domingo, 26 de março de 2017

Fomos pegos pelados no meio da rua

Fomos pegos pelados no meio da rua, diz presidente da Andrade Gutierrez - 26/03/2017 - Mercado - Folha de S.Paulo



Fomos pegos pelados no meio da rua, diz presidente da Andrade Gutierrez

RENATA AGOSTINI

ENVIADA ESPECIAL AO RIO















Presidente do Grupo Andrade Gutierrez, Ricardo Sena não é afeito a
rodeios: "Se sabia que existia [propina]? Claro que sabia", afirmou no
escritório da empresa no Rio, onde recebeu a Folha.





Segundo ele, o principal erro da Andrade Gutierrez foi não ter percebido
que o país havia mudado. "Continuamos assinando contrato para depois
resolver", diz. "Você ficou pelado no meio da rua. Fomos pegos assim."





O executivo, que assumiu o comando após a prisão de Otávio Azevedo pela
Lava Jato, em 2015, reclama do tratamento que a empresa vem recebendo do
governo.







"Já pagamos R$ 300 milhões [do acordo de leniência] em troca de
absolutamente nada. Nem imagem nem algo prático. O BNDES não pagou, a
Petrobras não tirou da lista negra. Só de penitência. O Brasil está
muito confuso."



Folha - Quais obras públicas ainda tocam?

Ricardo Sena - Pública, pública é zero. A última foi a Ferrovia
Norte-Sul. Saímos do do canteiro por falta de pagamento reiterado.
Porque nós saímos, voltamos, saímos, voltamos. Não pagam, aí você
desmobiliza. Aí pagam, te obriga a voltar, mas não pagam esse gasto. É
um negócio assim... fantástico. Então, a gente não tem hoje cliente
público mais. Temos vários contratos, mas só no campo privado.





Mas isso não é só porque a gente não quer, não. Primeiro, porque não
tem. Tem que fazer uma ressalva, porque cliente público não é ruim por
definição, porque aí também é demais. Algumas estatais de companhias
mistas são boas para contratar. Só que não estão contratando nada. O
cliente público direto, esse aí.. De novo, não tem concorrência, mas
mesmo se tivesse acho que não participaríamos.





Pensariam duas vezes?

Ainda há muita insegurança. É uma relação complexa. Quando há qualquer
problema, o Estado tem ferramentas para te obrigar. Se você não fizer,
ele executa garantias, põe multa, põe no jornal que a Andrade Gutierrez,
aquela da Lava Jato, abandonou a obra. Que ele não pagou, isso ele
jamais cita. Você fica muito fragilizado.





Estamos fazendo uma usina termelétrica para a Manaus, subsidiária da
Eletrobras. Começamos a fazer e eles pararam de pagar. Aguardamos o
prazo, porque você tem que ficar 90 dias sem receber. Notificamos e
paramos a obra. Eles não tinham dinheiro mesmo. Ficou tudo parado mais
de ano. Entraram na Justiça para nos obrigar a retomar sob a alegação de
que era interesse nacional. Retomamos, com desequilibro, prejuízo,
tivemos de retomar. Agora estamos no fim da obra. Lá você entrega tudo
pronto. Os últimos faturamentos, já têm R$ 77 milhões executados, eles
não podem pagar, porque é preciso testar com gás. A Petrobras não
fornece o gás, porque a Eletrobras deve à Petrobras. Então, não consigo
provar que ela funciona, porque não me põem o gás.





Mas esse tipo de problema sempre ocorreu, não?

Desde sempre. Qual a diferença? É aí nossa culpa maior. Antigamente, se
resolvia isso. Não tinha TCU [Tribunal de Contas da União], Ministério
Público, CGU [Controladoria-Geral da União, atual Ministério da
Transparência], AGU [Advocacia-Geral da União], tudo que acaba com U,
imprensa que denuncia. O Brasil era muito... Você conseguia fazer os
reequilíbrios. Acabava resolvendo. Era a época que empreiteiro dizia: o
negócio é ganhar o contrato, depois nós damos jeito. E dava um jeito, de
uma forma ou de outra, acertava. O governador e o ministro tinham o
poder da caneta. Hoje ninguém tem. Hoje você vai no ministro e ele fala:
você tem toda razão, tem que entrar na Justiça. Todo mundo tem medo de
tudo.





Por isso que colocamos [no pedido de desculpas público da empresa quando
reconheceu que cometeu crimes] que contrato tem de ter ambiente,
liberação fundiária, desapropriação. Agora, por exemplo, esses leilões
[de aeroportos] não têm nada disso. Esses pobres coitados dos
estrangeiros vão se danar. Daqui a pouco, fazem uma outra medida
provisória para resolver o problema das concessões.





Até 2000, por aí, o Brasil ainda era um país em que as coisas eram
capazes de acontecer —para o bem e para o mal, com corrupção ou sem. Se
você procurasse lá o presidente da Eletrobras e falasse: olha não tem
gás, custou assim, ele mandava estudar e pagava. Isso acabou. O que é
bom para o país ter alguém fiscalizando. Nós é que não percebemos que o
Brasil mudou e continuamos assinando contrato assim para depois
resolver.





A gente ganhou o contrato da Transcarioca [via expressa no Rio de
Janeiro] e tinha só uma planilha. Eu não estava aqui [à época da
assinatura], mas a gente conversa. O que aconteceu? Sabíamos que depois a
obra ia ser outra coisa. A gente ia reorçar. O que gerou? R$ 450
milhões de prejuízo. Para perder esse tanto de dinheiro tem de ser muito
competente. Qual foi a solução do prefeito [Eduardo Paes], que sabia
que aquilo tudo lá era só para poder dar início? "Reconheço, mas entre
na Justiça". Repara: não tem a ver com Lava Jato.





Mas quando o senhor fala que antes se resolvia...

Era isso mesmo. Era errado.





Resolvia porque tinha dinheiro por fora.

Não quer dizer que, no passado, tudo se resolvia com propina. Tinha
claro. Só falta a gente negar, né. Mas tinha muita Renata [referindo-se à
repórter] que fazia o correto. Pegava a caneta e falava: vou pagar
isso, que entendo o correto. Hoje, a mesma Renata fala: acho que tinha
que pagar tanto, mas não vou assinar o documento. Porque amanhã o TCU
fala que a conta está errada e congela os bens dela. Virou um país de
denuncismo para todo lado. O excesso sempre é ruim.





Sou absolutamente favorável a esse processo de evolução. Sou brasileiro.
Mas passou do ponto. Virou um negócio que a Lava Jato virou fim. O
Brasil vive da Lava Jato. É a única coisa que se vê. Eu falo que peguei
uma birra da Renata, sua xará [Renata Lo Prete, da "GloboNews"]. De vez
em quando fala: "Só para lembrar: soltaram um foguete. Mas, voltando à
Lava Jato... Né, Merval [Merval Pereira, comentarista da GloboNews],
como está a Lava Jato aí?". É o samba da Lava Jato. E quem quer
trabalhar, quem quer produzir tem toda a dificuldade. Você saiu de uma
vida complicada e entrou numa vida arrumada, mas todo mundo quer jogar
[contra você]. Eu não consigo trabalhar, pô. Esse é um problema que nos
afeta muito. Acabar com a empresa é uma teoria meio sem lógica,
concorda?





Vocês firmaram acordo com o Ministério Público no ano passado. Há perspectiva de fechar um acordo de leniência com o governo?

A gente sempre pensa que sim. Se não, melhor fechar o boteco. Mas não
temos nenhum indicio. Entramos na CGU em novembro de 2015 com o pedido
de leniência, com todos os documentos. Já fizemos diversas reuniões. Não
acontece nada. Tem esperança? Tenho. Se não tiver tá danado.





E por que o senhor acha que isso acontece?

Difícil saber. A gente especula. São órgãos políticos, ligados a
políticos. No Cade [Conselho Administrativo de Defesa Econômica] e no
Ministério Público, a gente conseguiu caminhar. São órgãos
independentes. Na hora que você põe TCU, CGU, AGU... não anda. Tem o
fato de serem três órgãos juntos, o que torna tudo mais difícil. É uma
novidade no Brasil esse processo, então tem muita gente que não sabe
como faz.





O TCU tem uma atuação ao meu ver completamente estabanada no processo. É
um órgão de apoio ao Congresso. Ele tem de fiscalizar o governo e as
atitudes do governo. Se faço contrato com o governo, fruto de uma
licitação, ele quer que eu demonstre para ele... Não tenho que
demonstrar nada para ele. É tudo errado. Ele acha que tudo que o governo
faz de não pagar [as empresas], pode. No dia que paro a obra, ele manda
congelar conta. Virou uma campanha contra o privado.





Por isso que eu digo que trabalhar com o governo é muito perigoso. Você
fica sozinho contra tudo e contra todos, inclusive na imprensa. Porque
basta o cara dizer para a imprensa que a Andrade abandonou a obra que,
no dia seguinte, já sai lá: "A Andrade, a empresa da Lava Jato,
abandonou a obra". Porque isso vende.





Também criticamos o governo.

É... [fazendo cara de "mais ou menos"]. Você viu ML [obra do
monotrilho], aquela que tem o paliteiro na cidade lá. Uma obra licitada
para ser de 20 quilômetros. O governo nunca conseguiu desapropriar as
áreas. O trecho ficou menos da metade. Fizemos uma fábrica de vigas e
pilares para fazer o trecho todo. Aí você fala: como paga? Eu tinha de
depreciar em mil vigas [para compensar o investimento], são só 400. A
coisa vai ficando assim até o ponto da inviabilidade. Você não pode
quebrar fazendo uma obra. Já chega a Transcarioca. Quando você fala que
vai parar, depois de anos, não é conversinha não, é depois de anos. No
dia seguinte, o governo entra com campanha nos jornais que a Andrade
abandonou a obra. O cara lê e pensa: deve ser mesmo, está fugindo da
Lava Jato, é tudo bandido e tal. E nós vamos procurar quem para
restituir a verdade?





Entrevistas como essa são uma forma de falar sua versão.

Colocamos um comunicado. Mas convenhamos, quem é que lê aquilo ali? É
como "procurado, o cidadão falou...". Eu fico vendo aquilo da Globo.
Estou até preocupado agora que são 200 [políticos delatados por
executivos da Odebrecht]. Já pensou? Procurado, fulano disse isso,
procurado... Meia hora disso. Só para falar: "Procurado, ele nega".





Qual o efeito prático de não ter acordo com o governo? Porque, por outro lado, a empresa não foi declarada inidônea.

Todo mundo pensa no inidôneo. A lógica é: se for declarado inidôneo, não
posso licitar. Mas eu nem quero! O problema são os efeitos colaterais. O
grande problema nosso não é o governo. Eu quero não depender dele. Não
tenho nenhum contrato com o governo e não tenho perspectiva de ter. Não
que não queira, mas porque não tem obra. Mas isso suja meu nome. Foi
feito uma leniência, que é o julgamento da empresa. Você tem que pagar
essa multa, tem que criar um sistema de compliance [cumprimento da
legislação e de regras de conduta]. Aí, você faz tudo, mas não acontece
nada. O que acontece é a CGU e a AGU dizerem que não vale. Então faça o
que vale! Mas eles também não fazem.





O que farão diante da decisão do TCU de fixar uma multa adicional? [O
tribunal decretou na semana passada que as empresas da Lava Jato terão
de refazer o acordo com o Ministério Público e aumentar o valor de
ressarcimento aos cofres públicos ou serão declaradas inidôneas].






Não podemos ter uma posição radical, mas vamos nos defender. A decisão é
muito ruim. É uma decisão que afronta o Ministério Público, que deu a
leniência. Agora o TCU diz que se precisa de um aditivo. Não ser
considerada inidônea é melhor do que ser, claro. Mas tem o detalhe: você
faz um aditivo que não vou poder questionar? Não parece razoável.
Esperamos que, com diálogo e demonstração de boa-fé, possamos chegar a
um acordo. Essa confusão dos órgãos, de cada um achando que tem de ser
protagonista... Essa coisa de "vai lá e assina", certamente não faremos
isso. Isso seria dar um cheque em branco.





Não farão mesmo sob o risco da empresa ser declarada inidônea?

O efeito é o mesmo. Se eu disser que ele pode cobrar o que quiser... É o
"se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come". De qualquer forma,
morro. Ele aplica multas de forma totalmente unilateral e eu não posso
fazer nada? É quase inacreditável. Imagina, a partir disso, que banco
vai me emprestar dinheiro? Se eu tenho essa faca no pescoço, do TCU
poder cobrar o que quiser?





Achamos que conseguiremos mostrar isso com a ajuda do Ministério
Público. Mas não vamos para o confronto. O risco é, na prática, eles
acabarem não recebendo. Porque não vamos conseguir [se a empresa
quebrar]. Se esse é o objetivo, há outras formas de fazer. Diz então "ó,
vocês viraram persona non grata".





Não podemos jogar a leniência no lixo. Isso foi homologado pela Justiça.
A punição não pode ser um câncer que mata a companhia. Porque aí não
sobra ninguém. É uma coisa insana. Achamos que vamos conseguir mostrar
isso e acreditamos que o bom senso deve prevalecer.





Com a Petrobras vocês querem continuar trabalhando?

Claro que quero trabalhar. Mas quero sair da lista. A lista negra
existiu por força da denúncia de corrupção. As pessoas foram presas,
condenadas e nós pagamos. Ué, por que eu vou continuar na lista? Não
consigo entender.





Pegamos contrato agora de obras de refinaria na Argentina. Uma Petrobras
de lá. Foi isso [faz um gesto de esforço] para o cara aceitar. E para
ele interessava. Nossa proposta era melhor. Ele falou: Quero vocês, mas,
caramba, vocês estão proibidos na Petrobras, como eu vou contratar?".
Olha o trabalho que dá...





Não sei porque eles não tiram a gente. O Ministério Público enviou carta
à Petrobras dizendo que não havia nada que impedisse a gente. Estive
lá, conversei com Pedro Parente [presidente da Petrobras] e ele disse:
sim, nós temos que fazer. E não faz nada.





Se eles falam que vão tirar da lista, mas não nos convidam para
concorrência, paciência. A lista é ter o nome no SPC [Serviço de
Proteção ao Crédito]. Você não quer me convidar para a sua casa, tudo
bem. Mas não põe no jornal que sou uma pessoa indesejável em festas.
Porque isso me atrapalha nas outras festas.





Quando o senhor vê a economia retomando?

A economia tem reagido bem, mas o lado político é interrogação. Fico
pensado que o Temer, de um jeito ou de outro, aos trancos e barrancos,
vai chegar ao fim. Acho que botou na cabeça que precisa fazer um governo
reformista porque, senão vai entrar para a história como? Só porque
tirou a Dilma? Se for isso, vai ficar mais é como golpe. Ele vai fazer
pressão enorme para passar as reformas. Se for feito, o país retoma
certo rumo.





Nesse negócio de infraestrutura no mundo inteiro tem havido um
movimento. E caminhando para PPP [parceria público-privada] ou
concessão. Nos dois modelos, a figura que toca é a privada. Você
consegue trabalhar em infraestrutura pesada sem necessariamente
trabalhar com o governo. Esse é um modelo que nos interessa muito.
Ganharam agora os aeroportos. Nós vamos bater lá na porta do cidadão e
dizer: olha, queremos ser convidados a apresentar proposta. Se fosse o
governo fazendo, provavelmente nesse momento não faríamos isso.





No pacote de concessão do governo, vocês só olham oportunidades em construção então?

Não posso concorrer com a CCR [empresa de concessões que a Andrade é
sócia]. Saneamento, portos eles não têm. Mas não estamos [interessados].
Não é uma hora legal para pensar em investir aqui. Falando pelo grupo,
não faríamos. Cuidei desse assunto desde o nascedouro da AG Concessões.
Fiquei 20 anos só mexendo com isso. Conheço um pouco, não por esperteza,
mas por excesso de exposição. Começou-se a fazer uma desconstrução do
que era correto. Para uma concessão, você faz a análise do investimento,
custo de operação, arcabouço financeiro para colocar aquela coisa de
pé. Tudo isso ficava explícito no plano financeiro da concessão. Você
tinha todas as informações ali: quanto ia investir, qual era o tráfego,
receita, tarifa, operação. Tudo isso era entregue e fazia parte do
contrato. Portanto, você estava habilitado a discutir à luz do que
estava entregue. Aboliram isso. Não foi por lei, não. Então, hoje para
você ganhar o aeroporto, vai lá na Bolsa no leilão com um número,
assina, ganhou, pronto. Se amanhã o governo não fizer algo da parte
dele, você não tem como demonstrar nada. Olha a insegurança. E é um
passo atrás. A coisa funcionava, era organizada. Eles conseguiram
desmontar. A própria CCR não entrou nos aeroportos.





A Andrade Gutierrez pecou na primeira rodada de conversas com o Ministério Público? Por que não falou tudo?

De 2011 a 2013 a empresa trocou muita gente. Não tinha nada a ver com
Lava Jato. Tinha uma proposta de renovação, puxada pelos acionistas,
[que gerou] certa conturbação interna. Uma campanha muito forte de
"precisa renovar esse negócio de gente velha", de ter uma empresa mais
jovem.





Saiu muita gente. A Odebrecht fez 77 delatores, todos trabalhavam na
Odebrecht. Quando nós fizemos [a delação] eram 11 e só seis trabalhavam
aqui.





Dentro da leniência, você se obriga, além de implantar "compliance",
informar quaisquer novos malfeitos que tenha cometido. Você tem que
ficar escarafunchando o passado. Além de contratar empresas [para isso],
acompanhamos as notícias. Toda vez que sai "fulano da Odebrecht deu
dinheiro para a empresa Jururu", a gente corre aqui. E aí Jururu tem?
Opa, fizemos contrato com a Jururu. Aí denunciamos, pagamos o Imposto de
Renda. Vamos lá no Ministério Público.





Falam em recall [da delação]. Não tem recall nada não. Nós somos
obrigados a fazer e já fazemos. Só que, com esse negócio da Odebrecht, o
negócio recrudesceu.





Se essas pessoas estivessem aqui, teríamos falado. Eu, por exemplo, não
sei. Vou lá saber que na obra de Manguinhos deram dinheiro para fulano?
Não tenho a menor ideia. E não tenho para quem perguntar. As pessoas já
não estão mais aqui. Esse é o nosso maior problema. Agora, por exemplo,
tem denúncia que em São Paulo teve [propina nas obras] no metrô. Não tem
alma aqui que trabalhou nesses negócios. Tenho que ir atrás de uma
Renata da vida que trabalhou aqui lá atrás. O que ela faz? Diz: ô
Ricardo, nem te conheço, pelo amor de Deus, não me envolve nisso, não.





Tudo bem o senhor não saber do contrato da Jururu. Mas o senhor está na empresa há décadas. Não sabia?

Claro que todo mundo sabe. Todo mundo sabe. Mas uma coisa você saber da
prática. Como o Emílio [Odebrecht] falou: caixa dois sempre teve, desde
dom João 6º já devia ter caixa dois. Qualquer um que fale diferente
disso é tolinho. Mas não posso acusar os outros sem prova. Você tem que
procurar a Renata e falar: você deu dinheiro para o fulano? Ah, dei.
Como você deu? Foi por meio da Jururu, que fez um contrato comigo. Para
você chegar a isso e a pessoa se sujeitar a ser preso... E é assim. Isso
era normal das empresas e o cara não se acha um criminoso. É complexo.





Como o senhor conseguiu ficar fora da Lava Jato?

Não trabalhava na construtora. E na área de concessões nunca fizemos.
Ah, por que vocês são mais bonitos? Pouco sou. Mas em concessões você
investe, põe o dinheiro. Como empreiteiro, você recebe o dinheiro. Aí
cria uma situação. Cria dificuldade para vender facilidade. É um
processo doente. Uma empresa concessionária não pode fazer doação de
campanha. A empreiteira podia. Não era legal ser com dinheiro sujo, mas
doação era legal. Por isso que tem essa briga sobre o que pode, caixa
um, caixa dois.





Vivi 20 anos, de 1992 a 2012, na AG Concessões. Mas eu sabia? Claro que
eu sabia [que existia pagamento de propina]. E não só aqui, não.
Qualquer empresa do Brasil. E de qualquer setor. Ah, então por que
gostam [de falar] de empreiteiro? Por que empreiteiro tem relação direta
com o poder. Aí pega o Renan [senador Renan Calheiros], o Jucá [senador
Romero Jucá], não sei quem. Dá ibope.





Mas o cara que vende merenda escolar também corrompe. Só que não dá
ibope nenhum prender o subsecretário de não sei o quê. O Brasil
infelizmente é assim. Não quero dizer com isso que não se pecou. Claro
que se pecou. Mas digo que, quem fica assim [faz cara de assustado] é um
anjo. O cidadão deve ter nascido ontem.





O setor inteiro da construção foi pego...

Uma coisa: havia 20 e tantas empresas estrangeiras que trabalhavam para a
Petrobras. Todas sem exceção estão envolvidas na Lava Jato. Não é uma
coisa estranha?





O que todo mundo quer acreditar é que Camargo, Andrade e Odebrecht é que
são os malvados. Sempre o trio da morte, né? Depois salpicam mais
alguns ali...





E os dinamarqueses, japoneses? Tudo de ilibada reputação? Sueco? Todos
estão. Onde está a doença? Isso que quero dizer. Não tem jeito de a
pessoa viver no Brasil empresarialmente sem fazer. Ou pelo menos não
tinha. De novo, não estou querendo jogar lenha na fogueira. Mas é um
fato. Uma coisa é dizer que o problema era nas grandes empreiteiras que
controlavam o poder. E os outros davam dinheiro porque eram doidos?
Skanska [empresa sueca envolvida na Lava Jato e declarada inidônea pela
CGU] dava dinheiro na Petrobras.





O senhor acha que é algo do Brasil?

Não é específico daqui. É no mundo inteiro. Tem mais e menos. O que acho
que aconteceu é que no Brasil recrudesceu, esparramou. Antes era muito
mais. Virou uma moda. Acho que tem muito a ver com a forma de funcionar
do PT... Não sei. Aí não sou sociólogo. Até para mim, que já sou macaco
velho do setor, fiquei assustado.





Meio que virou uma coisa maluca, um meio de vida. Antigamente as coisas
eram mais veladas. Era uma coisa pessoal, não era a administração tal
todo mundo rouba. Com o negócio do PT, como são mais democráticos e
abertos, virou uma coisa que todo mundo mama. E aí a coisa perde o
controle. Um movimento enorme de laranjas atravessando dinheiro para lá e
para cá. E aí você tem que lembrar: antigamente, o cara fazia uma coisa
dessas e a Receita Federal levava cinco anos para descobrir. Tinha até
vencido [a punição]. Hoje é tudo on-line.





Por isso que eu falo: o mundo mudou e as pessoas não perceberam. Você ficou pelado no meio da rua. Nós fomos pegos assim.

Candidato?

E se Gilmar Mendes estiver se capitalizando para ser candidato? - 26/03/2017 - Janio de Freitas - Colunistas - Folha de S.Paulo



 Tudo o que o ministro Gilmar Mendes tem defendido, na aceleração da
sua atividade de político, corresponde aos interesses do grupo que tem
dominado a política brasileira, liderado pelos expoentes do PMDB e seus
seguidores em vários partidos. O repúdio ao recato próprio de um
ministro do STF não se faria sem motivo. Qual poderia ser o de Gilmar?





Dois traços marcantes de sua personalidade explicam alguma coisa. Um,
sua identificação com a direita, evidente desde que se aproximou da vida
pública. Talvez bastasse dizer que teve a nada invejável função de
assistente jurídico de Collor na Presidência. Mas Gilmar Mendes quis
consolidar a primeira evidência com seu desempenho como advogado-geral
da União no governo Fernando Henrique.





À época se disse que selecionado por Sérgio Motta entre os possíveis
dispostos a fazer uma barragem contra incômodos ao governo, não há
dúvida de Gilmar Mendes se saiu bem na missão. O outro traço marcante é a
atração pelo poder.





São, porém, características que Gilmar poderia arrefecer, ao menos o
suficiente para ter conduta adequada a juiz, a ministro do STF e a
presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Não o fez. Muito ao
contrário. A um só tempo crítico e colaborador de Sérgio Moro e dos
procuradores da Lava Jato, foi como ansioso militante que comprometeu o
STF com o apoio ao vazamento ilegal de gravações ilegais, feito pelo
juiz de Curitiba. Um vazamento a que não atacou "como crime", porque
servia à sua e à causa da corrente conservadora no Congresso.





Com a mesma motivação, Gilmar Mendes reteve por ano e meio a proibição
de doações "eleitorais" por empresas, na tentativa de impedi-la. Para
encurtar: entre outros desempenhos, tem batalhado pela admissão do caixa
2, o "por fora" nas eleições; prega a anulação dos inquéritos e
processos que tiveram vazamentos; apoia a anistia aos doadores e
recebedores do "por fora"; e propagandeia a volta das doações
"eleitorais" de empresas. Estranhas, a militância e as posições?





E se Gilmar estiver se capitalizando para ser visto, na contabilidade
política do PMDB & sócios, como potencial candidato à Presidência? O
PMDB controla o jogo político, por sua dimensão e por meios escusos,
mas não tem como alcançar o poder de fato: em seus numerosos quadros não
há quem mostre condições de disputa real da Presidência.





Um quarto de século de eleições diretas para presidente – e o gigante
PMDB só na figuração. Seus sócios, atuais ou possíveis, não passam de
reboques. Um candidato confundindo-se com o Supremo e oferecendo à
direita um candidato sem as botas militares de Bolsonaro, pode
imaginar-se como um presente para o PMDB, DEM, PP e cia. Gilmar tem
feito a alegria de Renan Calheiros, Romero Jucá, Eliseu Padilha, Michel
Temer, e por aí. À toa, não é.





BRASILEIRINHAS





1- Alexandrino Alencar, um dos delatores da Odebrecht, diz que comprou o
horário gratuito do PCdoB, do Pros e do PRB para a campanha de
Dilma/Temer. Só se o PCdoB vendeu o que já dera à campanha, na aliança
pública com o PT.





2- O blogueiro Eduardo Guimarães não tinha obrigação e talvez nem
tivesse meios de saber que Moro considerava sigilosa a sua ordem de
detenção de Lula, naquele tal "depoimento coercitivo". Teve a informação
e divulgou-a, sem razão alguma para fazer dela um segredo. Fez um
vazamento. Prática jamais condenada, sequer criticada, por Moro. A
detenção de Guimarães, o arresto de seu equipamento e a coerção para dar
o nome do informante foram arbitrariedades em hora apropriada: o
projeto do Senado contra abuso de autoridade deve ser votado dentro de
duas semanas.

Terceirização: a volta triunfal dos mercadores de escravos



 blog Socialista Morena


Cynara Menezes

Terceirização: a volta triunfal dos mercadores de escravos

mercadores
(“Quanto custa este?” Mercado de escravos no Rio de Janeiro em 1824. Gravura de Edward Francis Finden)
Aprovado pela Câmara por 231 votos a favor, 188 contra e 8
abstenções, o projeto que libera a terceirização em todos os setores da
economia vai ressuscitar, na prática, a figura dos mercadores de
escravos que existiam no Brasil até a abolição da escravatura. O que é
uma empresa terceirizadora senão uma versão contemporânea dos
comerciantes que viviam da venda de escravos? A diferença é que existe
salário –se é que se pode chamar assim um pagamento até 30% menor do que
recebem os trabalhadores contratados diretamente.


Como os comerciantes de escravos do Brasil colonial, a chamada
“prestadora de serviços” é uma empresa que não produz nada, nem uma só
agulha. Muito menos riqueza para o país. Seu único papel na sociedade é
fornecer seres humanos a outras empresas, nas piores condições
trabalhistas possíveis. Nas mãos delas, o trabalhador não é nada além de
uma mercadoria.


Pode-se dizer, inclusive, que as primeiras empresas de
“terceirização” surgiram no século 18, quando donos de escravos alugavam
algumas de suas “peças” a terceiros, como aconteceu durante a
construção da Anglo-Brazilian Gold Mining Company, Limited (ABGM)
em Mariana, Minas Gerais. Nos contratos eram colocadas garantias para o
contratante e para a contratada, mas nenhuma, é claro, para o escravo,
que podia, exatamente como hoje, ser sublocado a outro senhor.


Assim como as empresas terceirizadoras da atualidade, a “atividade”
de venda de escravos tinha custo baixíssimo e gerava um lucro
exorbitante, o que permitiu aos negociantes acumular grandes riquezas.
Sete das maiores fortunas do Rio de Janeiro no século 18 eram de
negociantes de escravos, com grande poder de pressão sobre o parlamento.
Alguém lembrou do Congresso Nacional de 2017? Em vez de execrados, os
maiores negociantes de escravos de Minas Gerais dão nomes a praças e
ruas no Estado.


Segundo o Ministério Público do Trabalho, os mercadores de gente que prestam serviços aos órgãos públicos lideram as fraudes contra o FGTS:
recebem os 8% referentes ao fundo de garantia, mas não repassam aos
trabalhadores, comportando-se como gigolôs dos funcionários que
contratam, ao subtrair-lhes parte dos seus ganhos.


Os negociantes de escravos do mundo moderno estão autorizados até
mesmo a subcontratar outros mercadores para que lhes forneçam serviçais,
num artifício chamado de “quarteirização”. Será possível, assim, ter
uma fábrica de carretéis que não possui nenhum operário, e sim
funcionários contratados a uma empresa que tampouco os possui, mas
contrata de outra. O segundo mercador não tem nenhuma função nesta
cadeia a não ser atuar como um traficante de trabalhadores para a
fábrica, sem qualquer obrigação para com eles.


escravospe
(“Quero este, este e este”. Mercado de escravos em Pernambuco em 1824. Gravura de Edward Francis Finden)
O mais absurdo: a “nova” legislação permite que o mesmo grupo
econômico possua outra empresa com a finalidade de fornecer empregados
terceirizados a ela. É como se o senhor de engenho se tornasse sócio do
negociante que lhe fornece os escravos, mas o fazendeiro não precisa se
responsabilizar por eles, fornecendo roupas, teto ou alimentação. Uma joint venture digna do Brasil colônia.


A aprovação da terceirização também impulsionará ainda mais a chamada
“pejotização”, bem comum nas empresas jornalísticas, que sempre se
esmeraram em esquivar-se de pagar direitos a seus empregados. Funciona
assim: o trabalhador abre uma empresa e sua empresa faz um contrato com a
empregadora em questão. Como é prestador de serviços, não terá direito a
férias, 13º salário e FGTS. Quando for colocado no olho da rua, não
importa quanto tempo tenha passado ali, sairá com uma mão na frente e a
outra atrás.


Se o trabalhador adoecer, sua situação é na verdade pior do que a de
um escravo: enquanto o escravo doente era mantido pelos senhores de
engenho, os funcionários contratados como “pejotas” que contraírem
alguma enfermidade podem simplesmente ser demitidos sem receber nada.
Inimigos dos trabalhadores, os deputados tornaram facultativa a extensão
aos terceirizados do atendimento médico e ambulatorial destinado aos
empregados da contratante.


Os que dizem que as terceirizadoras pagam direitos trabalhistas e
seguem a CLT como quaisquer outras empresas mentem para você. As
mercadoras de escravos do século 21 utilizam uma série de truques para
impedir que os funcionários tirem férias, por exemplo. Um dos mais
conhecidos no mercado é a contratante substituir uma terceirizada por
outra; com isso, os empregados têm de ser recontratados e adeus, férias.
Há casos de trabalhadores terceirizados sem sair de férias há mais de
cinco anos por conta desta artimanha.


Estas empresas também são especialistas no chamado “dumping social”,
que consiste na redução de direitos trabalhistas para maximizar o
lucro. Empresas que prestam serviços na área de telefonia e energia
elétrica, por exemplo, já foram condenadas por deixar de pagar adicional
de periculosidade, adicional noturno e as horas extras, o que afeta o
cálculo da quantia que o trabalhador recebe nas férias, 13º e na
rescisão.


A próxima etapa é extinguir a Justiça do Trabalho
para impedir que os escravos, ops, funcionários terceirizados possam
reclamar seus direitos. O mais irônico desta história toda é que o
slogan do governo que está fazendo nosso país voltar para o século 18 é
“ponte para o futuro”.

sábado, 25 de março de 2017

O trabalho e o pimentão vermelho

O trabalho e o pimentão vermelho. Por Nilson Lage - TIJOLAÇO | 



O trabalho e o pimentão vermelho. Por Nilson Lage

pimentao


Há tempos, houve superprodução de pimentões vermelhos. O preço, para o
produtor, chegou a vinte centavos o quilo, um desastre para meu amigo
horticultor.


O trabalho é como os pimentões.


A entrada maciça das mulheres no
mercado, a partir da Segunda Guerra Mundial, duplicou a oferta de
trabalhadorees sem elevação proporcional do consumo. O salário básico –
preço desse produto na fonte – despencou: era calculado para quatro
unidades (“uma família”) e passou a ser calculado para uma só.



Em decorrência do avanço das
máquinas, o preço da variedade rústica (o trabalho braçal, físico) já
vinha declinando há tempos, o que obrigava a constante refinamento em
busca de padrões de qualidade
standart e premium.


A variedade standart – que corresponde, grosso modo, aos white collors, pessoal de escritório, e à nata dos blue collors,  operadores qualificados de máquinas –  foi bastante afetada pela informática e pelas telecomunicações.


Numa fábrica como a  Volkswagen
alemã, nos anos 1950, havia 15 pessoas em atividades-meio para  uma na
atividade-fim, a produção de carros: preenchendo holerites, calculando e
emitindo faturas, datilografando relatórios, rodando mimeógrafos,
desenhando peças, montando layouts gráficos, atendendo telefones e
postando correspondência. Sumiram todos, como os radinhos de pilha e as
enceradeiras. Na linha de montagem, os robôs.



Além do contínuo refinamento do
padrão de qualidade exigido pelo mercado – vários ofícios que se
contentavam com a formação básica  passaram a exigir formação média e os
que se bastavam com a formação média elevaram-se à formação completa –,
surgiram novos empregos culinários para os pimentões, digo, novas
funções para os trabalhadores. Multiplicaram-se os serviços, surgiram
ofícios novos, até estranhos, como passeador de cachorro,
personal trainer ou doula.


Ultimamente, a inteligência artificial ameaça boa parte dos trabalhadores premium,
a nata, aquela que demora mais tempo a chegar ao estado de consumo e
que se orgulha tanto do espaço que ocupa na prateleira do mercado de
trabalho. Gestores, planejadores, docentes, operadores de sistemas,
pesquisadores de soluções.



Pois é numa hora dessas, com o
desemprego estrutural à porta ameaçando até a elite, que o governo
brasileiro resolveu prolongar a vida útil dos trabalhadores, ampliar o
horário de trabalho e deixar cair no vazio o preço da mão de obra.



A ilusão é que, com o trabalho mais
barato, a produção se tornará competitiva. Na verdade, o trabalho pesa
cada vez menos no custo dos produtos – determinado agora,
principalmente, pelo valor da matéria-prima,  ônus financeiro, nível de
tecnologia embutido e prestígio da marca. Aquela história de que o que
vem da China é mais barato porque os chineses ganham pouco é coisa do
passado.



Sabe o que meu amigo horticultor fez com os pimentões vermelhos? Deu alguns, jogou o resto no lixo.

nas ruas...

Para refrescar a memória

Para refrescar a memória

Sugiro que as amigas e os amigos pesquisem nos arquivos do Estadão,
do Globo e Folha, a partir desse mesmo dia 02/12/1993, para ver como
esses outros jornais trataram o tema, se é que trataram. Minha tese
inicial é a de que esfriaram a fervura. Vamos conferir?

DOI-CODI 2017: A polícia política da Lava Jato, por Sergio Saraiva | GGN

DOI-CODI 2017: A polícia política da Lava Jato, por Sergio Saraiva | GGN



“Se pensas que burlas as normas penais, insuflas, agitas e
gritas demais, a lei logo vai te abraçar, infrator com seus braços de
estivador”.



A reportagem do caderno Poder da
Folha de S. Paulo de 24 de março de 2017 descreve o método de
perseguição ao blogueiro Eduardo Guimarães e às suas fontes
jornalísticas. Traz também dados do inquérito da Polícia Federal que
levou à detenção de Eduardo, acusado por ter antecipado – em um furo de
reportagem – a condução coercitiva do presidente Lula.


“Se tu falas muitas palavras sutis E gostas de senhas,
sussurros, ardis, a lei tem ouvidos pra te delatar nas pedras do teu
próprio lar”.



Interessante é percebermos que a Policia Federal parece, nesse caso,
atuar como polícia política. Não parece que o vazamento em si seja mais
do que um mote para o constrangimento de adversários do “regime
imaginário de poder” que a Lava-Jato passou a representar.


O que há de mais representativo dessa posição ideológica assumida
pela Polícia Federal de Lava-Jato são os termos utilizados no inquérito.


A auditora da receita que teria vazado os dados para Eduardo
Guimarães foi rastreada pelas páginas da internet que seguia. As páginas
eram de esquerda e isso a tornou suspeita. Seguia publicações do
jornalista Fernando Moraes.


Voltaram a vasculhar as lixeiras do pessoal de esquerda. Agora, as lixeiras das caixas de e-mails.


“Se trazes no bolso a contravenção, muambas, baganas e
nem um tostão, a lei te vigia, bandido infeliz, com seus olhos de
raio-X”.



Agora vejamos como a PF classifica tais publicações: “desrespeitosas” e “ofensivas” para com a Lava-Jato.


Não, as publicações não eram críticas a Lava-Jato, eram ofensivas. A
Lava-Jato, no entender desses policiais, não é uma investigação, é uma
entidade em si mesma que pode ser desrespeitada e ofendida. Algo como a
“pátria” na época da ditadura.


Para criminalizar tal atitude, ressaltam que seguir tais publicações demonstra “alguma espécie de simpatia ou alinhamento à posição ideológica do ex-presidente do Brasil”. Referem-se a Lula – por óbvio fonte de inspiração ideológica deletéria à moral e à segurança nacional.


Pelas últimas pesquisas de intenção de voto, mais de 40% dos
eleitores brasileiros tem simpatia ou alinhamento ao ex-presidente do
Brasil. Como se posicionaria a polícia de Lava-Jato em relação a isso?


Simples, o Brasil é o Brasil e Lava-Jato é Lava-Jato – são países
diferentes, inimigos em alguns aspectos. Tal e qual demonstrar simpatia
por Fidel Castro era crime na ditadura.


Quanto à pessoa que serviu de ponte entre a auditora da receita e Eduardo Guimarães – seria um “radical político”.


Mas afinal o que é um “radical político”? Algo próximo de um “radical islâmico” ou a um “terrorista”?


Não sei, mas a Polícia Federal de Lava-Jato o julga como alguém muito perigoso.


“Se vives nas sombras, frequentas porões, se tramas
assaltos ou revoluções, a lei te procura amanhã de manhã com seu faro de
dobermann”.



O que se passa pela cabeça de um policial que redige um inquérito usando tais expressões?


Vive em que tempo de que país? No tempo das liberdades civis garantidas, no Brasil, pela Constituição de 1988?


“Art 5º – ninguém será privado de direitos por motivo de
crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, é livre a
expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença”.



Não, vive em outro país – no país da Lava-Jato.


Nesse país, uma investigação policial pode ser ofendida, quem
demonstrar simpatias por Lula é suspeito e quem se posicionar
formalmente em relação a isso é radical político.


E, então, em nome da pátria Lava-Jato, a detenção de Eduardo Guimarães passa a ser coerente.


“E se definitivamente a sociedade só te tem desprezo e
horror e mesmo nas galeras és nocivo, és um estorvo, és um tumor, a lei
fecha o livro, te pregam na cruz, depois chamam os urubus”.






PS1: os versos entremeados ao texto são da canção “Hino de Duran” de
Chico Buarque de Holanda. São de 1979 – em plena ditadura, e se parecem
aplicáveis ao momento atual do Brasil, não é por coincidência.


PS2: Oficina de Concertos Gerais e Poesia - mais um porão infecto dentro dos subterrâneos da liberdade.

'Curtidas' em rede social motivaram investigação

'Curtidas' em rede social motivaram investigação da PF sobre blogueiro - 24/03/2017 - Poder - Folha de S.Paulo



'Curtidas' em rede social motivaram investigação da PF sobre blogueiro


Marcos Bezerra/Futura Press/Folhapress
Eduardo Guimarães (centro) deixa a sede da Polícia Federal em São Paulo





Curtidas em páginas ligadas à esquerda no Facebook embasaram os pedidos
de quebra de sigilo telefônico dos suspeitos de vazar informações da
Lava Jato para o blogueiro Eduardo Guimarães, que foi levado a depor na terça-feira (21).





Documentos da Polícia Federal sobre a investigação foram tornados
públicos nesta quinta (23) após o juiz Sergio Moro determinar o fim do
sigilo do caso. Eles indicam, por exemplo, que o interesse da auditora
fiscal Rosicler Veigel pelas publicações do jornalista Fernando Morais
no Facebook chamou a atenção dos policiais.





Reproduções de postagens em que Morais critica a Lava Jato e Moro foram
anexados em seis páginas do pedido de busca e apreensão e de condução
coercitiva da auditora.





Apesar de afirmar que as convicções do jornalista não tinham "qualquer
pertinência" para a investigação, em dois momentos do inquérito a PF
pontua que as publicações dele são "desrespeitosas" com a Lava Jato.





Reprodução
Trecho de representação da PF à Justiça que destaca atividade de Rosicler Vegel no Facebook
Trecho de representação da PF à Justiça que destaca atividade de Rosicler Vegel no Facebook
Segundo os investigadores, o fato de Rosicler seguir as postagens de
Morais seria o indício de sua motivação ("alguma espécie de simpatia ou
alinhamento à posição ideológica do ex-presidente do Brasil") para
divulgar os documentos e justificou a quebra de seu sigilo telefônico.





No despacho, de 6 de março, a PF pediu à Justiça que aplicasse as mesmas
medidas cabíveis a Rosicler para Eduardo Guimarães, o blogueiro que
antecipou, em 26 fevereiro de 2016, a quebra do sigilo fiscal e a
condução coercitiva de Lula.





Moro havia determinado a quebra do sigilo telefônico de Guimarães, autor
do "Blog da Cidadania", argumentando que ele não é jornalista. Na
quinta (23), dois dias após Guimarães ser levado a depor, o juiz voltou atrás e pediu a anulação do conteúdo apreendido em seus computadores e telefones para identificar quem eram seus informantes.





RECONSTITUIÇÃO





Guimarães conta que, quando prestou depoimento na terça (21), os
delegados lhe disseram que já conheciam identidade de seus informantes:
Rosicler Veigel e Francisco José de Abreu Duarte, que telefonou para
repassar as informações supostamente obtidas pela auditora.





A apuração da PF começou do lado de dentro da Lava Jato.





Primeiro passo: levantaram quais servidores tiveram acesso à decisão de
quebra de sigilo de Lula entre 22 e 25 de fevereiro de 2016. Rosicler
está na lista, composta por 22 servidores —são delegados, procuradores,
assessores do Ministério Público e outros auditores fiscais.





Roberto Leonel de Oliveira Lima, chefe dos auditores da Receita,
informou à PF que Rosicler integrava uma equipe que se dedicava
exclusivamente à Lava Jato, mas não estava no núcleo de investigação
contra o ex-presidente.





O pedido de quebra de sigilo de Lula já circulava dentro da Lava Jato
meses antes, desde o final de 2015, sem que houvesse vazamentos. A PF
identificou que apenas dois servidores o viram somente em fevereiro de
2016: Rosicler e Paulo Marcelo Pizorusso dos Santos, também auditor.





Eis que as preferências da servidora no Facebook entraram na investigação e a transformaram em suspeita.





'RADICAL POLÍTICO'





Segundo passo: a polícia analisou os telefonemas feitos por Rosicler de 23 a 24 de fevereiro.





Neste último dia, ela ligou três vezes para Francisco Duarte, entre as
20h17 e as 20h19. Ele se declara jornalista e havia conhecido Rosicler
em janeiro durante uma viagem de avião, segundo a investigação.





Terceiro passo: em visita à página de Duarte no Facebook, a PF traça seu perfil como o de um "radical político".





Os indícios, anexados ao inquérito: curtia páginas ligadas à esquerda,
como a da deputada Jandira Feghali (PC do B-RJ), a do senador Lindbergh
Farias (PT-RJ), a de Fernando Haddad (PT-SP) e, também, a de Fernando
Morais. Além do "Blog da Cidadania", de Guimarães —o que levantou a
suspeita de que teria vínculos com o blogueiro.





Reprodução
Trecho de representação da PF à Justiça que destaca atividade de Francisco Duarte no Facebook
Trecho de representação da PF à Justiça que destaca atividade de Francisco Duarte no Facebook
Lima conta que a auditora recebeu a decisão por e-mail no dia 24 de
fevereiro, em um arquivo em formato pdf, um dia depois de o arquivo
chegar ao prédio digitalizado em um pen drive.





A PF também anexa reproduções de postagens de Duarte "ofensivas", em que
ele se refere à Lava Jato como "milícia-tarefa de Sergio Moro".





Quarto passo: quebra do sigilo telefônico de Duarte entre 24 e 25 de fevereiro, e também de Guimarães.





Com esses dados em mãos, a PF identificou 26 chamadas de Duarte para um
número que, depois, seria identificado como o de Eduardo Guimarães na
noite de 24 de fevereiro de 2016.





Guimarães contou à Folha que assistia a filmes quando percebeu as chamadas em seu celular.





O contato com Duarte —conforme a PF também identificou— se deu por uma troca de mensagens por WhatsApp.





Reprodução
Na investigação, a PF traçou a suposta rota do vazamento de decisão judicial sobre Lula
Na investigação, a PF traçou a suposta rota do vazamento de decisão judicial sobre Lula
O blogueiro relatou na ocasião da publicação que o informante, que disse
não conhecer anteriormente, ditou as informações que estavam no
documento em uma série de mensagens de áudio.





No pedido de condução coercitiva dos três, a PF diz que não tinha
conseguido esclarecer o meio com que a auditora repassou a decisão
judicial a Duarte.

Os “Intelectuais” Homologados

Os “Intelectuais” Homologados



Os “Intelectuais” Homologados

Villas, Pondés e afins são produtos de uma época sombria. Nunca
criticam estruturas. Diluem, em favor da rapidez e do simplismo, o tempo
e esforço exigidos pelo trabalho do pensamento





Por Fran Alavina



Não é de hoje que os intelectuais passaram a exercer uma função
midiática para além das antigas aparições públicas, nas quais a fala do
acadêmico se apresentava como um diferenciador no âmbito do debate
público. Entre a tagarelice das opiniões de pouca solidez, porém
repetidas como se certezas fossem, a figura do conhecedor, do estudioso,
ou mesmo do especialista surgia como um tipo de freio às vulgarizações e
distorções do cotidiano. Não que isso representasse uma alta
consideração e respeito da mídia hegemônica em relação ao conhecimento
acadêmico, uma vez que a fala do intelectual ao se inserir em um debate
cujas regras lhes são alheias facilitava a distorção de suas falas,
todavia mantinha-se a diferença explícita entre o conhecimento e a simples informação.


Ademais, a identificação dos intelectuais com certas causas os
afastavam do centro do poder e de seus bajuladores: os donos da mídia.
Tal representava um entreve por princípio. Era melhor não chamá-los a
ocupar um espaço voltado para um público amplo. Entre uma fala e outra
surgiria a criticidade que a mídia hegemônica procurava “amansar”.
Quando era inevitável ceder-lhes espaço, suas falas nunca poderiam ser
identificadas com a informação, nem apresentada na forma da informação.
Isto era o signo divisor, como que dizendo: “não liguem muito, é coisa
de intelectual (…)”. Nos últimos anos, contudo, essa diferença (entre
conhecimento e informação, entre o papel do intelectual e a função
midiática) não apenas se esgarçou, como se tornou quase nula. Por isso,
hoje estamos diante de um novo tipo de intelectual: o intelectual homologado.


Este tipo de intelectual surge nos espaços da mídia hegemônica como uma espécie de adendo à informação, um plus,
pois o saber, representado pela sua presença, que supostamente
emprestaria prestigio às notícias é dado sempre na forma da informação,
portanto descaracterizando os elementos que constituem qualquer tipo de
conhecimento. Ou seja, sobre critérios que fazem do saber um não saber.
Dilui-se na torrente informacional midiática o tempo demandado e o
esforço necessário exigidos pelo trabalho do pensamento, em favor da
rapidez e do simplismo. Porém, tais aspectos, embora importantes, não
configuram o fator determinante da homologação.


Estes intelectuais são homologados na medida em que suas falas
públicas têm aparente criticidade e profundidade. Em verdade, nunca
dizem algo que seja contra os interesses dos meios midiáticos que lhes
dão guarida, nunca fazem um crítica profunda que mexa com as estruturas
mais acomodadas do seu público, pois este já não é mais uma plateia que
dá ouvidos às palavras do homem de saber, mas um grande fã-clube
que ele não pode jamais desapontar. A formação deste fã-clube impede a
autonomia que caracteriza o sujeito de saber. Desse modo, não se
estabelece, de fato, uma relação que enseja conhecimento, mas uma relação de poder,
na qual o liame é a dependência entre os ditos e gestos e a obediência
na forma do consentimento Tanto é assim que nos raros momentos em que o
fã-clube do intelectual homologado se volta contra ele, o objeto da
“revolta” não é de cunho teórico, ou seja, não é um debate sobre suas
obras ou suas ideias, porém diz respeito a um fato de sua vida privada.
Seus fãs exercem uma vigilância policialesca, como os fãs de qualquer astro pop,
pois a relação se, por um lado, exige o consentimento, por outro lado,
faculta a vigilância aos que consentem. A figura do intelectual
homologado traz consigo uma legião de homologados intelectuais. Ora, não
foi isto que ocorreu nos últimos dias, com a pantomima em torno de uma
foto postada nas redes sociais pelo nosso mais bem acabado exemplo de
intelectual homologado?


Como a celebridade pop que depois de flagrada fazendo
algo que desagradou aos seus fãs, foi obrigado a redigir um pedido de
desculpas. Na “prestação de contas” ao seu fã-clube deixou-se escapar
toda a vaidade e o exibicionismo. Ele dividiu o mundo entre aqueles que o
amam e aqueles que o odeiam. Crença típica das celebridades midiáticas,
segundo a qual uma vez alcançado o posto de famoso, as pessoas ou o
invejam, ou lhes prestam deferência. Qualquer coisa fora desse script
é visto como algo sem sentido. Em alguns casos são críticos das
religiões, mas agem como os pastores que criticam, formando um rebanho
não pequeno. O que atesta que se trata de uma relação de poder, e de um
poder sedutor, pois travestido de saber.


O grande fã-clube reforça a secular vaidade dos intelectuais, que
hoje já não medem mais o êxito de suas carreiras pela qualidade de suas
publicações, ou por terem se tornado referência em suas áreas, ou mesmo
pelo número de citações de seus trabalhos em outros estudos. O
produtivismo do currículo lattes não lhe sacia mais. O êxito e a
qualidade são confundidos com o sucesso de público, a qualidade mede-se
pela quantidade de curtidas que suas páginas virtuais possuem, pelos
vídeos postados que se tornam virais e pelo maior número de palestras
pagas que podem amealhar. Embora, na maioria dos casos, suas formações e
carreiras sejam devidas ao sistema público e gratuito de ensino
superior, ao venderem palestras e workshops pagos e fora das
universidades públicas, além de distorcerem a função social do saber,
tornam-se um tipo de mercadoria. Por conseguinte, expressam a ideologia
neoliberal segundo a qual todo indivíduo é um empreendedor de si mesmo.
Como empreendedores, eles se vendem para um público determinado, cujo
nicho de mercado descortinaram. Tal é o caráter mercadológico que
perpassa a atividade do intelectual homologado.


Em alguns casos, seus discursos públicos e “intervenções” parecem ter
uma singular acidez crítica. Porém, se trata de uma semelhança
aparente, o intelectual homologado tem um efeito placebo sobre o
grande público, sua crítica nunca visa a raiz das coisas, mas alguns
aspectos modísticos, oportunistas. Aceitando a homologação, seu papel é
entreter, desviando a atenção do público com base no conhecimento e na
posição que lograram.




Dessa maneira, suas falas podem ser confundidas com apresentações de stand-up comedy.
Sabem animar auditórios como poucos. O intelectual homologado, com
efeito, é o produto mais recente da indústria cultural. Tal figura,
típica do farsesco debate público contemporâneo, contudo não surgiu do
nada. Embora seja uma figura recente, o intelectual homologado é
precedido por uma história própria da intelectualidade e suas
determinações de classe. Ainda que, muitas vezes, ele queira se
apresentar como alguém que fala de fora e acima do corpo social, assim
observa sem sujar as mãos, supondo uma posição privilegiada e imparcial,
quase sempre tende a repetir, sob o manto do discurso abalizado, a
visão parcial de sua classe social.


O intelectual homologado é precedido pela figura do intelectual orgânico que outrora se comprometia com um projeto nacional-popular; este, um pouco depois, deu lugar ao intelectual engajado. Já nos anos 1990, verificou-se o silêncio dos intelectuais
após o fim das utopias e a derrota histórica das formas alternativas de
organização social até então constituídas. Esta derrota histórica e
este silêncio, que apareciam como um gesto de mea culpa, formaram
um interdito que reduziu os objetos do discurso público do intelectual,
objetos que à medida que diminuíam de dimensão propiciaram a
identificação do intelectual com o especialista. Tal se configurou,
primordialmente, na figura do economista. Todavia, depois da crise mais
recente do capital, a fala pública do economista perdeu crédito,
surgindo em seu lugar o intelectual homologado que na maioria dos casos
são homens saídos das ciências humanas, mais particularmente da
filosofia, da história e da educação. Por enquanto, os geógrafos,
antropólogos, e parte dos cientistas sociais, parecem resistir à
homologação, ainda que ela seja extremamente sedutora.
Pasolini, em seus textos corsários e luteranos, que
tinham como objeto a Itália dos anos 1970, já diagnosticava a figura do
intelectual homologado como um produto que perduraria por longo tempo no
espaço público, pois sua vitalidade se alimenta justamente de um
crescente anti-intelectualismo. Enquanto a postura do intelectual requer
algo contrário do que aí se apresenta, aceita-se o simulacro como se
fosse a própria coisa. A tagarelice do intelectual homologado, que
discursa sobre tudo por medo de ser esquecido, não é o fim do silêncio
dos intelectuais, mas sua confirmação. Quanto mais falam, mais se mostra
sobre o que silenciam.


Entre nós, não faltam casos ilustrativos. Como vivem da imagem
midiática que construíram, os intelectuais homologados apresentam-se com
certo aspecto caricatural, como o personagem que se identifica pelo
bordão. O historiador da UFSCar, por exemplo, quase sempre se apresenta
em tom elevado, dedo em riste, e no auge de suas “intervenções” mais
acaloradas não fica com um fio de cabelo fora do lugar. Bate-boca e
indisposição com políticos de esquerda, como se isto fosse sinal do bom
debate, é o diferencial de seu produto. Já o filósofo do politicamente
incorreto ressuscitou o cachimbo como secular excentricidade do
intelectual. Perfazendo uma imagem que beira o kitsch, com
frequência posta vídeos em que aparece fumando (talvez seja este o signo
do politicamente incorreto?!) e cercado de livros que lhe emprestam a
áurea de sabichão.


Seria apenas cômico, se não configurassem a expressão trágica do pensamento fácil. O
intelectual homologado é o último estágio da miséria dos intelectuais.
Indica a perda de dignidade do pensamento crítico, na verdadeira acepção
do termo, e, talvez, o vislumbre de sua derrota.



Fran Alavina

Doutorando do Programa de Pós-Graduação
em Filosofia da USP. Mestre em Estética e Filosofia da Arte pela
Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP.

Aragão e o heroísmo do Edu

Aragão e o heroísmo do Edu — Conversa Afiada



Aragão e o heroísmo do Edu

Brigões voltaram atrás para resguardar a face
























O Conversa Afiada publica artigo do ex-Ministro da Justiça (a Dilma acertou por último) Eugênio Aragão*:

O heroísmo de Edu e a briga pela xepa do final da feira


Tem gente que conduz procedimentos investigatórios criminais e
ações penais como se fossem um espetáculo de luta livre. Dão um péssimo
exemplo para o país e provam o desprezo pelo Estado de Direito. Um
desses implacáveis lutadores livres togados mora em Curitiba e dispõe de
vasta claque num auditório ensandecido que entra em êxtase ao ver
sangue vermelho escorrer pela sarjeta da república. Desconhece limites.
Tudo pode. Os tribunais guardiões da ordem jurídica ora coonestam-no,
ora se acumpliciam, ora se acovardam. É verdade que hoje há magistrado
de cúpula que troveja indignação com sua forma extravagante de
jurisdicionar, mas o faz com cinismo seletivo: enquanto o brigão forense
desferia suas voadoras nos políticos que não são de sua afinidade,
silenciava ou chegava, até, a aplaudir e ovacionar; hoje, tendo o
encrenqueiro resolvido dar caneladas nos de seu rebanho, deblatera
midiaticamente.


Não falta blogueiro oportunista para dar razão ao seletivo magistrado
de cúpula, quando, antes, era puxador do coro em favor dos zigue-zagues
processuais do juiz de piso. Dançava com pomponzinhos de torcida
americana feminina e gritava "give me an M, give me an O, give me an R,
and give me an O...", e, agora, passa às vaias e aos apupos sonoros
contra o antigo herói.


No circo de torcidas celeradas, de quem joga saco de urina sobre a
platéia de baixo, sobra pouco para a dignidade da Justiça. Nossa cultura
jurídica se assemelha cada vez mais à cultura da antiga "Geral" do
Maracanã, onde a balbúrdia, o empurra-empurra e o baixo calão eram
rotina.


Quando o obscurantismo passa a ser a cosmovisão dos poderosos, não se
pode deixar de prestar homenagem aos que não se intimidam e continuam a
nos brindar com sua corajosa voz:


"Pobre del cantor de nuestros días
que no arriesgue su cuerda
por no arriesgar su vida.
Pobre del cantor que nunca sepa
que fuimos la semilla y hoy somos esta vida.
Pobre del cantor que un día la historia
lo borre sin la gloria de haber tocado espinas.

Pobre del cantor que fue marcado
para sufrir un poco y hoy está derrotado.
Pobre del cantor que a sus informes
les borren hasta el nombre con copias asesinas.
Pobre del cantor que no se alce
y siga hacia adelante con más canto y más vida.
Pobre del cantor que no halle el modo
de tener bien seguro su proceder con todos.
Pobre del cantor que no se imponga
con su canción de gloria, con embarres y lodos.
Pobre del cantor de nuestros días
que no arriesgue su cuerda
por no arriesgar su vida.
 Pobre del cantor que nunca sepa
que fuimos la semilla y hoy somos esta vida." (Pablo Milánez, Pobre del Cantor).
Um desses voceros é Eduardo Guimarães, ou Edu, para os
muitos admiradores de seu caráter e personalidade. Seu jornalismo
investigativo é apurado, cuidadoso e honesto sem ser piegas. É alguém
como você e eu, "the man next door". Não almeja glória nem riqueza.
Almeja respeito e reconhecimento por sua seriedade profissional. Não se
rebaixa ao mercenarismo vulgar de quem o chama de aventureiro. Não
destila ódio sob encomenda. Não tem vergonha de expressar seu ponto de
vista, balizado por sólidas e testadas informações advindas de uma rede
de fontes que cultiva com sincera amizade, fiel sem deixar de ser
crítica.


Edu é um homem livre. E sua liberdade incomoda. Incomoda aos que se
venderam aos interesses escusos e praticam uma comunicação suja, sem
compromisso com os fatos, somente com as versões interesseiras. Edu os
desmente. Edu lhes mostra que há uma comunicação de escol, desprendida
dos poderosos e endinheirados. Ele é o que os praticantes do jornalismo
lacaio não conseguem ser. Vêem-no querido e admirado e sentem-se
despeitados como a raposa de La Fontaine ao falar das uvas.


"Aventureiro"! Façam-me rir. Têm inveja de seu direito de ousar e
vencer! Por isso "aventureiro"... Edu é um Indiana Jones cercado de
caçadores de tesouros nazistas. Caçadores de fama a todo custo, que usam
seus podres poderes para dificultar a missão do honesto e desajeitado
arqueólogo. Mas, como sói ocorrer com Indiana Jones, suas virtudes
acabam sempre vencendo os vícios de seus malfeitores.


É isso, talvez, que explique o imbroglio em que se meteu o
processualista de Curitiba ao determinar, ao arrepio da constituição e
de tratados de proteção de direitos humanos, o varejo na residência de
Edu, para tentar descobrir sua fonte de informação sobre a suposta
iminência de diligências que teria ordenado contra Lula. O possível furo
do bravo jornalista talvez tenha "melado" o espetáculo que estava por
acontecer e conferir mais fama ao brioso magistrado. Ao determinar a
medida coercitiva contra o jornalista, o juiz fez pouco caso da
circunstância de já ostentar, ele próprio, relação contenciosa pessoal
contra est'último; a contenda notória obviamente não recomendava que
fosse, desse juiz, se legítima, qualquer iniciativa de busca e
apreensão, por sugerir conflito de interesses e, consequentemente, sua
suspeição. Mas em tempos nos quais magistrados de cúpula podem mudar de
público sua opinião de acordo com o alvo de seus juízos políticos; em
tempos nos quais o candidato à vaga suprema aceita convite para
agradável jantar num love boat, com seus inquisidores senatoriais às
vésperas da sabatina constitucional; em tempos nos quais um ministro do
STF chama publicamente seu colega de inimputável por decisão que este
tomou e não lhe agradou... nesses tempos tudo é possível. Não é uma
busca violadora da prerrogativa profissional de um jornalista que vai
causar escândalo. Brigas pela xepa são comuns em final de feira e não
atraem indignação de ninguém.


Mas Edu venceu. Edu não foi desmentido em sua informação sobre o
projeto de se alvejar Lula para fechar-lhe o caminho para as eleições de
2018. E isso apesar de ter seu computador devassado, sua agenda e seu
celular violados. Apesar de ter sido sequestrado da cama matrimonial às
seis da manhã e mantido sem contato com seus advogados e familiares, em
franca violação das mais comezinhas garantias processuais de qualquer
arguido. Venceu. Mostrou-nos a que ponto chega o complexo persecutório
policial-judicial em nosso país para matar doentia curiosidade sobre
quem teria sido a fonte de informação do jornalista, dado sagrado e
protegido pela constituição como pressuposto básico do direito à
comunicação. Edu, que nem Indiana Jones, completou com sucesso sua
missão e merece o Prêmio Pulitzer. Já os brigões... ah os brigões! Além
de obrigados a voltar atrás em sua senda inconstitucional para
resguardar a face, passaram a merecer o prêmio da xepa de ouro, pelo
deprimente "barraco" encenado para a sociedade cansada desses arroubos
corporativos na contramão da cidadania.


*Eugênio José Guilherme de Aragão, ex-ministro da Justiça do
governo Dilma Rousseff, professor da Faculdade de Direito da
Universidade de Brasília e advogado



sábado, 18 de março de 2017

Acordamos no paraíso

Acordamos no paraíso - TIJOLAÇO |



Acordamos no paraíso

fausto


15 de março de 2017.


O Brasil revirou as entranhas do seu sistema político e, agora, somos
um país de hábitos e práticas mais puros do que os de uma sociedade de
querubins.


Nosso sistema político está purgado de todos os pecados, graças à
ação de alguns rapazes bem trajados e mais bem pagos ainda e pela
abrupta conversão de bilionários que, afinal, praticaram seu primeiro
ato honesto nas vidas, ansiosos para voltar às suas mansões, cobertura,
a seus porsches e BMWs, a seus caribes e europas.


Agora, impera a moralidade, aquela que nos dá o sacramento da
recessão, a benção do atraso, as delícias da febre amarela que retorna, o
desmanche do pensamento humanista no ensino, a libertação do desemprego
crescente e o futuro radiante de, de volta ao trabalho, jornadas
santificantes de 10 horas, 12, e a benção de trabalhar até a morte para
que, afinal, mereçamos o descanso da paz eterna.


Não, não seremos impiedosos com os que pecaram como os outros, desde
que não tenham sido hereges ao ponto de negar nossa vocação de colônia,
ou de não reconhecer nossa natural inferioridade. Todos os outros que
participaram da bandalheira da política, afinal, jamais negaram a fé que
o mercado nos libertará.


Podem e devem continuar no comando do país, como pôde Eduardo Cunha
permanecer na presidência da Câmara enquanto cumpria os desígnios deste
estranho deus.


Que completem a obra, que entreguem o petróleo, que nos reduzam à
escravidão sem Lei do Sexagenário sequer, que terminem de abolir o
demoníaco livro da CLT. aquele que nos condena ao atraso dos direitos do
trabalho e saneiem, finalmente, os sorvedouros da saúde e da educação,
que nos privam do supremo progresso de sermos um pagador saudável, que
mata a família de fome mas paga regularmente ao agiota.


Alcançamos a pureza. Nos sobraram, felizmente, pró-homens como Jair
Bolsonaro e Paulo Maluf (dizem que tem um sucedâneo, que varre e não
faz), Maluf que se orgulha de dizer hoje, na Folha, que ‘Não só estou fora da lista de Janot, como também não estou no mensalão’.


Outros haverá, porque não se diga que a Inquisição não é generosa.


Aos hereges, permitirá a alegria de ver alguns pequenos nobres
queimados também. E alguns dos grandes, também, desde que já obsoletos e
desacreditados.


O importante é que, afinal, estamos nas mais santas mãos: polícia,
promotores, juízes. Seus impolutos polegares, afinal, definirão quem
vive e quem arderá no fogo.


Agora vamos fruir do paraíso da moralidade, como já outro tivemos, o
do socialismo de Fernando Collor, que nos deixou a todos iguais, nos 50
cruzeiros que era o máximo que alguém podia ter no banco.


Ainda há um passo a dar, porque ainda existe memória e voto para as
almas que se arrastam na pobreza e para os espíritos que não se deixam
tomar pelo fanatismo.


Nada que depois do vazamento seletivo, do processo veloz  ou lento,
sob os tambores da mídia e os nossos novos homens de preto não possam
resolver com o seu index candidatorum prohibitorium não possam se achar capazes de resolver.


As portas da Nova Ordem, porém, estão abertas.


Sieg heil!

A CIA lê a teoria francesa

ODiario.info » A CIA lê a teoria francesa: sobre o trabalho intelectual de desmantelamento da Esquerda cultural



Sobre o trabalho intelectual de desmantelamento da Esquerda cultural

Está
já muito solidamente identificada e investigada a intervenção da CIA no
plano da cultura e das artes, no plano do esforço de influenciar a
intelectualidade. Este texto recorda aspectos fundamentais de uma acção
que, nestes moldes, remonta à guerra-fria. E que exige uma muito maior
mobilização e combate, e de compreensão de que o terreno da cultura é
hoje uma das frentes centrais do combate anti-imperialista.




Presume-se,
com frequência, que os intelectuais têm pouco ou nenhum poder político.
Empoleirados numa privilegiada torre de marfim, desligados do mundo
real, envolvidos em debates académicos sem sentido sobre minúcias
especializadas ou flutuando nas abstrusas nuvens da alta teoria, os
intelectuais são frequentemente retratados não apenas como isolados da
realidade política mas também como incapazes de ter nela qualquer
impacto significativo. A CIA (Agência Central de Inteligência dos
Estados Unidos) não pensa assim.


De fato, a agência responsável pelos golpes de Estado, os
assassínios direccionados e a manipulação clandestina de governos
estrangeiros não só acredita no poder da teoria, como também dedicou
significativos recursos para ter um grupo de agentes secretos dedicados a
debruçar-se sobre o que alguns consideram ser a mais recôndita e
intrincada teoria já produzida. Num intrigante trabalho de pesquisa
escrito em 1985 (ver aqui),
e recentemente publicado com pequenas alterações através da Lei de
Liberdade de Informação (Freedom of Information Act), a CIA revela que
os seus agentes andaram estudando a complexa e internacionalmente
influente teoria francesa, filiada nos nomes de Michel Foucault, Jacques
Lacan e Roland Barthes.


A imagem de espiões americanos reunindo-se em cafés parisienses para
estudar assiduamente e comparar notas acerca dos sumos-sacerdotes da
intelligentsia francesa pode chocar quem presuma que tal grupo de
intelectuais é constituído por luminárias cuja requintada sofisticação
jamais poderia ser capturada numa rede policial tão tosca, ou quem
assuma que, pelo contrário, charlatães produtores de uma retórica
incompreensível que pouco ou nenhum impacto tem sobre o mundo real. Não
deveria, entretanto, surpreender aqueles familiarizados com o longo e
contínuo investimento da CIA numa guerra cultural global, incluindo o
apoio às suas formas mais vanguardistas, que tem sido bem documentado
por pesquisadores como Frances Stonor Saunders, Giles Scott-Smith, Hugh
Wilford (fiz a minha própria contribuição em “Radical History & the
Politics of Art”, ver aqui).


Thomas W. Braden, anterior supervisor de actividades culturais na
CIA, explicou o poder da ofensiva cultural da Agência num franco relato publicado em 1967
: “Lembro-me da enorme alegria que tive quando a Orquestra Sinfónica de
Boston [que foi apoiada pela CIA] ganhou mais elogios para os EUA em
Paris do que John Foster Dulles ou Dwight D. Eisenhower poderiam ter
conseguido com uma centena de discursos”. Esta não era de modo algum uma
operação pequena ou pouco elaborada. De facto, como Wilford argumentou
com razão, o Congresso para a Liberdade Cultural (CCF), que foi sediado
em Paris e mais tarde identificado como uma organização da CIA no
decurso da Guerra Fria, foi um dos mais importantes patrocinadores na
história mundial, apoiando uma incrível gama de actividades artísticas e
intelectuais. Contava com escritórios em 35 países, publicou dezenas de
revistas de prestígio, esteve envolvida na indústria do livro,
organizou conferências internacionais de grande relevo e exposições de
arte, coordenou apresentações e concertos, e contribuiu com amplo
financiamento para vários prémios culturais e bolsas de estudo, bem como
para organizações de fachada como a Farfield Foundation.


A agência de inteligência entende que a cultura e a teoria são armas
cruciais no arsenal global que desdobra a fim de perpetuar interesses
dos EUA em todo o mundo. O trabalho de investigação de 1985, intitulado
“França: Defecção dos intelectuais de esquerda”, recentemente publicado,
examina – sem dúvida para manipular – a intelectualidade francesa e o
seu papel fundamental na conformação de tendências que geram opções
políticas. Sugerindo que tem havido um relativo equilíbrio ideológico
entre esquerda e direita na história do mundo intelectual francês, o
relatório destaca o monopólio da esquerda no imediato período pós-guerra
– ao qual, sabemos, a CIA se opôs raivosamente – devido ao papel chave
dos comunistas na resistência ao fascismo e em finalmente ganhar a
guerra contra ele. Embora a direita tivesse sido massivamente
desacreditada devido à sua contribuição directa para os campos de
extermínio nazistas, bem como pela sua agenda xenófoba, anti-igualitária
e fascista (de acordo com a própria descrição da CIA), os agentes
secretos sem nome que elaboraram o esboço do estudo sublinham com nítido
deleite com o retorno da direita aproximadamente a partir do início dos
anos 1970.

Mais especificamente, os guerreiros culturais secretos aplaudem o que
vêem como um duplo movimento que tem contribuído para a deslocação do
foco crítico da intelligentsia dos EUA para a URSS. À esquerda, havia
uma gradual desafectação intelectual para com o estalinismo e o
marxismo, uma retirada progressiva do debate público por parte dos
intelectuais radicais e um afastamento teórico do socialismo e do
partido socialista. Mais à direita, os oportunistas ideológicos
referidos como “Novos Filósofos” e os intelectuais da “Nova Direita”
lançaram uma intensa campanha mediática de denegrimento do marxismo.


Enquanto outros tentáculos da organização mundial de espionagem
estavam envolvidos em derrubar líderes eleitos democraticamente,
fornecendo inteligência e financiando ditadores fascistas e apoiando
esquadrões da morte de direita, o esquadrão central de intelligentsia de
Paris estava a recolher dados sobre como a deriva teórica à direita do
mundo beneficiava directamente a política externa dos EUA. Os
intelectuais de esquerda do imediato pós-guerra tinham sido abertamente
críticos do imperialismo norte-americano. A influência mediática de
Jean-Paul Sartre como crítico marxista aberto e seu papel notável – como
fundador do Libération – em desmascarar a estação da CIA em Paris e
dezenas de agentes secretos, foi monitorado de perto pela Agência e
considerado um problema sério.


Em contraste, a atmosfera anti-soviética e antimarxista da emergente
era neoliberal desviou o escrutínio público e forneceu excelente
cobertura para as guerras sujas da CIA, tornando “muito difícil para
qualquer um mobilizar entre as elites intelectuais oposição
significativa às políticas dos EUA na América Central, por exemplo”.
Greg Grandin, um dos principais historiadores da América Latina, resumiu
perfeitamente esta situação em “The Last Colonial Massacre” (ver aqui):
“Além de realizar intervenções visivelmente desastrosas e mortíferas na
Guatemala em 1954, na República Dominicana em 1965, no Chile em 1973,
em El Salvador e Nicarágua durante a década de 1980, os Estados Unidos
emprestaram discreto e constante apoio financeiro, material e moral aos
Estados terroristas assassinos e contra-insurgentes. […] Mas a
enormidade dos crimes de Stálin garante que tais histórias sórdidas, por
mais convincentes, completas ou condenatórias, não perturbem a
fundamentação de uma cosmovisão que assume o papel exemplar dos Estados
Unidos na defesa do que hoje conhecemos como democracia.”


É neste contexto que os mandarins mascarados da CIA elogiam e apoiam
a crítica implacável que uma nova geração de pensadores antimarxistas
como Bernard-Henri Levy, André Glucksmann e Jean-François Revel
desencadearam sobre “a última camarilha de comunistas ilustrados”
(composta, segundo os agentes anónimos, por Sartre, Barthes, Lacan e
Louis Althusser). Dadas as tendências de esquerda destes antimarxistas
na sua juventude, eles fornecem o modelo perfeito para construir
narrativas enganosas que amalgamam o suposto amadurecimento político
pessoal com a marcha progressiva do tempo, como se tanto a vida
individual como a história fossem simplesmente uma questão de “crescer” e
reconhecer que a profunda transformação social igualitária é uma coisa
do passado pessoal e histórico. Este derrotismo paternalista e
omnisciente não só serve para desacreditar novos movimentos,
especialmente os impulsionados pela juventude, mas também desfigura os
relativos sucessos da repressão contra-revolucionária como o natural
progresso da história.


Mesmo teóricos que não eram tão opostos ao marxismo quanto esses
intelectuais reaccionários deram uma contribuição significativa para um
ambiente de desilusão com o igualitarismo transformador, o desapego à
mobilização social, a “investigação crítica” desprovida de políticas
radicais. Isto é extremamente importante para entender a estratégia
geral da CIA nas suas amplas e profundas tentativas de desmantelar a
esquerda cultural na Europa e em outros lugares. Reconhecendo que era
improvável que pudesse aboli-la inteiramente, a organização de
espionagem mais poderosa do mundo procurou afastar a cultura de esquerda
de uma resoluta política anticapitalista e transformadora para posições
reformistas de centro-esquerda que são menos abertamente críticas das
políticas externa e doméstica dos EUA. Na verdade, como Saunders
demonstrou detalhadamente, a Agência seguiu na esteira do Congresso de
liderança Macartista do período pós-guerra de modo a apoiar directamente
e promover projectos de esquerda que desviaram os produtores culturais e
os consumidores para longe da esquerda resolutamente igualitária. Ao
cindir e desacreditar esta última, também aspirava a fragmentar a
esquerda em geral, deixando o que restava do centro-esquerda com apenas
um mínimo poder e apoio público (bem como sendo potencialmente
desacreditada pela sua cumplicidade com políticas da direita de luta
pelo poder, questão que continua a atormentar partidos
institucionalizados contemporâneos à esquerda).


É sob esta luz que devemos compreender a afeição da Agência de
inteligência pelas narrativas de conversão e a sua profunda apreciação
pelos “marxistas reformados”, um leitmotiv que atravessa o trabalho de
pesquisa sobre a teoria francesa. “Ainda mais eficazes em minar o
marxismo”, escrevem as toupeiras, “foram aqueles intelectuais que se
propuseram aplicar a teoria marxista às ciências sociais mas terminaram
por repensar e rejeitar toda essa tradição”. Citam, em particular, a
profunda contribuição dada pela Escola dos Annales na historiografia, e
pelo estruturalismo – particularmente Claude Lévi-Strauss e Foucault – à
“demolição crítica da influência marxista nas ciências sociais”.
Foucault, que é referido como “o pensador mais profundo e influente da
França”, é especificamente aplaudido pelo seu elogio aos intelectuais da
Nova Direita por recordarem aos filósofos que “sangrentas”
consequências “fluíram da teoria social racionalista do Iluminismo do
século 18 e da era revolucionária”. Embora seja um erro creditar o
colapso de qualquer política ou efeitos políticos face a uma única
posição ou resultado, o esquerdismo anti-revolucionário de Foucault e a
sua perpetuação da chantagem do Gulag – isto é, a afirmação de que os
movimentos radicais expansivos que visam a profunda transformação social
e cultural apenas ressuscitam as mais perigosas tradições – estão
perfeitamente em sintonia com as estratégias globais de guerra
psicológica da agência de espionagem.


A leitura da teoria francesa pela CIA deveria dar-nos uma pausa,
então, para reconsiderar o verniz radical-chic que acompanhou boa parte
de sua recepção anglófona. De acordo com uma concepção etapista da
história progressista (que é normalmente cega à sua teleologia
implícita), o trabalho de figuras como Foucault, Derrida e outros
teóricos franceses de ponta é muitas vezes identificado intuitivamente
como uma forma de crítica profunda e sofisticada que presumivelmente
ultrapassa qualquer coisa encontrada nas tradições socialista, marxista
ou anarquista. É certamente verdade, e merece ênfase, o facto de que a
recepção anglófona da teoria francesa, como justamente apontou John
McCumber, teve importantes implicações políticas enquanto polo de
resistência à falsa neutralidade política, aos tecnicismos seguros da
lógica e da linguagem, ou à ideologia do conformismo operante nas
tradições da filosofia anglo-americana apoiadas por McCarthy. No
entanto, as práticas teóricas de figuras que deram as costas ao que
Cornelius Castoriadis chamou a tradição da crítica radical –
significando resistência anticapitalista e anti-imperialista –
certamente contribuíram para a deriva ideológica que se afasta de
políticas transformadoras. Segundo a própria Agência de espionagem, a
teoria francesa pós-marxista contribuiu directamente para o programa
cultural da CIA de empurrar a esquerda para a direita, ao mesmo tempo
que desacreditava o anti-imperialismo e o anticapitalismo, criando assim
um ambiente intelectual no qual seus projectos imperiais poderiam ser
prosseguidos sem serem incomodados pelo exame crítico sério por parte da
intelligentsia.


Como sabemos da investigação sobre o programa de guerra psicológica
da CIA, a organização não só acompanhou e procurou coagir os indivíduos,
mas sempre se interessou por compreender e transformar instituições de
produção e distribuição cultural. Na verdade, o seu estudo sobre a
teoria francesa aponta para o papel estrutural que as universidades, as
editoras e os meios de comunicação social desempenham na formação e
consolidação de um ethos político colectivo. Em descrições que, tal como
o resto do documento, nos deveriam convidar a pensar criticamente sobre
a actual situação académica no mundo anglófono e para além dele, os
autores do relatório colocam em primeiro plano as formas pelas quais a
precarização do trabalho académico contribui para a demolição do
radicalismo de esquerda. Se as pessoas de esquerda mais convictas não
conseguirem os meios materiais necessários para realizar seu trabalho,
ou se somos mais ou menos subtilmente obrigados a conformar-nos para
encontrar emprego, publicar os nossos textos ou ter uma audiência, estão
dadas as condições estruturais para uma comunidade de esquerda
enfraquecida. A profissionalização do ensino superior é outra ferramenta
utilizada para este fim, uma vez que visa transformar as pessoas em
engrenagens tecnocientíficas no aparelho capitalista em vez de cidadãos
autónomos com ferramentas confiáveis para a crítica social. Os mandarins
da teoria da CIA louvam assim os esforços por parte do governo francês
para “empurrar estudantes para os negócios e cursos técnicos”. Apontam
igualmente os contributos de editores de destaque como Grasset, dos
grandes media e o sucesso da cultura americana na promoção da sua
plataforma pós-socialista e anti-igualitária.


Que lições podemos extrair deste relatório, particularmente no
ambiente político actual, com o seu contínuo ataque à intelligentsia
crítica? Em primeiro lugar, ele deve ser um lembrete convincente de que,
se alguns presumem que os intelectuais são impotentes, e que as nossas
orientações políticas não importam, a organização que tem sido um dos
mais poderosos corretores de poder na política mundial contemporânea não
pensa desse modo. A Agência Central de Inteligência, como o seu nome
ironicamente sugere, acredita no poder da inteligência e da teoria, e
devemos levar tal facto muito a sério. Supondo falsamente que o trabalho
intelectual tem pouco ou nenhum impacto no “mundo real”, não apenas
deturpamos as implicações práticas do trabalho teórico, como corremos o
risco de fechar perigosamente os olhos aos projectos políticos dos quais
podemos facilmente tornar-nos, sem o saber, embaixadores culturais.
Embora seja certo que o Estado-nação e o aparelho cultural franceses
constituem uma plataforma pública muito mais significativa para os
intelectuais do que a que se encontra em muitos outros países, a
preocupação da CIA em mapear e manipular a produção teórica e cultural
noutros lugares deveria servir como um alerta para todos nós.


Segundo, os agentes do poder do presente têm interesse em cultivar
uma intelectualidade cuja visão crítica tem sido embotada ou destruída
por instituições patrocinadoras fundadas em interesses empresariais e
tecnocientíficos, equiparando política de esquerda com anti
cientificidade, correlacionando a ciência com uma suposta - mas falsa -
neutralidade política, promovendo meios de comunicação que saturam as
ondas sonoras com cavaqueira conformista, sequestrando gente sólida de
esquerda fora das principais instituições académicas e dos media, e
desacreditando qualquer reivindicação de transformação igualitária e
ecológica radical. Idealmente, procuram nutrir uma cultura intelectual
que, se está à esquerda, é neutralizada, imobilizada, tornada apática e
contente com um esbracejar derrotista, ou com o criticismo passivo da
esquerda radicalmente mobilizada. Esta é uma das razões pelas quais
podemos considerar a oposição intelectual ao esquerdismo radical, que é
preponderante na academia norte-americana, como uma posição política
perigosa: não é ela directamente cúmplice da agenda imperialista da CIA
em todo o mundo?


Terceiro, para combater este assalto institucional a uma resoluta
cultura de esquerda, é imperativo resistir à precarização e à educação
voltada para a profissionalização. É igualmente importante criar esferas
públicas de debate verdadeiramente crítico, proporcionando uma
plataforma mais ampla para aqueles que reconhecem que outro mundo é não
apenas possível mas necessário. Também precisamos de nos unir para
contribuir para (ou continuar a) desenvolver meios de comunicação
alternativos, diferentes modelos de educação, contra-instituições e
colectivos radicais. É vital promover precisamente o que os combatentes
culturais encobertos querem destruir: uma cultura de esquerda radical
com um amplo quadro institucional, amplo apoio público, influência
mediática prevalecente e poder expansivo de mobilização.


Finalmente, os intelectuais do mundo devem unir-se no reconhecimento
do nosso poder e basear-se nele para fazer tudo o que pudermos para
desenvolver uma crítica sistémica e radical tão igualitária e ecológica
como anticapitalista e anti-imperialista. As posições que se defendem na
sala de aula ou publicamente são importantes para definir os termos do
debate e traçar o campo da possibilidade política. Em oposição directa à
estratégia cultural da agência espiã de fragmentar e polarizar, pela
qual tem buscado separar e isolar a esquerda anti-imperialista e
anticapitalista, que ao mesmo tempo se opõe a posições reformistas,
devemos federar-nos e mobilizar-nos, reconhecendo a importância de
trabalharmos juntos – em toda a esquerda, como Keeanga-Yamahtta Taylor nos
lembrou recentemente – para o cultivo de uma intelligentsia
verdadeiramente crítica. Ao invés de proclamar ou lamentar a impotência
dos intelectuais, devemos aproveitar a capacidade de falar a verdade ao
poder trabalhando em conjunto e mobilizando a nossa capacidade de criar
colectivamente as instituições necessárias para um mundo aberto à
esquerda cultural. Pois é somente em tal mundo, e nas
caixas-de-ressonância que a inteligência crítica produz, que as verdades
ditas podem realmente ser ouvidas e assim mudar as próprias estruturas
de poder.


Publicado originalmente no site The Philosophical Salon e traduzido por Pablo Polese para o site Passa Palavra.

Tradução revista por odiario.info