domingo, 26 de julho de 2015

Nossas dívidas que enriquecem nossa elite

Nossas dívidas que enriquecem nossa elite




Nossas dívidas que enriquecem nossa elite

Juremir Machado da Silva

Falei aqui, ontem, de dívida pública.


Faltou espaço para sugerir o livro de Maria Lucia Fattorelli,
Auditória cidadã da dívida pública –– experiências e método. É um
assunto palpitante. O Brasil não quer saber de auditoria da sua dívida.
Por que será? Na sua entrevista à revista CartaCapital, Maria Lucia deu
uma pista interessante: “Quando o Plano Real começou, nossa dívida
estava em quase 80 bilhões de reais. Hoje ela está em mais de três
trilhões de reais. Mais de 90% da divida é de juros sobre juros”. O mito
prefere enfatizar que se existe dívida é porque o Estado gasta mal. Até
gasta. Mas o grosso da dívida vem da sua lógica de retroalimentação.


As coisas começaram mal por aqui desde a chegada de Pedro Álvares
Cabral. Pero Vaz de Caminha pediu ao Rei, na sua famosa carta, um favor
para o seu genro. Essa prática nunca mais parou. A nossa dívida externa
começou em 1823 com o chamado “empréstimo português”. Pegamos uma grana
com a Inglaterra para pagar uma indenização a Portugal pela nossa
independência. Em 1906, pelo Convênio de Taubaté, um acordo feito entre
os governadores de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, o governo
federal comprometeu-se a comprar os excedentes da produção de café com
base num preço mínimo. Para custear esse benesse aos barões da
cafeicultura, pegou dinheiro no exterior.


Nunca mais paramos de ajudar nossos pobres mais ricos.


Eles precisam tanto. Não sabem viver por conta própria.


Necessitam de suor alheio.


Maria Lucia Fattorelli indica a razão da rejeição a uma auditoria: “A
gente mostra, simplesmente, a parte da dívida que não existe, que é
nula, que é fraude”. Um exemplo: “Só existe dívida se há uma entrega.
Aconteceu isso na Grécia. Mecanismos financeiros, coisas que não tinham
nada ver com dívida, tudo foi empurrado para as estatísticas da dívida.
Tudo quanto é derivativo, tudo quanto é garantia do Estado, os tais
CDS”. Grande parte da dívida é subproduto da própria dívida: juros,
seguros e o escambau. Esse aí também? Claro. A constituição da dívida é
uma mágica que enriquece o mágico.


Se há mágico, há quem revele o truque. Nem Lula escapa da análise de
Fattorelli: “O que a gente critica no governo Lula é que, para pagar a
dívida externa em 2005, na época de 15 bilhões de dólares, ele emitiu
reais. Ele emitiu dívida interna em reais. A dívida com o FMI era 4% ao
ano de juros. A dívida interna que foi emitida na época estava em média
19,13% de juros ao ano. Houve uma troca de uma dívida de 4% ao ano para
uma de 19% ao ano. Foi uma operação que provocou danos financeiros ao
País. E a nossa dívida externa com o FMI não era uma dívida elevada,
correspondia a menos de 2% da dívida total. E por que ele pagou uma
dívida externa para o FMI que tinha juros baixo? Porque, no inconsciente
coletivo, divida externa é com o FMI”.


Aí morreu o Neves. Não confundir com o Aécio.


Por que entrevistas assim não saem na Veja, que tem uma tiragem
maior? Não consigo saber. Fattorelli tem enfatizado que o custo do
bolsa-família é uma ninharia perto do bolsa-rico, os mecanismos de
transferência de renda pelo Tesouro Nacional, pelas taxas de juro do
Copom, que não passam pelo Congresso Nacional, e pelo BNDES.


O BNDES é a mãe dos ricos: pega dinheiro caro e emprestado barato.


Só para quem, tendo muito, precisa de crédito camarada.


A sorte dos ricos está melhorando.


Agora eles já recebem até moradia de graça.


Na cadeia.

sábado, 25 de julho de 2015

Eliane Brum: Por quem rosna o Brasil

Eliane Brum: Por quem rosna o Brasil | Opinião | EL PAÍS Brasil



Por quem rosna o Brasil

Diante da ruína da autoimagem no espelho, o país parece preferir máscaras autoritárias a enfrentar a brutalidade da sua nudez


O que é o Brasil,
agora que não pode contar nem com os clichês? Como uma pessoa, que no
território de turbulências que é uma vida vai construindo sentidos e
ilusões sobre si mesma, um país também se sustenta a partir de
imaginários sobre uma identidade nacional. Por aqui acreditamos por
gerações que éramos o país do futebol e do samba, e que os brasileiros
eram um povo cordial. Clichês, assim como imaginários, não são verdades,
mas construções. Impõem-se como resultado de conflitos, hegemonias e
apagamentos. E parece que estes, que por tanto tempo alimentaram essa
ideia dos brasileiros sobre si mesmos e sobre o Brasil, desmancharam-se.
O Brasil hoje é uma criatura que não se reconhece no espelho de sua
imagem simbólica.


Essa pode ser uma das explicações possíveis para compreender o
esgarçamento das relações, a expressão sem pudor dos tantos ódios e, em
especial, o atalho preferido tanto dos fracos quanto dos oportunistas: o
autoritarismo. Esvaziado de ilusões e de formas, aquele que precisa
construir um rosto tem medo. Em vez de disputar democraticamente, o que
dá trabalho e envolve perdas, prefere o caminho preguiçoso da adesão. E
adere àquele que grita, saliva, vocifera, confundindo oportunismo com
força, berro com verdade.


O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), relacionado na delação premiada da Operação Lava Jato ao recebimento de 5 milhões de dólares em propina, teria dito a aliados: “Vou explodir o governo”.
Tanto ele quanto o apresentador de programa de TV que brada que tem de
botar “menor” na cadeia, quando não no paredão, assim como o pastor que
brada que homossexualidade é doença são partes do mesmo fenômeno. São
muitos brados, mas nenhum deles retumba a não ser como flatulência.


Num momento de esfacelamento da imagem, o que vendem os falsos
líderes, estes que, sem autoridade, só podem contar com o autoritarismo?
Como os camelôs que aparecem com os guarda-chuvas tão logo cai o
primeiro pingo de chuva, eles oferecem, aos gritos, máscaras ordinárias
para encobrir o rosto perturbador. Máscaras que não servem a um projeto
coletivo, mas ao projeto pessoal, de poder e de enriquecimento, de cada
um dos vendilhões. Para quem tem medo, porém, qualquer máscara é melhor
do que uma face nua. E hoje, no Brasil, somos todos reis bastante nus,
dispostos a linchar o primeiro que nos der a notícia.



Os linchamentos dos corpos nas ruas e o
strip-tease das almas na internet desmancharam as últimas ilusões sobre o
brasileiro cordial
Ainda demoraremos a saber o quanto nos custou a perda tanto dos
clichês quanto dos imaginários, mas não a lamento. Se os clichês nos
sustentaram, também nos assombraram com suas simplificações ou mesmo
falsificações. A ideia do brasileiro como um povo cordial nunca resistiu
à realidade histórica de uma nação fundada na eliminação do outro, os
indígenas e depois os negros, lógica que persiste até hoje. Me refiro
não ao “homem cordial”, no sentido dado pelo historiador Sérgio Buarque
de Holanda (1902-1982) em seu seminal Raízes do Brasil, mas no
sentido que adquiriu no senso comum, o do povo afetuoso, informal e
hospitaleiro que encantava os visitantes estrangeiros que por aqui
aportavam. O Brasil que, diante da desigualdade brutal, supostamente
respondia com uma alegria irredutível, ainda que bastasse prestar
atenção na letra dos sambas para perceber que a nossa era uma alegria
triste. Ou uma tristeza que ria de si mesma.


O futebol continua a falar de nós em profundezas, basta escutar a
largura do silêncio das bolas dos alemães estourando na nossa rede nos 7X1
da Copa das Copas, assim como o discurso sem lastro, a não ser na
corrupção, dos dirigentes da CBF (Confederação Brasileira de Futebol).
Mas, se já não somos o país do futebol, de que futebol somos o país?


Tampouco lamento o fato de que “mulata” finalmente começa a ser
reconhecido como um termo racista e não mais como um “produto de
exportação”. E lamento menos ainda que a suposta existência de uma
“democracia racial” no Brasil só seja defendida ainda por gente sem
nenhum senso. Os linchamentos dos corpos nas ruas do país e o
strip-tease das almas nas redes sociais desmancharam a derradeira ilusão
da imagem que importávamos para nosso espelho. Quando tudo o mais
faltava, ainda restavam os clichês para grudar em nosso rosto. Acabou.
Com tanto silicone nos peitos, nem o país da bunda somos mais.




Quando os clichês, depois de tanto girar em falso, tornam-se
obsoletos, ainda se pode contar com o consumo de todas as outras
mercadorias. Mas, quando o esfacelamento dos imaginários se soma ao
esfacelamento das condições materiais da vida, o discurso autoritário e a
adesão a ele tornam-se um atalho sedutor. É nisso que muitos apostam
neste momento de esquina do Brasil.


É também isso que explica tanto um Eduardo Cunha na Câmara quanto
pastores evangélicos que pregam o ódio para milhões de fiéis e
apresentadores de TV que estimulam a violência enquanto fingem
denunciá-la. Estes personagens paradigmáticos do Brasil atual formam as
três faces de uma mesma mediocridade barulhenta e perigosa, que se
expressa por bravatas diante das câmeras. Numa crise que é também de
identidade, forjam realidades que possam servir ao seu projeto de poder e
de enriquecimento para abastecer a manada. Esta, por sua vez, prefere
qualquer falsificação ao vazio.



A invenção de inimigos para a população culpar virou um negócio lucrativo num país com a autoimagem fraturada
Para estes personagens tão em evidência, quanto mais medo, melhor.
Inventar inimigos para a população culpar tem se mostrado um grande
negócio nesse momento do país. Se as pessoas sentem-se acuadas por uma
violência de causas complexas, por que não dar a elas um culpado fácil
de odiar, como “menores” violentos, os pretos e pobres de sempre, e,
assim, abrir espaço para a construção de presídios ou unidades de
internação? Se os “empreendimentos” comprovadamente não representam
redução de criminalidade, certamente rendem muito dinheiro para aqueles
que vão construí-los e também para aqueles que vão fazer a engrenagem se
mover para lugar nenhum. Depois, o passo seguinte pode ser aumentar a
pressão sobre o debate da privatização do sistema prisional, que para
ser lucrativo precisa do crescimento do número já apavorante de
encarcerados.


Se há tantos que se sentem humilhados e diminuídos por uma vida de
gado, porque não convencê-los de que são melhores que os outros pelo
menos em algum quesito? Que tal dizer a eles que são superiores porque
têm a família “certa”, aquela “formada por um homem e por uma mulher”? E
então dar a esses fiéis seguidores pelo menos um motivo para pagar o
dízimo alegremente, distraídos por um instante da degradação do seu
cotidiano? Fabricar “cidadãos de bem” numa tábua de discriminações e
preconceitos tem se mostrado uma fórmula de sucesso no mercado da fé.


A invenção de inimigos dá lucro e mantém tudo como está, porque, para
os profetas do ódio, o Brasil está ótimo e rendendo dinheiro como
nunca. Ou que emprego teriam estes apresentadores, se não tiverem mais
corpos mortos para ofertar no altar da TV? Ou que lucro teria um certo
tipo de “religioso” que criou seu próprio mandamento – “odeie o próximo
para enriquecer o pastor”? Ou que voto teria um deputado da estirpe de
Eduardo Cunha se os eleitores exigissem um projeto de fato, para o país e
não para os seus pares? Para estes, que estimulam o ódio e
comercializam o medo, o Brasil nunca esteve tão bem. E é preciso que
continue exatamente assim.



A ilusão mais sedutora do governo Lula era a de criar um Brasil igualitário sem mexer nos privilégios dos mais ricos
Se o governo Lula, na história recente do país, fundou-se sobre um
pacto de conciliações, para compreendê-lo é necessário também
decodificá-lo como um conciliador de imaginários. Lula, o líder
carismático, foi muito eficiente ao ser ao mesmo tempo o novo – “o
operário que chegou ao poder” num país historicamente governado pelas
elites – e o velho –, o governante “que cuida do povo como um pai”. A
centralização na imagem do líder esvazia de força e de significados o
coletivo. Do mesmo modo, a relação entre pais e filhos alçada à política
atrasa a formação do cidadão autônomo, que fiscaliza o governo e
concede ao governante, pelo voto, um poder temporário.


Mas a ideia mais sedutora do governo Lula, em especial no segundo
mandato, era a possibilidade de incluir no mundo do consumo milhões de
brasileiros e reduzir a miséria de outros milhões sem tocar no
privilégio dos mais ricos. Este era um encantamento poderoso, que
funcionou enquanto o Brasil cresceu, mas que, qualquer que fosse o
desempenho da economia, só poderia funcionar por um tempo limitado num
país com acertos históricos para fazer e uma desigualdade abissal.
Enquanto o encanto não se quebrou, muitos acreditaram que o eterno país
do futuro finalmente tinha chegado ao futuro. O Brasil, que valoriza
tanto o olhar estrangeiro (do estrangeiro dos países ricos, bem
entendido), leu-se como notícia boa lá fora. A Copa do Mundo aqui foi sonhada para ser a apoteose-síntese deste Brasil: enfim, o encontro entre identidade e destino.


Não foi. E não foi muito antes dos 7X1. Essa frágil construção
simbólica, que desempenhou um papel muito maior do que pode parecer na
autoimagem do Brasil e nas relações cotidianas da população na história
recente, exibiu vários sinais de que se quebrava aqui e ali, vazando por
muitos lados. Sua ruína se tornou explícita nas manifestações de junho
de 2013, protestos identificados com a rebelião e com a esquerda, apesar
da multiplicidade contraditória das bandeiras. Quem acha que 2013 foi
apenas um soluço, não entendeu o impacto profundo sobre o país. A partir
dali todos os imaginários sobre o Brasil perderam a validade. Assim
como os clichês. E a imagem no espelho se revelou demasiado nua. E
bastante crua.



O Brasil do futuro não chegará ao presente sem fazer seu acerto com o passado
O Brasil do futuro não chegará ao presente sem fazer seu acerto com o
passado. Entre tantas realidades simultâneas, este é o país que lincha
pessoas; que maltrata imigrantes africanos, haitianos e bolivianos; que
assassina parte da juventude negra sem que a maioria se importe; que
massacra povos indígenas para liberar suas terras, preferindo mantê-los
como gravuras num livro de história a conviver com eles; em que as
pessoas rosnam umas para as outras nas ruas, nos balcões das padarias,
nas repartições públicas; em que os discursos de ódio se impõem nas
redes sociais sobre todos os outros; em que proclamar a própria
ignorância é motivo de orgulho na internet; em que a ausência de
“catástrofes naturais”, sempre vista como uma espécie de “bênção divina”
para um povo eleito, já deixou de ser um fato há muito; em que as
paisagens “paradisíacas” são borradas pelo inferno da contaminação
ambiental e a Amazônia, “pulmão do mundo”, vai virando soja, gado e
favela – quando não hidrelétricas como Belo Monte, Jirau e Santo Antônio.


Este é também o país em que aqueles que bradam contra a corrupção dos
escalões mais altos cometem cotidianamente seus pequenos atos de
corrupção sempre que têm oportunidade. A ideia de que o Congresso
democraticamente eleito, formado por um número considerável de
oportunistas e corruptos, não corresponde ao conjunto da população
brasileira é talvez a maior de todas as ilusões. É duro admitir, mas
Eduardo Cunha é nosso.


Neste Brasil, a presidente Dilma Rousseff (PT), acuada por ameaças de impeachment
mesmo quando (ainda) não há elementos para isso, é um personagem
trágico. Vendida por Lula e pelos marqueteiros na primeira eleição, a de
2010, como “mãe dos pobres”, ela nunca foi capaz de vestir com
desenvoltura esse figurino populista, até por sinceridade. Quando tenta
invocar simbologias em seus discursos, torna-se motivo de piada. O
slogan de seu segundo mandato – “Brasil, Pátria Educadora”
– não encontra nenhum lastro na realidade, virando mais uma denúncia do
colapso da educação pública do que o movimento para recuperá-la. Parece
que os marqueteiros tampouco entendem o Brasil deste momento e seguem
acreditando que basta criar imagens para que elas se tornem imaginários.
O próprio Lula parece ter perdido sua famosa intuição sobre o Brasil e
sobre os brasileiros. Em suas manifestações, Lula soa perdido,
intérprete confuso de um Brasil que já não existe.



Os protagonistas das manifestações de 2015 gritam também para manter seus privilégios
Agora que já não contamos com os velhos clichês e imaginários, a
crueza de nossa imagem no espelho nos assusta. Diante dela e de uma
presidente com a autoridade corroída, cresce a sedução dos
autoritarismos. Nada mais fácil do que culpar o outro quando não
gostamos do que vemos em nós. Em vez de encarar o próprio rosto,
cobre-se a imagem perturbadora com alvos a serem destruídos. Aqueles que
encontram nesta adesão aos discursos autoritários uma possibilidade de
ascensão, esquecem-se da lição mais básica, a de que não há controle
quando se aposta no pior. Só há chance se enfrentarmos conflitos e
contradições com a cara que temos. É com esses Brasis que precisamos nos
haver. É essa imagem múltipla que temos de encarar no espelho se
quisermos construir uma outra, menos brutal.


O que o governo Lula adiou, ao escolher a conciliação em vez da
ruptura com os setores conservadores, está na mesa. Há várias forças se
movendo para encontrar uma nova acomodação, que evite o enfrentamento
das contradições e das desigualdades. É pelas bandeiras da reacomodação
que as ruas foram ocupadas em 2015 pelo que alguns têm chamado de “nova
direita”. Esta, se adere à novidade da organização pelas redes sociais e
aparentemente se coloca fora dos esquemas tradicionais da política e
dos partidos, talvez seja menos “nova” do que possa parecer nas questões
de fundo.


A próxima manifestação, marcada para 16 de agosto, é acompanhada com
atenção pelos políticos e partidos tradicionais que conspiram pelo impeachment
da presidente eleita. Os manifestantes de 2015 gritam contra a
corrupção, mas basta escutá-los com atenção para compreender que gritam
para deixar tudo como está. E, se possível, voltar inclusive atrás, já
que uma parte significativa parece ter se sentido lesada por políticas
como a das cotas raciais e outros tímidos avanços na direção da
reparação e da equidade. A redução da maioridade penal, assim como
outros projetos conservadores em curso, são também exemplos de uma
resposta autoritária – e inócua – para o esgarçamento crescente das
relações sociais e para a violência.


Há muito barulho sendo produzido hoje, como o próprio discurso de Eduardo Cunha em cadeia nacional
(17/7), para desviar o foco do grande nó a ser desatado: não haverá
justiça social e igualdade no Brasil sem tocar nos privilégios. Muita
gente bacana ainda segue acreditando no conto de fadas de que é possível
alcançar a paz sem perder nada. Não é. Quem quiser de fato reduzir a
violência e a corrupção que atravessa o Brasil e os brasileiros vai ter
de pensar sobre o quanto está disposto a perder para estar com o outro. É
este o ponto de interrogação no espelho. É por isso que o som ameaçador
dos dentes sendo afiados cresce. E cresce também onde menos se espera.


Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum

Lecio Morais – Reinventando a história: o mito da estabilidade no governo FHC

Lecio Morais – Reinventando a história: o mito da estabilidade no governo FHC



Lecio Morais – Reinventando a história: o mito da estabilidade no governo FHC

Efeméride convocada no Senado na semana passada comemorou o
aniversário do Plano Real. Um importante plano que debelou a
hiperinflação, mas que abriu também caminho para implantação plena às
chamadas políticas neoliberais de abertura e desregulamentação.
Entretanto, o Plano não trouxe estabilidade monetária e financeira para o
país, como muitas vezes se divulga. O Plano trouxe, juntamente com as
políticas neoliberais, elevados custos relativos à estagnação econômica,
bem como os relativos ao endividamento público.


Na homenagem do Senado os oradores tentaram sucessivamente vincular o
sucesso do Real ao próprio governo FHC e suas políticas neoliberais.
Nessa tentativa, os oito anos de FHC, no pós-Real foi “reinventado” como
um período de estabilidade monetária e financeira para o país.

Vejamos como o exame das variáveis de taxa de inflação, taxa cambial e
taxa de juros mostram como os governos FHC não trouxeram nenhuma
estabilidade à economia, nem mesmo a monetária.


Restabelecendo a história: a continuidade da instabilidade monetária pós-Real


Comecemos pela suposta estabilidade monetária. O que se alega é que o
Plano Real, além de eliminar a hiperinflação, criou uma moeda de valor
estável, o que já se revelou nos oito anos dos governos FHC.

Primeiro vejamos como o Plano Real funcionou. A ideia do Plano na
verdade nada teve de original: depois de alinhar os preços com a URV
(unidade referencial de valor, essa sim uma boa ideia), apenas atrelou a
nova moeda, o real, ao dólar, praticamente ao par (um por um). Com isso
houve uma súbita valorização da nova moeda, tornando os bens importados
ainda mais baratos.


O custo da manobra, no entanto, foi a imediata supervalorização da
moeda, acompanhada por uma elevação das taxa de juros a níveis
estratosféricos (na virada de 1994/95 chegou a 60% ao ano) para atrair
dólares.


No entanto, a taxa de inflação pós-real se manteve longe da
estabilidade. Em 1995, a taxa foi de 22%, e continuou variando 9% ao
ano, em média, até 2002. No primeiro governo, a inflação já tinha
acumulado 43%. Somando os dois governos, o acumulado chegou a 100%. E
pior, ao acabar o período, em 2002, a taxa tinha voltado a uma inflação
de dois dígitos, marcando 12,5% e subindo. Só para comparar, o acumulado
de oito anos de Lula foi de 56% e os quatro de Dilma chegaram a 27%.


Essas elevadas taxas de inflação prejudicaram a estabilidade cambial,
desafiando até a incrível taxa de juros real adotada, que terminou
gerando apenas riqueza financeira para os mais riscos e reduzindo o
investimento produtivo.


Restabelecendo a história: instabilidade e colapso cambial


Analisemos agora o comportamento da taxa de câmbio. Ela afeta ao
mesmo tempo a moeda, o crédito e o nível de atividade econômica. E, nas
economias periféricas, é uma variável que é capaz de levar um país à
bancarrota.

Com o real atrelado ao dólar, a taxa cambial iniciou 1995 em R$ 0,84 o
dólar, uma taxa muito valorizada, como já vimos, para deter a
hiperinflação.


Mas junto com os preços das importações, também caiu a produção
interna e abriu-se um déficit crescente nas contas externas. Essas
contradições do Plano Real impediram a manutenção estável do câmbio, que
foi sendo desvalorizado continuamente até já ter perdido 43% de seu
valor até 1998. Como a taxa inflacionária manteve-se maior que a
desvalorização do câmbio, o governo acabou por não conseguir controlar
nem o câmbio, nem o déficit externo e nem o fluxo especulativo de
dólares atraído pelos juros estratosféricos. E sobreveio a debacle.


Em janeiro de 1999, o Brasil quebrou pela primeira vez na mão de FHC.
As reservas em dólares se evaporaram e o real se desvalorizou, com sua
taxa chegando até quatro reais por dólar.


Sumiram os dólares, ficamos sem crédito externo para manter as
importações, mas as dívidas cresceram. O país só saiu da bancarrota
graças a empréstimos do governo americano e outros apoiados pelo FMI. A
maxidesvalorização em 1999 acabou por atingir 40%. O governo brasileiro e
sua moeda não tinham mais confiança externa. Muito longe já estávamos
de qualquer estabilidade monetária e financeira.


Porém, um novo desastre já estava a caminho. A economia estagnada,
uma moeda nacional com valor instável, sempre com tendência de queda, e
baixo nível de reservas tornaram o Brasil outra vez alvo fácil da
especulação cambial. A partir de maio de 2002, sobreveio novo ataque
especulativo contra o real. E o Brasil quebrou pela segunda vez na mão
de FHC.


De novo, nossa moeda se desvalorizou fortemente, chegando a mais de
três reais o dólar. Ficamos mais uma vez sem dólares e sem crédito
externo. Outra vez o governo FHC e o Banco Central perderam o controle
monetário e cambial. A salvação veio com o FMI: outro financiamento de
emergência foi arranjado, muito maior que o de 1999. Mas dessa vez ele
veio o junto a exigência de monitoramento trimestral, tendo em vista o
descrédito da economia e do governo.


A incrível taxa de juros estratosférica

Por fim temos a variável da taxa de juros. Foi exatamente nos primeiros
anos do Plano Real que nossa economia se consolidou como a campeã
mundial de taxas de juros reais elevadas e perenes. Passamos a ser a
economia bizarramente mais juros-dependente do mundo. Uma rara anomalia
que bem longe está de qualquer definição de estabilidade financeira. A
parte mais pesada da herança deixada ao Brasil pelas políticas
neoliberais de FHC.


As taxa Selic que iniciou 1995 a 60% ao ano, só caiu abaixo de 40% em
1998. E abaixo de 30% ao ano em meados de 1999. Em apenas dois anos os
credores da dívida pública federal dobraram seu investimento, e em
quatro anos o quintuplicaram. O total da dívida pública líquida se
multiplicou durante oito anos, saindo de apenas 37% do PIB, em 1994,
para mais 60% em 2002. Nunca um país viu sua dívida pública subir dessa
forma em tempos de paz.


A conjunção de elevadas taxa reais de juros, instabilidade econômica e
vasta fraude bancária detonou, em 1997, a maior crise bancária do
século 20. Neste ano, três dos dez maiores bancos do país quebraram
(Banco Nacional, Mercantil de Minas e Bamerindus). O que desencadeou
também o maior resgate público de investimentos privados depositados já
visto no Brasil.


Uma realidade bem infeliz


O país entregue ao governo Lula, em 2003, foi um país em situação de
instabilidade cambial crônica, inflação em alta, sem crédito externo e
sem reservas próprias de divisas.

Os números desagradáveis aqui expostos contam uma história bem diferente
da inventada “estabilidade monetária e financeira” trazida pelo Plano
Real e vivida durante os governos FHC. Esses números são facilmente
acessíveis em sites como Ipeadata, Banco Central e IBGE. Não são nem
nunca foram secretos. Qualquer um pode obtê-los.


Transformar essa verdade de oito anos de instabilidade monetária,
colapsos cambiais e bancarrotas nacionais em uma rósea paisagem de
estabilidade parece ir bem mais longe do que uma reinvenção da história,
beira mais a simples fraude.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Prof. Gaspari dá uma aula de manipulação!

Prof. Gaspari dá uma aula de manipulação! | Conversa Afiada



Prof. Gaspari dá
uma aula de manipulação!

Quando não interessa, não vem ao caso !











O Conversa Afiada reproduz aqui afiado artigo de
Sergio Saraiva, extraído do Nassif, sobre aquele que, aqui, é conhecido
como notável historialista (ver no ABC do CAf) dos chapéus (também no ABC):



Aprendendo com os mestres: uma aula de jornalismo, por Sérgio Saraiva


Imperdível, para quem se interessa por jornalismo, o
artigo do professor Elio Gaspari – “A cabeça dos oligarcas”, na Folha de
São Paulo de 22jul2015. O professor Gaspari é o criador do “jornalismo
mediúnico” e, no texto citado, nos dá uma aula sobre um tema
extremamente atual no jornalismo brasileiro: a manipulação da
informação.

por Sergio Saraiva

O
professor inicia apresentando-nos a Operação Lava Jato como uma luta do
bem contra o mal. Ambos, bem e mal, como valores absolutos.


“De
um lado [da Lava Jato], estão servidores a respeito dos quais não há um
fiapo de restrição moral ou mesmo política. São os magistrados e os
procuradores. Do outro lado está o outro lado, para dizer pouco”.

Do
lado do bem, os magistrados e procuradores. O lado do mal, o “outro
lado”, tanto podem estar os réus da Lava Jato como os que criticam seus
excessos, Gaspari não os discrimina. Assim como não apresenta o porquê
de representarem o mal. Deixa para que cada leitor imagine, por sua
conta, algo hediondo de que acusa-los.

Louvores devidos à maestria do mestre.

Gaspari
não coloca entre os “fiapos da restrição moral ou política” que se
poderia fazer aos procuradores e magistrados, o fato de as acusações a
Aécio Neves, ainda que detalhadas e coerentes com outros casos onde o
senador é envolvido, terem sido descartadas, ao mesmo tempo em que o
tesoureiro do PT, João Vaccari, está preso com base na criativa tese de
que as doações legais ao PT eram ilegais. Para não citar o “descuido” na
análise das informações que levaram sua cunhada à prisão por ser
parecida fisionomicamente com a irmã – a esposa de Vaccari.

Não
lhe parece condenável que suspeitas infundadas em relação à, então,
candidata Dilma Rousseff fossem vazadas às vésperas das eleições e
acabassem por ser utilizadas para beneficiar seu adversário, a quem
esses mesmos procuradores teciam elogios nas redes sociais.

Aqui,
Gaspari, parece apoiar-se, nas lições do professor Paulo Henrique
Amorim que nos ensina que, para a manipulação da informação
jornalística, alguns fatos, mesmo que relacionados ao assunto tratado,
“não vêm ao caso”.

Em outro sentido, Gaspari demonstra como dois
opostos podem ser apresentados como estando do mesmo lado. Tal se dá
quando ambos os lados podem ser apresentados como o que se costuma
chamar de “farinhas do mesmo saco”. E habilmente associa o termo “briga
de quadrilhas” ao governo Dilma.


“Há uma
armadilha nessa afirmação [de que Eduardo Cunha esteja constrangendo o
governo federal]. Ela pressupõe uma briga de quadrilhas, com Cunha de um
lado e o Planalto do outro”.


Gaspari sabe, até
porque Cunha não esconde, que a CPI do BNDES é uma retaliação, pouco
importando a que resultado chegue. Mas o professor mostra que é possível
apresentar se uma chantagem como um fato positivo.

“Ou
há esqueletos no BNDES ou não os há. Se os há, a CPI, bem-vinda, já
deveria ter sido criada há muito tempo. Se não os há, nada haverá”.

Seria
absurdo usar o mesmo argumento para justificar uma CPI que investigasse
se Gaspari, que é filho único, na juventude, estuprou sua irmã. Mas
isso não vem ao caso.

Prosseguindo, o professor Gaspari mostra
porque é cultuado como um dos grandes jornalistas da atualidade. Em um
único parágrafo, demonstra porque o PT deve ser condenado a pagar as
penas devidas pelos seus adversários.

Para tanto, compara o tratamento distinto dado pela Justiça aos casos da Lava Jato e da Castelo de Areia.

A
Castelo de Areia foi uma operação da Polícia Federal que apanhou
maganos, para usar um termo caro ao professor Gaspari, do DEM, José
Roberto Arruda e um secretário do governo Kassab, aliados de José Serra,
recebendo propina da empreiteira Camargo Correia. A Castelo de Areia
também envolvia o senador Agripino Maia e Paulo Skaf, além de um filho
de Ministro do TCU – Tribunal de Contas da União.

Pois bem, apesar da fartura de provas, a Castelo de Areia foi anulada nos tribunais superiores devido a filigranas jurídicas.

Como o professor Gaspari se posiciona, então?


“A
verdadeira crise institucional está nas pressões que vêm sendo feitas
sobre o Judiciário. Cada movimento que emissários do governo [Dilma]
fazem para azeitar habeas corpus de empresários encarcerados [em prisão
preventiva na Lava Jato] fortalece a ideia de que há um conluio entre
suspeitos presos e autoridades soltas. Ele já prevaleceu, quando
triturou-se a Operação Castelo de Areia”.


Ou
seja, à leniência utilizada ao se julgar os delitos do DEM deve
corresponder, como compensação à sociedade, um rigor exemplar a ser
aplicado no julgamento de casos envolvendo o PT.

Gaspari não
advoga que a Castelo de Areia seja reaberta, à luz da Lava Jato, mas
inova magistralmente ao defender não apenas a inversão do ônus da prova
em relação ao PT, mas, além, a inversão do ônus da pena. Repare-se ainda
que, em nenhum momento do seu texto, Gaspari cita o DEM e sua aliança
com o PSDB.

Genialidade é pouco para qualificar esse parágrafo genial.

Assim
como genial é a forma como exalta indiretamente o Juiz Sergio Moro.
Utiliza-se de uma analogia carregada de audácia e risco.

“Quem
joga com as pretas tentando fechar o registro da Lava Jato sabe que a
Polícia Federal e o Ministério Público estão vários lances à frente das
pressões. Da mesma forma, quem se meteu nas petrorroubalheiras sabe que
suas pegadas deixaram rastro. Curitiba dribla como Neymar. Quando baixa
uma carta, já sabe o próximo passo”.

Os críticos
do juiz Moro encontram analogias entre suas longas prisões preventivas
para obter confissões e delações premiadas e as detenções efetuadas por
seu xará, Sergio Fleury, durante a ditadura de 64. Fleury, para
descobrir o paradeiro de algum adversário da ditadura, prendia seu
advogado. E para garantir que o procurado se entregaria sem resistência,
prendia a mãe do procurado. Nem de longe que Moro faça uso do
pau-de-arara.

Gaspari conhece o modus operandi de Fleury, dadas
as suas extensas pesquisas para a elaboração da sua magistral série de
livros sobre a ditadura. O professor Percival de Souza também o descreve
no seu livro “A autópsia do medo”.

Mas Gaspari opta pela
comparação de Moro a Neymar, o craque do Barcelona. Por certo, não o
capitão da seleção derrotada na Copa América.

Onde a audácia e o risco?

Neymar
é um craque, não há quem o negue. Usá-lo como analogia é um elogio,
desde que se esqueça de que o craque temperamental costuma ser expulso
de campo por agredir adversários e está envolvido até a alma em um caso
de sonegação de impostos.

Por fim, Gaspari esconjura a
possibilidade de absolvição futura dos réus devido à falhas processuais
na Lava Jato. E já os condena a 150 anos de prisão.

O professor
demonstra como argumentar convincentemente que os réus da Lava Jato não
podem ter direito à defesa. Já que tal defesa corresponderia a fomentar
uma crise institucional. Para tanto, faz uso de seu cosmopolitismo e vai
buscar uma analogia internacional. Compara a Lava Jato ao caso Maddoff e
ao atentado às torres gêmeas do World Trade Center.

Maddoff é um
picareta que aplicou o golpe da pirâmide em gananciosos milionários
americanos. Foi a julgamento, com direito à defesa, e está preso.

Vejamos a analogia feita pelo professor Gaspari:


“Afora
os amigos que fazem advocacia auricular junto a magistrados, resta a
ideia da fabricação da crise institucional. É velha e ruim. Veja-se, por
exemplo,… Bernard Maddoff: …ele sabia que seu esquema de investimentos
fraudulentos estava podre. Quando dois aviões explodiram nas torres
gêmeas de Nova York… ele pensou: “Ali poderia estar a saída”. Eu queria
que o mundo acabasse”.

Outro jornalista culpou Lula pela crise
grega e caiu no ridículo, mas, dado o brilhantismo da argumentação, esse
risco Gaspari não corre.

O uso do caso Maddoff relacionado ao 11
de Setembro, ainda que próximo à ficção ou à liberdade poética, é, no
entanto, um lance de mestre de Gaspari. Evita que seja levado a tratar
da “crise institucional” do “estado policial” do Ministro Gilmar Mendes
que facilitou que Daniel Dantas se safasse da Satiagraha.

Gaspari
argumenta que o diário de Marcelo Odebrecht é um risco institucional.
Inteligentemente, o professor reveste Odebrecht de um poder que, no
entanto, não serve sequer para garantir luz elétrica na sua cela, quanto
mais para abalar a República. Já Dantas mandou prender o delegado que o
investigou e levou a julgamento o juiz que o condenou. Isso do alto de
dois habeas corpus obtidos em menos de 24 horas diretamente do STF.

Mas o professor sabe: isso não vem ao caso.

Por
fim, em um dia de ressaca jornalística, após a cobertura da deblaquê de
Eduardo Cunha, resta-me agradecer ao professor Elio Gaspari pela aula
de jornalismo contida em seu pequeno texto, como pequeno são os frascos
que contém os grandes perfumes e os grandes venenos.


PS1:
por óbvio, não faço referência, neste post, ao professor Luis Nassif.
Não faltaria material sobre o assunto, na sua obra “O Caso Veja”. Porém,
citá-lo poderia parecer adulatório, evitei. Tampouco cito o mestre
Janio de Freitas, pelo simples fato de não ter encontrado em sua obra o
que pudesse ser associado à manipulação de informação.

PS2: para os que dispõem de alguns tostões para pagar a travessia pelo paywall da Folha, segue aqui o acesso ao texto do professor Gaspari.

PS3: para acesso a textos abandonados à caridade pública, visite a oficina de concertos gerais e poesia
.


Em tempo: esse Bessinha … - PHA​

domingo, 19 de julho de 2015

O jogo político das forças repressivas brasileiras |

O jogo político das forças repressivas brasileiras |




O jogo político das forças repressivas brasileiras







Por Rogerio Dultra dos Santos




A participação da Polícia Federal na “Operação Lava-Jato” revela a
situação de um corpo que compreendeu a sua importância no jogo político.
Isto significa que a PF irá desenvolver – pelo menos em setores que têm
se mostrado hegemônicos –, cada vez de forma mais autônoma, uma agenda
política descolada do controle normativo-constitucional.


A utilização da polícia no jogo político não é nenhuma novidade na história. A criminalização das oposições muito menos.


Por trás de uma pauta aparentemente respaldada pelo direito subjaz um
projeto moralizador, refratário ao funcionamento naturalmente plural e
contraditório da democracia. Imbuída de que porta a verdade
inquestionável, a instituição se debruça sobre a vida política nacional,
esquadrinhando os seus agentes e impedindo o seu curso, numa ânsia
quase-religiosa de purificação do que considera estranho à república.


Foi assim com a polícia política brasileira, a DEOPS – Delegacia
Especializada de Ordem Política e Social, que funcionou entre 1928 e
1983, como instrumento de criminalização e anulação das atividades de
contestação oriundas das classes populares.


O emprego de serviços de inteligência para fins políticos também
operou de forma sistemática com o SNI – Serviço Nacional de Informações,
criado em 1964 pela ditadura e somente extinto em 1999. Órgãos do SNI
instalados em Universidades, por exemplo, monitoravam as ações de
dissidência ao regime, o movimento pela anistia e o das diretas já.


Algo menos óbvio é que uma instituição submetida aos limites
normativos oficiais é quase inviável quando a corporação define sua
agenda operacional a partir de interesses próprios. É que a instituição
perde seu caráter republicano, porque não submetida ao controle externo,
porque não orientada pelo interesse público.


Esta anomalia institucional impede que consequências indesejadas para a vida democrática sejam determinadas de antemão.


O arrivismo político-burocrático de parte da PF, a falta de controle
do Ministério da Justiça sobre as suas atividades e a criminalização da
política como agenda geral de suas “operações” configuram a conjuntura
que coloca em xeque a estabilidade da democracia no país.


Este processo – equivalente ao desencadeado na Itália pela “Operação
mãos limpas” – que aniquilou os maiores partidos e deu origem à
hegemonia da direita de Berlusconi por mais de uma década, bate à nossa
porta. Ninguém dele está a salvo.


O jogo pelo poder coloca, além da PF, praticamente todas as
instituições do sistema repressivo brasileiro em disputa,
contaminando-as com o vírus político do “heroísmo” de resultados.


E nem se precisaria ir tão longe na história do Brasil para
identificar de onde surge esta mutação institucional que atinge a PF, e
que parece alcançar também o Ministério Público Federal e o próprio
Poder Judiciário.


O primeiro sintoma de aparelhamento político da PF foi a “Operação Lunus”,
em 2002, articulada pelo PSDB contra a Ex-Senadora maranhense Roseana
Sarney, então candidata à Presidência da República. Mesmo sendo
arquivada pelo STF por falta de provas um ano depois, a operação fez
naufragar a candidatura de Roseana.


O dado mais importante desta primeira grande “operação” política da
PF é que ela foi articulada com a imprensa para der repercussão imediata
na opinião pública, induzindo uma condenação prévia e inviabilizando a
candidata do PMDB. Isto foi motivo de comemoração não somente do PSDB,
mas inclusive da – à época – oposição petista.


Chegando à presidência, Lula estabeleceu um processo de empoderamento
institucional da Polícia Federal, ampliando os investimentos em
tecnologia, capacitação, concursos e orçamento, a ponto de que parte do
MPF passou a entender-se sem condições de controlar a PF e que esta se
transformou em unidade autônoma de investigação
(hoje o MPF luta para aprovar que a sua capacidade investigatória seja
implementada através de uma polícia própria, o que poderá causar outra
sanha heróica de profilaxia da política).


Logo depois explode o chamado “mensalão” e o PT é tragado pelo mesmo
protocolo de “operações”, forças-tarefa, vazamentos seletivos de
investigações em andamento para os grandes meios de comunicação e
adjetivações sem provas estabelecidas em juízo. As oposições aplaudiram
de pé.


Nos últimos 13 anos as instituições repressivas e de justiça
cresceram e se internacionalizaram. Internacionalização que implicou,
por exemplo, em extensos cursos de formação policial e jurídica nos EUA.
Policiais, procuradores e juízes aprenderam novas técnicas de
investigação, mas, especialmente, novos modelos de direito e de processo
penal que prescindem de várias das garantias previstas em nossa
Constituição.


Este é o caso da teoria do domínio do fato e das regras do plea bergaining,
que deram origem aos céleres e midiáticos protocolos de investigação do
crime de lavagem de dinheiro e a toda legislação de delações premiadas.


Assim, a “Operação Lava-Jato” aparece como a terceira grande onda de
ataque das instituições repressivas brasileiras à política, mas sob uma
nova roupagem.


Profissionalizadas, internacionalizadas e articuladas politicamente,
agindo de forma autônoma e sem que qualquer controle republicano balize
as suas ações, estas instituições têm o poder de ameaçar todo o processo
democrático.


O certo é que ninguém que tenha vida pública está mais seguro de nada.


Se é viável a interpretação segundo a qual parte dos órgãos de
investigação está funcionando com uma agenda política fechada ao
escrutínio público, o escopo de suas atividades não ficará – e já não
está mais ficando – restrito ao PT.


Se há a incorporação, por estes órgãos, de uma compreensão
hegemonicamente moralizadora e criminalizadora da política – e poucos
duvidam disto – o andamento desta e de outras “operações” alcançará não
só integrantes dos partidos aliados, mas também da oposição política.


O resultado, contudo, não será um país “passado a limpo” como muitos
imaginam e até desejam, mas uma democracia fragilizada, submetida a uma
caça às bruxas que perverte os limites do direito.


Apesar do processo que tramita na Justiça Federal no Paraná não ser
televisionado, a exposição sistemática na mídia permite o avanço seguro
da PF e do MPF rumo à criminalização de forças políticas para além do
governo Dilma Rousseff e para além do PT. Ontem foi Collor de Mello.
Amanhã será Eduardo Cunha. Depois, quem sabe, Temer, Dilma, Lula, sem
esquecer dos “300 picaretas” do Congresso Nacional, que insistem em
entrar em recesso. Quem irá sobrar desta vez para bater palmas?

O Uber e o mito da panaceia tecnológica

O Uber e o mito da panaceia tecnológica — CartaCapital



Marketing

O Uber e o mito da panaceia tecnológica


por Patrick Luiz Sullivan De Oliveira*



publicado
19/07/2015 04h55,


última modificação
19/07/2015 05h00

O Uber se apresenta como um fenômeno da “economia compartilhada”, mas a
ideia é desonesta. O aplicativo nada mais é do que uma empresa agressiva
tentando maximizar seus lucros

Recentemente, taxistas em
cidades espalhadas pelo país foram às ruas para protestar — em certos
casos violentamente — contra a introdução do Uber no Brasil. Na França a situação foi ainda mais extrema, com carros pegando fogo e a Uber por fim decidindo suspender o seu segmento mais low-cost no país dos gauleses.


Simpatizantes do Uber criticaram severamente os taxistas (e os
reguladores, que não andam satisfeitos com o fato de que o serviço não
cumpre as normas estabelecidas para o transporte de passageiros). Dizem
que eles querem barrar a competição e manter o monopólio de passageiros,
que não são nada mais do que uma classe corporativista reacionária com
medo de perder os seus privilégios.


Mas as coisas não são tão simples assim.


O Uber não é nenhuma panaceia, muito menos uma
empresa beatificada. Através de um marketing engenhoso,
companhias multibilionárias do Silicon Valley apresentam para seus
consumidores uma autoimagem positiva e utópica que é extremamente
tentadora nesses tempos econômicos tenebrosos.


O Uber diz que faz parte de um novo fenômeno, o da “economia compartilhada
— um termo que conjura a imagem de pessoas alegres e bem dispostas
ajudando umas às outras, todas ganhando uma parcela justa no processo.
Mas a ideia de que o Uber enquadra-se nesse conceito de “economia
compartilhada” é desonesta, pois o aplicativo nada mais é do que uma
empresa extremamente agressiva tentando de tudo para maximizar seus
lucros.


Talvez seja até o melhor exemplo que temos atualmente de um
capitalismo desenfreado abastecido por enormes reservas de capital que
primeiro destroem a competição para depois monopolizar o mercado (o
exemplo da Amazon). Com um exercito de lobistas e de advogados o Uber
vem penetrando mercados de maneira beligerante, curvando governos municipais aos seus desejos e colecionando multas por não dar ouvido aos reguladores.


Muitos já falaram sobre os benefícios que o Uber supostamente traz,
então talvez seria hora de dar voz a algumas criticas que precisam ser
tomadas em consideração para o debate progredir de uma forma realmente
honesta.


Do lado do consumidor temos a questão da regulamentação,
principalmente no quesito da segurança. Como a história dos séculos XIX e
XX demonstra, não podemos contar com o “mercado” para arcar os custos
sociais dos avanços industriais e tecnológicos. As condições de trabalho
dos mineradores — com seus pulmões tachados de preto — não melhorou por
livre e espontânea vontade das mineradoras. E as industrias químicas
não começaram a lidar com o lixo toxico de uma maneira mais segura para o
meio ambiente e para as seus vizinhos só porque são conscientes.


Seria ingênuo esperar que o Uber resolveria questões relativas a
inspetorias de veículos, paliação do risco sofrido por passageiros,
motoristas e pedestres, emissão de gazes, entre outras.


Quem é legalmente responsável no caso de um acidente envolvendo um carro da Uber? 


Fica também a dúvida quanto a ética do sistema de “surge pricing”
(onde os preços aumentam simultaneamente com a demanda) adotado pela
empresa. O Uber foi criticado severamente quando seus preços explodiram
durante o sequestro em massa que ocorreu dezembro passado em Sidney  (o preço mínimo para usar o serviço subiu para $100).


Tudo isso demonstra que o serviço insere-se em um complexo sistema de transporte publico — um problema de política urbana que deveria ser sujeito a deliberação de todos os partidos afetados.


Podemos também analisar a situação pelo ângulo da classe
trabalhadora. Nos Estados Unidos, a cada dia cresce o descontentamento
dos motoristas do Uber. Eles têm visto o seus percentuais de lucro cair, mesmo continuando em ter que arcar com todos os riscos envolvidos em prestar um serviço de transporte.


Inclusive, essa exímia empresa da “economia compartilhada” foi acusada de surrupiar gorjetas que clientes deixavam aos motoristas. (Não menos preocupantes é como a empresa manuseia os dados privados de seus usuários, ainda mais depois que um de seus executivos sugeriu usar essas informações para vendetas contra jornalistas que fizeram reportagens que não foram favoráveis à imagem do Uber).


Esses fatores explicam porque nos EUA temos um crescente movimento
para que os motoristas deixem de ser autônomos e virem empregados. Não
podemos esquecer que o Uber é parte de um processo que anda ganhando
força nessa economia global onde os termos são ditados pelo capital
financeiro: a criação de uma classe maior de subempregados
cada vez mais dependentes de bicos aqui e ali para sobreviver enquanto
os lucros dos investidores crescem a níveis exorbitantes.


O CEO do Uber, Travis Kalanick, acusou
os críticos do aplicativo de quererem “parar o progresso”. Isso nada
mais é do que uma estratégia retórica que busca marginalizar aqueles que
não compartilham a visão (e os lucros) das elites industriais,
tecnológicas e financeiras.


Como o historiador François Jarrige demonstra em seu livro Techno-critiqes: Du refus des machines à la contestation des technosciences (Paris:
La Découverte, 2014), esse discurso marginalizador nasceu junto com a
Revolução Industrial e consolidou-se na Belle Époque, justamente o
período em que surgiram os grandes barões do industrialismo e um
movimento trabalhista que buscava uma segurança social melhor e salários
mais dignos ante uma desigualdade crescente.


Hoje, em 2015, temos a Uber estimada em mais de 40 bilhões de dólares, o seu CEO com seus
5.3 bilhões de patrimônio e seus motoristas autônomos (“driver
partners”, de acordo com a “novilíngua” do Silicon Valley) — esses
últimos cada vez mais desiludidos com o potencial econômico de um trabalho instável ao mesmo tempo em que ameaçam o ganha pão de milhões de taxistas pelo mundo.


São justamente as vozes mais criticas que demonstram que o
“progresso” pode seguir caminhos diversificados. Podemos “des-inventar”
certas inovações que se mostraram perigosas, como o DDT e o CFC, e
podemos procurar maneiras de orientá-las em direções mais positivas e
seguras, como vem sendo o caso da energia nuclear.


A ideologia que brota do Silicon Valley apresenta a tecnologia como
uma coisa inerentemente positiva ou, na pior das hipóteses, neutra. Mas a
tecnologia nunca é imune a dinâmicas de poder. O “progresso” não é
alcançado através de inovações tecnológicas, mas sim graças a escolhas
políticas de como (e se) incorporaremos essas inovações dentro do nosso
complexo mundo social.


Se uma introdução ética de novas tecnologias na sociedade depende de
um diálogo democrático, porque ao invés de aceitar o Uber como um fait accompli não considerarmos a ideia de Mike Konczal? Um Fellow no Roosevelt Institute, Koczal sugeriu
socializar o aplicativo, lembrando que os populistas americanos criaram
cooperativas para lidar com as mudanças tecnológicas no final do século
XIX.


Afinal, os motoristas já são donos de quase todo o capital
operacional (os seus carros), então porque não distribuir o lucro de
maneira comparável? Aí sim, poderíamos dizer que o aplicativo fomenta
uma verdadeira economia compartilhada. Mas se o Uber não quer empregar
motoristas, que seja então apenas uma provedora de software.





* Patrick Luiz Sullivan De Oliveira é doutorando em História da Princeton University

domingo, 12 de julho de 2015

A pauta negativa sobre o Brasil que não cabe nos manuais - Sul 21

A pauta negativa sobre o Brasil que não cabe nos manuais - Sul 21



A pauta negativa sobre o Brasil que não cabe nos manuais






A Suíça, terra dos paraísos fiscais e da Fifa de Joseph Blatter, ocupa um nobre quinto lugar na lista anticorrupção da ONG Transparency Internacional. A receita é simples: basta não investigar. (Foto: BBC)
A
Suíça, terra dos paraísos fiscais e da Fifa de Joseph Blatter, ocupa um
nobre quinto lugar na lista anticorrupção da ONG Transparency
Internacional. A receita é simples: basta não investigar. (Foto: BBC)
Flávio Aguiar, de BerlimRede Brasil Atual
Há exatos dois anos, em julho de 2013, uma solenidade
em Brasília celebrava os dez anos do Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social – fórum consultivo da sociedade instituído pelo
governo Lula para ouvir sugestões de empresários, sindicalistas,
movimentos sociais, intelectuais e outros atores com algo a dizer sobre
os rumos do país. Na ocasião, o diplomata brasileiro Roberto Azevêdo,
então recém-eleito diretor-presidente da Organização Mundial do Comércio
(OMC), protagonizou um dos pontos altos da reunião. Azevêdo expôs com
clareza que os dias de lua de mel entre o Brasil e a mídia internacional
tinham acabado. Dali para diante, seria ladeira acima.
Não deu outra. Até aquele momento, o Brasil estava na
pauta positiva. Lugar atraente para investimentos, a maior e a melhor
democracia entre os Brics – senão a única (com o passivo do apartheid
ainda pesando sobre a África do Sul), nosso país parecia ser ainda e
sempre aquele de e do futuro. Desde então, o bolo brasileiro desandou.
Naquele momento, havia um sutil componente político.
Na mesma medida em que o então G-8 perdia importância para o G-20, o
Brasil se fizera líder das nações emergentes. Auxiliaram nessa ascensão
muitos fatores, entre eles o de ser de fato uma democracia, de não ter
guerras com ninguém, de não ser um país militarista nem militarizado e
de ser um país sem poderio nuclear. O Brasil era uma opção não contra,
mas dentro da hegemonia mundial do capitalismo triunfante. Mas era uma
opção diante do predomínio dos Estados Unidos e dos países líderes da
União Europeia (Alemanha, França, Reino Unido), secundados pela Itália,
Canadá e Japão, que formavam o bloco ocidental dentro do G-8.
Ocorre que esse grupo seleto tinha outro candidato
para a OMC, um diplomata mexicano, aquele país que já foi líder da
diplomacia independente na América Latina e hoje se vê na condição de
ser um irmão menor, ou primo pobre, da América do Norte. E ele perdeu
para o brasileiro Ricardo Azevêdo. Os países hegemônicos, mais a
imprensa que os representa, da Wall Street à City londrina, de
Washington a Frankfurt, ou aquela que não os representa, mas os têm como
referência, não ficaram nada felizes.
A essa altura, já havia uma sutil mas significativa
campanha que se iniciava contra o ministro Guido Mantega e seu
“intervencionismo estatal” na economia. Mas muitas vozes viam tal
iniciativa como uma mera ressonância da campanha da direita brasileira,
na e da nossa mídia e fora dela. Não a viam como uma iniciativa da
própria mídia internacional.
Com o andar da carruagem, isso, que era um ribeiro,
tornou-se um caudal, uma torrente vertiginosa. O canal maior dessa
verdadeira campanha antiBrasil se abriu com a realização da Copa do
Mundo de 2014. Choviam matérias negativas, de todo o tipo, no jornalismo
de direita, centro e meia-esquerda em todos os quadrantes do Ocidente. E
a chuva caía na TV, na internet, na mídia impressa e no rádio. O tom
exaltado era o de que “agora vamos mostrar o verdadeiro Brasil”. E esse
“verdadeiro” era um país de eternos favelados, narcotraficantes,
governantes inescrupulosos, corruptos, prostituição, pobreza escabrosa,
quadrilheiros, sequestros, onde o profissional de jornalismo tinha de
andar de colete à prova de balas, enfim um caos.
Veio a Copa, e a única coisa que não funcionou a
contento foi o nosso time. O resto só merecia elogios. Mas a
contragosto. E as pautas negativas continuaram, depois alimentadas sobre
as denúncias de corrupção na Petrobras, no governo, sempre bordejando a
insinuação de que isso é algo “inerente” ao Brasil. Campanhas da
direita – da bancada da bala, da redução da maioridade penal, a
homofobia que busca se institucionalizar – se diluem nisso de que “o
Brasil é assim”. As manifestações antidemocráticas, os pedidos para que a
ditadura volte, se diluem numa expressão de um “descontentamento”
difuso diante do “caos” ou do “impasse” na economia, na administração
pública, coisas cuja raiz jaz na inapetência ou na incompetência
brasileira. Ou seja, o Brasil é o Brasil inadimplente porque é o
eternamente “atrasado”.
As matérias sobre o “drama Petrobras” se sucedem –
insinuando sempre que o Brasil não deveria, por exemplo, explorar o
pré-sal, por incompetência, porque trará danos ao meio ambiente, será
caro etc. Os únicos personagens brasileiros que merecem alguma­ intenção
positiva são aqueles que resistem ao desenvolvimento econômico, em nome
da preservação de um Brasil que, diga-se de passagem, nem sequer existe
mais.
Para essa mídia internacional e aquilo que ela
representa, a lista de pecados do Brasil só aumentou. Além de a
Petrobras ter-se tornado uma das maiores companhias do mundo, o Brasil
agora planeja com os Brics a organização de um mundo financeiro
alternativo e com bancos independentes. Aliás, os Brics por inteiro só
têm direito, em conjunto, a uma pauta negativa. China e Rússia não são
democracias, a África do Sul é uma democracia capenga nas mãos dos
descendentes do apartheid (de um lado e do outro dele) e o Brasil, bem o Brasil, noves fora, é geneticamente inepto para o mundo moderno.
Na relação com a mídia tradicional brasileira, fica a
dúvida sobre o que nasce primeiro, se o ovo ou a galinha. Uma ressoa a
outra, ainda que a nossa seja mais provinciana e acanhada. Ao se ler
reportagem sobre o Brasil, o mais que se pode esperar é que apareçam
referências ao grupo Globo, Folha de S. Paulo, Estado, aqui e ali Veja. CartaCapital
não existe, bem como a mídia alternativa (isso eu até entendo, não há
nada parecido com a nossa mídia alternativa na Europa, nem mesmo o
equivalente a um site como Democracy Now, dos Estados Unidos).
Penso que ideologia neoliberal antiBrasil de hoje tem por alimento principal a pauta dos arautos da City londrina, The Economist e Financial Times, mas ela também ecoa aparentemente pela esquerda no The Guardian e, em tom menor ou pelo menos não tão frequente, no New York Times. Frequenta o Wall Street Journal, de modo mais sóbrio. É frequente no El País. Mas isso não explica tudo.
Há um fator psicológico importante, que abarca a
relação editor-jornalista-leitor (esta última palavra num sentido bem
amplo, que abrange toda a mídia). O Brasil mudou de lugar no mundo. Na
Projeção de Mercator, que informa os mapas-múndi globais, o ponto de
vista é determinado a partir do trópico de Câncer, o que transforma o
Brasil num anão de pernas curtas frente aos gigantes, como o Alasca e a
Groenlândia. Isto cria uma falsa impressão, mas é assim que nos
acostumamos a nos ver, e que “eles” nos veem. De repente, o
anão-criança-inepto-palhaço virou outra coisa, além do estereótipo de
praia-futebol-café-pobreza-corrupção-traseiro-de-mulher-na-raia-ou-na-praia,
fechando o círculo.
O Brasil não cabe nos manuais, nem nos marxistas nem
nos do FMI ou do Banco Mundial. Nem nos manuais de redação. Isso traz
uma insegurança danada. Diante dela, o melhor é tentar devolver o
“estranho” ao seu lugar. Por isso, há uma certa sofreguidão em mostrar
que no Brasil noves fora, nada fica em pé. Dezenas de milhões de pessoas
saindo da pobreza? Um SUS universal que, com suas precariedades,
funciona? Uma política social e de auxílio a refugiados que a ONU
considera exemplar? Uma presença cada vez mais forte e reconhecida nos
fóruns internacionais? Ora, ora, noves fora, nada.
E se tivermos um critério comparativo, a coisa piora.
A Petrobras continua no noticiário. O HSBC e suas­ contas podres de
narcotráfico, tráfico de armas e joias, evasão fiscal etc. já sumiu das
manchetes e das páginas interiores. Até porque a investigação sobre
desvios na Petrobras continua, enquanto a promotoria suíça encerrou a
investigação sobre as contas do banco, mediante o pagamento de uma multa
irrisória, de 43 milhões de francos, nada, diante dos mais de 100
bilhões em qualquer moeda que se queira daquelas contas.
A Suíça, terra dos paraísos fiscais e da Fifa de
Joseph Blatter, ocupa um nobre quinto lugar na lista anticorrupção da
ONG Transparency Internacional. Assim é fácil. Basta não investigar.

domingo, 5 de julho de 2015

Mirem-se no exemplo das lideranças de Atenas - Carta Maior

O golpe em marcha: mirem se no exemplo das lideranças de Atenas - Carta Maior



O golpe em marcha: mirem-se no exemplo das lideranças de Atenas

Seja
qual for o desfecho do plebiscito deste domingo, é o método o que mais
importa à encruzilhada do Brasil nos dias que correm.

por: Saul Leblon







Levar a lógica dos mercados financeiros a um plebiscito é algo de que nunca se tinha ouvido falar antes.

Mas foi justamente isso o que ocorreu na Grécia neste domingo.

Independente
do resultado das urnas - a essa altura já sabido - é forçoso
reconhecer: um anel poderoso da blindagem neoliberal foi rompido na cena
política.

E isso não é um detalhe: é um método.

O que ele ensina é que a única opção à tirania financeira é submeter o mercado ao escrutínio da democracia.

Na
crise de 2008, a brava Islândia já havia decidido o destino de
seus bancos - um buraco especulativo dez vezes superior ao PIB do país
- a um plebiscito.

Entre sacrificar a nação ou a banca, a decisão foi salvar a nação e deixar o rentismo falir.

A
abrangência e o impacto daquela consulta, porém, foi menor. A pequena
nação de 320 mil habitantes - que se recuperou de maneira formidável e
hoje desfruta de pleno emprego - sequer pertencia ao euro.

Foi tratada como um pitoresco ponto fora da curva pelo colunismo de mercado.

O que a Grécia fez agora é de superior importância e vai muito além do pitoresco.

Ela
resgatou o princípio segundo o qual política é economia concentrada
na expressão mais direta dos conflitos de classe de uma sociedade.

Seu
inestimável exemplo foi justamente dar transparência àquilo que as
ideias dominantes de nossa época lograram mascarar. Ou seja, a farsa que
empresta aos interesses plutocráticos da finança a condição de uma
ciência acima dos conflitos sociais e econômicos.

Reforçar a
blindagem a-histórica do capitalismo, de modo a cegar os olhos para a
relação de poder que lhe é intrínseca, foi uma das maiores vitórias do
neoliberalismo em nosso tempo.

Para consumar esse abastardamento,
ademais de se atribuir à economia uma autossuficiência regulatória que
ela não tem, o neoliberalismo cuidou de aprofundar a interferência do
dinheiro no sentido inverso.

O esforço obstinado de Eduardo Cunha
para legitimar a presença do dinheiro empresarial nas campanhas
eleitorais é um emblema dessa inversão dos papéis, com o sotaque
golpista que marca a urgência brasileira nesse momento.

Que isso
tenha acontecido em meio a investigações de corrupção cuja origem reside
justamente no intercurso entre empresas e partidos não é apenas um
escárnio.

É a força do sistema corruptor do dinheiro impondo a
sua supremacia na vida do país de forma explícita, quase obscena, nesse
momento.

A dissonância aberta pela Grécia não é pequena.

Sobretudo,
porém, não deve ser avaliada pelas forças progressistas brasileiras
apenas com base no resultado efêmero do plebiscito deste domingo.

Seja qual for o seu desfecho, é o método o que mais importa à encruzilhada do país nos dias que correm.

Ou
não foi justamente a equivocada decisão de endossar a ‘objetividade’
dos mercados na definição dos ajustes que deveriam ter sido repactuados
politicamente, que levou ao afunilamento golpista atual?

A opção
pela estratégia publicitária nas eleições de 2014 (criticada então neste
espaço, e que quase levou à derrota da candidatura Dilma) subestimou a
capacidade de luta e discernimento do protagonista social que  que
poderia fazê-lo.

Negligenciou-se a força e a centralidade
política da tomada de consciência histórica de 60 milhões de brasileiros
que saíram da miséria e da pobreza e ascenderam na pirâmide da renda no
ciclo de 12 anos de governos progressistas.

Ao invés de ser corrigido, o equívoco eleitoral se aprofundou uma vez instalada o novo mandato.

A
um centurião dos mercados foi dada carta branca para proceder a
ajustes cuja pertinência e ponderação só teriam viabilidade
se negociados com as forças sociais do país.

A frente de esquerda Syriza não cometeu esse erro; pode pagar caro por sua ousadia, é verdade.

Mas não tão caro a ponto de ver esfarelar a confiança de suas bases em sua coerência.

Não
tão caro a ponto de, eventualmente derrotada no referendo, perder o
vigor representativo para uma volta ao poder até com maior força, quem
sabe.

É a emergência ameaçadora dessa força - não os bilhões de
euros em questão no calote grego - que explica a determinação da troika
(FMI, BCE e Comissão do Euro) de não permitir a consumação de um acordo
favorável ao governo do primeiro ministro Alexis Tsipras.

A sequência política antecedente ao plebiscito ilumina essa hierarquia com clareza.

Vejamos:

1.
Em 21 de junho, o  presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude
Juncker, e o primeiro ministro grego, Alexis Tsipras, chegaram a um
esboço de acordo que gerou euforia nos mercados;

2. Em 23 de
junho, tudo havia ruído. O que se passou nessas 48 horas é a pergunta
que analistas isentos se fazem em diferentes veículos;

3. A
maioria atribui ao FMI, aos falcões germânicos  e a governos
reacionários do euro que vergastaram seus povos, Espanha e Portugal, por
exemplo,  o veto ao acordo favorável à Grécia. Não por divergências
intransponíveis em relação a valores. Não. Acima de tudo porque uma
vitória do  Syriza abriria o precedente encorajador a novos hereges em
marcha. Caso do Podemos espanhol, por exemplo;

4. O argumento é corroborado matematicamente:

-
cálculos do Royal Bank of Scotland, divulgados pelo jornal Valor,
estimam que a soma  total das dívidas pendentes no imbróglio grego é de
537 bilhões de euros;

- se o país saísse do euro, as perdas para os credores seriam de 234 bi de euros (2,4% do PIB do euro);

-
todavia, se lograsse uma reestruturação, como reivindica o Syriza,
 trazendo a dívida de 200% do PIB  para 100% dele, com o perdão do
restante, a perda seria de apenas  1,4% do PIB da zona do euro;

5.
Estudos do próprio FMI divulgados na 6ª feira admitem que a dívida da
Grécia é impagável, qualquer que seja o grau de sacrifício que venha a
ser imposto a sua população;

6. De acordo com o estudo, vazado
sem a assinatura da direção do FMI, a dívida grega deveria  ser abatida
em 30%, ademais de se assegurar uma carência de 20 anos para iniciar o
pagamento  restante. Qualquer ‘ajuste’ sem esse requisito é
insustentável.

Tudo isso é muito, muito próximo do que argumenta e reivindica o governo Syriza.

Mas nunca lhe foi oferecido na mesa de negociações.

Por quê?

Justamente porque a vitória da democracia grega implodiria uma das mais eficazes operações ideológicas das últimas décadas.

Essa que  apresenta a economia como um enclave autônomo, esfericamente subordinado às leis naturais dos livres mercados.

A
serviço dessa mesma assepsia histórica vicejam no Brasil as editorias
de economia e o colunismo dos vulgarizadores do capital metafísico, esse
que em textos abestalhados de tanta toxina neoliberal, apresenta os
desequilíbrios estruturais  do desenvolvimento como mera inépcia do
lulopopulismo.

Essa lixeira histórica e ética  prendeu a
respiração diante da odisseia do país que mais longe levou a
politização  da disjuntiva em torno da qual se debate  a  luta pelo
desenvolvimento em nosso tempo: a economia deve trabalhar pela sociedade
ou contra ela para servir a banqueiros e rentistas?

A
transformação da pergunta em uma disputa política aberta e explícita  é
uma vitória da Grécia e uma derrota antecipada da ideologia mercadista urbi et orbi.

Não
por acaso, uma gigantesca operação de asfixia foi acionada para impedir
que esse levante se consumasse no plebiscito deste domingo.

A
sociedade que já perdeu 1/5 de quase tudo, empregos, salários,
aposentadorias, leitos hospitalares etc  foi explicitamente ameaçada de
confinamento financeiro e político, se insistisse em reinventar seu
contrato social no escrutínio proposto pelo primeiro ministro, Alexis
Tsipras.

A 48 horas do referendo, na sexta-feira, o sindicato dos
banqueiros da Grécia lançou um comunicado coercitivo para dizer que o
sistema   dispunha de apenas um bi de euros em caixa --insuficiente para
prover a liquidez do mercado no day after do escrutínio, quando o país
ficaria órfão se votasse ‘não’ ao arrocho.

Grandes empresas e
redes de serviços –postos de gasolina, por exemplo— anteciparam-se para
vender exclusivamente cash a uma população sem caixa, confrontando-a
assim com a prefiguração do colapso acenado.

Na antevéspera do
plebiscito, as principais redes de televisão, as Globos de lá, dedicaram
46 minutos à cobertura dos comícios favoráveis ao arrocho e apenas oito
minutos às concentrações pelo ‘não’.

Autoridades da União
Européia, governantes conservadores, bancos e consultorias
–compulsivamente ecoados pelo dispositivo midiático local—fecharam o
cerco com ameaças, coações e  chantagens.

Consumou-se assim uma 
operação de propaganda de guerra de virulência equivalente ao cerco do
exército branco contra a Rússia revolucionária, em 1917.

‘O que
estão fazendo com a Grécia tem um nome: terrorismo”, disse o ministro
Yannus Varoufakis, autor também da frase síntese  da  polaridade entre a
coerência e a coerção: ‘Prefiro cortar um braço a assinar um acordo que
não contemple a reestruturação da dívida da Grécia'.

Independente
do veredito do domingo, portanto, a heresia já terá desempenhado a
missão pedagógica de produzir um clarão capaz de iluminar o imaginário
social para muito além das fronteiras gregas.

Para que servem as
urnas afinal, se um governo, e o projeto por elas escolhidos, é
literalmente destruído no momento seguinte ‘pelas imposições dos
mercados' assim afrontados?

Ou para ser mais explícito diante da
urgência do Brasil nos dias que correm: para que servem  se, uma vez
eleito, o governante é coagido pelo cerco do dinheiro a fazer concessões
que corroem os vínculos de confiança com sua principal base de apoio,
tornando-se ainda mais vulnerável às imposições dos mercados e dos
interesses determinados a derrubá-lo?

A força e a tragédia do
povo grego reside em particularizar a heresia em relação à encruzilha
diante da qual muitos hesitam  na vã esperança de obter a indulgência
dos mercados.

Um dos principais jornais brasileiros, a Folha,
dedica seu caderno de Política, na edição deste domingo, a avaliar as
possibilidades, preferências e métodos mais adequados à derrubada do
governo da Presidenta Dilma Rousseff, eleita com 54 milhões de votos há
apenas e longínquos oito meses.

A principal batalha do nosso
tempo, portanto, aqui ou na Grécia, fique claro, não se trava em torno
de cifras ou adequações macroeconômicas  em si. Mas, sim, em se
preservar ou não o poder de dominação dos detentores das cifras.

O
câmbio defasado no caso brasileiro - um exemplo de problema real que
sucateou parte da indústria - não é tão grave para a plutocracia local e
global quanto a consolidação de um poder progressista no comando do
Estado.

Derruba-lo é uma prioridade que antecede e independe da
genuflexão macroeconômica – ou as concessões suicidas em curso já teriam
erradicado o furor golpista.

Não é  propriamente uma trégua que se  assiste no Brasil nesse momento.

A resposta, portanto, é de outra natureza.

Trata-se
de  trazer a economia para a política e de levar a política para a
economia. Ou seja, repactuar o desenvolvimento com uma nova correlação
de forças.

É essa fusão que pode devolver à democracia um poder ordenador que a  sociedade cedeu ao mercado.

Não se negue à economia leis próprias, circunstâncias limitadoras e incertezas a exigir gestão, equilíbrio e bom senso.

Mas
sancionar a não ingerência da política nas decisões do desenvolvimento 
é tão somente uma operação suicida de entorpecimento social para
preservar e engordar interesses sabidos.

Nas crises cíclicas do
sistema, quando se descarrega sobre a sociedade um fardo de sacrifícios
dificilmente vendável como ciência ou fatalidade, o labor dessa
catequese  é afrontado pela natureza crua das coisas.

Democracia e capitalismo deparam-se então em pé de igualdade com a disputa pelo destino da nação e do seu desenvolvimento.

Atenas se transformou na capital dessa transgressão nos últimos meses.

O
nó górdio que impede o Brasil de extrair as devidas lições dessa
experiência é a rala contrapartida de organização coletiva para levar a
cabo a luta por uma outra agenda de desenvolvimento.

Não há espaço para mágicas na história.

O
país não sairá do atoleiro se o sujeito do processo, aquele do qual
depende o respaldo  para enfrentar a coerção mercadista, permanecer 
alheio aos  conflitos que determinarão o seu destino.

O salto em direção a isso hoje no Brasil chama-se frente progressista e democrática.

E a pergunta que ela enseja às organizações populares é curta e grossa:

"o
que mais precisa acontecer aqui para que as lideranças sociais anunciem
um comitê unificado contra o golpe e uma agenda política de repactuação
do desenvolvimento?"

Mirem-se no exemplo das lideranças de Atenas.

Enquanto há tempo.

'Mãos Limpas' não visava um golpe de Estado' - Carta Maior

'A diferença é que a operação 'Mãos Limpas' não visava um golpe de Estado' - Carta Maior



A diferença é que a operação 'Mãos Limpas' não visava um golpe de Estado'

Juristas brasileiros enviaram perguntas sobre a 'lava-jato' a
Raúl Zaffaroni, o maior penalista da América Latina, que criticou as
delações premiadas.


Martín Granovsky, de Buenos Aires - Especial para Carta Maior





Sua casa, no bairro de Flores, setor de classe média, tranquilo, a meia hora do centro de Buenos Aires, parece uma velha casona da Toscana. Sua mesa de trabalho fica no meio de uma sala enorme. Tem as dimensões de uma biblioteca pública. Perto das estantes, pode-se ver belapeças de artesanato latino-americanas, como um retábulo peruano de Ayacucho. Sobre essa mesa, ao lado do computador, uma pilha de livros de Direito, muitos deles em alemão, sobre a tipologia dos delitos políticoeconômicos, ou sobre o nazismo. Raúl Zaffaroni completou 75 anos no passado dia 7 de janeiro. Ao assumir como juiz da Corte Suprema da Argentina, em 2003, indicado pelo presidente Néstor Kirchner, prometeu se aposentar quando alcançasse essa idade. Honrou sua promessa. Mas Zaffaroni, um dos penalistas de maior prestígio no mundo, nãse distanciou do mundo. Viaja, escreve, dá palestras, recebe doutorados honoris causa, estuda, dá aulas em universidades públicas da Grande Buenos AiresTambém participa da discussão pública sobre os acontecimentos argentinos e latino-americanosNesta entrevista para Carta Maior ele demonstra seu vigor intacto, respondendo perguntas dos jornalistas e inquietudes levantadas por importantes juristas do Brasil.

 
 
– Tarso Genro, ex-ministro da Justiça no governo de Lula e ex-governador do Rio Grande do Sul, pergunta que acontece com o Estado de Direitquando a grande imprensa influi tanto no processo penal, como vem sucedendo ultimamente.

 
 
– Penso
que a invenção da realidade por parte dos meios de comunicação,
especialmente os televisivos, está afetando a base do Estado de
Direito. E cria um perigo grave para a sua sobrevivência.

 
 
– Transmito a você uma pergunta do Professor da UERJ, Juarez Estevam Xavier Tavares Que medidas podem ser tomadas para diminuir a irracionalidade do poder punitivo e evitar a destruição do Estado de Direito?

 
 
– A primeira
medida tem que ser a proibição constitucional dos monopólios ou
oligopólios televisivos. Sem pluralidade midiática não podemos ter
democracia. O que os meios monopólios ou oligopólios estão fazendo
na América Latina é trágico. Nos países onde existem altos níveis de
violência letal, eles a naturalizam. Sua proposta se reduz a atentar
contra as garantias individuais. Nos países onde a
letalidade é baixa, eles buscam exacerbá-la. Clamam pela criação de
um aparato punitivo altamente repressivo e, definitivamente,
também letal.

 
 
– É a vez do Professor da USP,  Alysson Leandro
Mascaro. Os meios de comunicação de massa cada vez mais formam e moldam
perspectivas da compreensão do jurista. Em face disso, qual sua leitura
sobre o horizonte ideológico do jurista hoje? O mesmo do capital e dos
grandes meios de comunicação de massa? Qual sua percepção da ideologia
como constituinte do afazer do jurista na atualidade?

 
 
– Não tenho
a menor dúvida de que a Televisa, no México, ou
a Rede Globo, no Brasil, entre outros exemplos, são conglomerados,
formam parte indissociável do capital financeiro
transnacional. Logo, também são parte desse modelo de sociedade,
que é uma sociedade com uns 30% de incluídos e 70% de excluídos.
Um modelo de sociedade excludente. Daí nasce uma necessidade,
querem moldar um jurista que se mantenha nessa lógica
formal e não perceba que está legitimando um processo de genocídio a
conta-gotas. Temos esse tipo de genocídio, em grande parte da América
Latina, em circunstância em que o Estado já não é mais o que mata, senão
o que fomenta a violência letal entre esses 70% que o modelo quer
excluir. Não nos esqueçamos que dos 23 países que superam a taxa anual
de 20 homicídios a cada 100 mil habitantes 18 são da América
Latina e do Caribe, os outros cindo são
africanos. Tampouco esqueçamos que também somos campeões de coeficientes
de Gini, ou seja, má distribuição da renda. Esse é o modelo de
sociedade que os meios massivos concentrados querem reafirmar. O pior
que pode acontecer na América
Latina é continuar assimilando assepticamente as teorias importadas como
se não tivessem conteúdo
político, e nos perdermos nas doutrinas vinculadas a teorias presas a
meros planteamentos normativistas. Se, ideologicamente, a doutrina
jurídica latino-americana não evolui em direção ao realismo,
lamentavelmente não fará nenhum favor nem ao Estado de Direito
nem às nossas democracias.

 
 
– Agora quem pergunta é o presidente
do Movimento do Ministério Público Democrático, Roberto Livianu. Qual a
importância dos acordos de leniência, para o controle da corrupção e
qual a importância da intervenção do Ministério Público, fiscalizando a
celebração desses acordos?

 
 
– Pessoalmente, acho que
a delação premiada é perigosa em qualquer caso. Especialmente em casos
de corrupção. Hoje, na Alemanha, estão tentando elaborar um novo
conceito de crime político-econômico para os piores casos de
destruição econômica. Por exemplo, para as terríveis crises bancárias
que determinaram que os Estados Unidos
tivessem que gastar 500 bilhões de dólares e a Europa 460 bilhões de
euros para salvar um sistema financeiro havia provocado, grosseiramente,
sua própria ruína, diante da indiferença dos órgãos de
controle bancário. Não acredito que, em casos assim, se possa aplicar,
nem minimamente, um acordo no estilo da delação premiada. O mais trágico
nesses casos é depender da boa vontade dos próprios delinquentes, que
ofereçam suas informações para se chegar às soluções. Há um livro
muito interessante sobre o tema, do professor Wolfgang Naucke, que se
refere a algo que merece uma reflexão: o título é O Conceito de Delito Político-econômico.

 
 
– Quem
pergunta agora é o Presidente da Associação Brasileira dos Juízes pela
Democracia, André Augusto Bezerra. Do ponto de vista da estrutura
interna do Judiciário, há alguma peculiaridade do sistema de justiça
argentino que o tornou mais sensível às violações aos Direitos Humanos
da época da ditadura do que o sistema de justiça brasileiro?

 
 
– Não vejo
uma diferença notória, em termos de estrutura interna, de cada
Judiciário. A política argentina para casos de direitos humanos avançou
por iniciativa dos poderes
Executivo e Legislativo. Num primeiro momento, ela chocou com algumas
resistências dentro do Poder Judiciário.

 
 
– Depois dos juristas, a pergunta do jornalista. É possível comparar a Operação Lava Jato, no Brasil atual, com a Operação Mãos Limpas, na Itália dos Anos 90quando os juízes começaram a descobrir os grandes subornos nas obras públicas?

 
 
– Não
acho que a Mãos Limpas tenha a ver com a Lava Jato. A Mãos Limpas não
foi uma tentativa de golpe de Estado. Não nos esqueçamos que, se
analisamos todos os golpes de Estado militares que aconteceram na
região, eles se agarraram em duas bandeiras para se legitimar. Uma era a
de supostamente descontrolada criminalidade. Outra era a da corrupção.
Lamentavelmente, o que verificamos, no final de um século de tristes
experiências, é que os maiores casos de
corrupção tiveram lugar sob amparo das forças reacionárias.
Ao dizer isso, não nego que em tal administração possa haver
personagens corruptos que devem ser punidos. Digo que em nenhum caso
pode ser um pretexto para que se legitime a
desestabilização democrática. A magnificação de casos individuais de
corrupção através dos meios massivos de comunicação é um velho recurso
golpista, que conhecemos por tristes experiências.
Em definitivo, não é mais que o uso de formas estruturais de corrupção
para desarmar o potencial produtivo e as relações econômicas das nossas
sociedades.

 
 
– No Brasil, juiz federal Sérgio Moro, responsável pela Operação Lava Jato, pretende alterar o Código Penal, para colocar na prisão os réus condenados em 1ª Instância, independentemente dos recursos para instâncias superiores, ou seja, é quase um tribunal de exceção.

 
 
– Na América
Latina, mais de 60% da população carcerária chegou à prisão sem ser
condenado em nenhuma instância. Ou seja, estão presos só como medida
cautelar, em forma de prisão preventiva. É uma realidade que já
é estrutural, se arrastra ao longo de anos e que implica numa inversão
do sistema penal. Primeiro alguém é detido, depois é condenado, a pena
vem antes da condenação.