mas vamos com calma.





Em tese, qualquer presidente impopular, se deixar de ter os votos necessários no Congresso, pode ser afastado do cargo.





De modo que, quanto mais automático se faz o uso dessa arma, mais o
mandato de um presidente, qualquer que seja, se torna refém da maioria
dos congressistas.





É como se, em última análise, nenhum presidente pudesse mais governar
com minoria no Legislativo. O equilíbrio entre os poderes se desfaz.





O preço, em termos de democracia, não é pequeno. Um impeachment
significa colocar no poder alguém que não foi eleito expressamente para
esse cargo. Certo, entra o vice. Mas sabemos que quem elegeu o
presidente mal e mal cogitou o segundo nome da chapa. Você se lembra de
quem é o vice do Alckmin?





Acredito que o impeachment precisa de fato ser tomado como aquilo que é:
algo extremamente raro, excepcional, e que pressuponha, como o nome
indica, a avaliação de que o presidente está absolutamente impedido de
exercer o cargo.





Tudo é questão de grau. Mas seria necessário que a pessoa do presidente,
sua capacitação psicológica e ética para o cargo, estivesse
indubitavelmente sob o foco exclusivo das preocupações.





O foco, hoje em dia, me parece muito mais ser o PT e Lula do que Dilma
Rousseff. Que ela se beneficiou indiretamente do esquema na Petrobras,
acho bastante claro. Mas é curioso que o boneco de Lula esteja vestido
de presidiário, e o de Dilma não.





Trata-se de uma disputa política, claro, mas na qual a figura de Dilma
funciona como o mesmo "poste", agora para a oposição, que foi para o
lulismo nestes últimos anos.





Quanto mais forçado for o argumento contra ela –o das pedaladas fiscais
me parece pouco eloquente–, mais a imagem de golpe se intensifica. Ainda
mais quando são os derrotados em 2014 que fazem a festa: como não ver a
clássica figura do tapetão, do "terceiro turno", nessa febre?





Cada um pode achar, naturalmente, o que quiser. Mas a política não é
jogo de um lance só. Quando não se preveem os desdobramentos futuros de
uma iniciativa, a irresponsabilidade toma conta.



 "Não posso aceitar o pressuposto de que abafei crimes. A leviandade da imprensa e o golpismo sem armas da oposição estão criando um clima de fascismo e terror insuportável. Não para mim, que tenho até instrumentos psicológicos para resistir. Quem pode não suportar é o país" (FHC, em entrevista em "O Globo" no dia 23 de maio de 2001).

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

O triunfo do descaramento

O triunfo do descaramento. 

Por Paulo Nogueira





Postado em 16 set 2015
Sem noção
A reação do pseudo-historiador Marco Antônio Villa ao processo de Lula desafia a imaginação.


Villa há tempos calunia Lula com frequência maníaca.



Lula, segundo Villa, é ladrão, bandido, chefe do Petrolão e outras barbaridades.


Com notável atraso, mas ainda assim com total acerto, Lula decidiu enfim se defender na Justiça.


Quem não se defende quando injustiçado, como ensinou o jurista alemão
do sécula 19 Rudolf von Ihering, merece rastejar como um verme.


Lula tem seguido os ensinamentos consagrados de Ihering.


Villa tem sido predador, agressor, canalha mesmo ao tratar de Lula.


Mas, diante da notícia do processo tardio, ele se colocou na posição de vítima, de coitadinho, de perseguido.


E veste a fantasia de mártir.


Villa diz que não vai se calar, que não vai se deixar intimidar.


Ora, Lula não falou em calá-lo. Com o processo, Lula quer apenas de proteger das infâmias ininterruptas de Villa.


Villa pode dizer o que quiser, de Lula ou de quem quer que seja. Mas
tem que ter provas que vão além de sua garganta maledicente.


Nos Estados Unidos, há muito Villa estaria em apuros sérios.


Ao contrário da brasileira, a Justiça americana exige provas para acusadores.


E se não as há as indenizações são altíssimas, exatamente para
desestimular o tipo de coisa que Villa e tantos outros fazem sem a menor
cerimônia.


Uma das coisas que explicam a baixa qualidade do jornalismo
brasileiro é a complacência da Justiça diante de assassinatos de
reputação sem provas.


Você se sente desestimulado de buscar reparação.


Mas aí também vem as lições de Ihering: a Justiça só melhora quando a
sociedade se movimenta e cobra dela que impeça abusos como os de Villa.


É dentro dessa lógica que Ihering dizia que o atingido não tem apenas
o direito de procurar a Justiça – mas o dever perante a sociedade.


Porque quando você age outras pessoas podem se beneficiar – eventuais futuras vítimas de predadores das palavras.


Villa está bravateando.


Mas, com certeza, já está tratando de achar um bom advogado. Também
vai pensar duas vezes antes de produzir o veneno que sai dele em doses
copiosas.


Outros Villas estarão também menos efusivos em suas investidas.


Sociedades avançadas não toleram pessoas como Villa, e ele se comporta como se o Brasil fosse uma República das Bananas.


Villa tem que ser protegido de Villa, de uma certa forma.


O que ele faria se alguém o acusasse de criminoso, ladrão, bandido, chefe de quadrilha?


Faria exatamente o que Lula está fazendo.


Por tudo isso, sua reação ao processo é o triunfo do descaro e da falta de noção.