Batochio: Como no Brasil de hoje se “monta” um processo para condenar sem provas
09 de março de 2017 às 12h45Direito de defesa em processo politizado
“Quand les délateurs sont récompensés,
on ne manque plus de culpables”
Malesherbes
por José Roberto Batochio*, no Estadão
A sentença, segundo elementar princípio da Teoria Geral do Processo e
dogma do processo penal civilizado, é o epílogo, o desfecho de toda
ação judicial. Trata-se da síntese resultante da necessária conflagração
dialética entre a tese acusatória e a antítese defensiva, estruturadas à
vista da prova recolhida nos autos.
A partir da notícia da ocorrência de uma infração penal realizam-se
investigações, empreendem-se diligências, ouvem-se indiciados e
testemunhas, oferecem-se denúncias, apresentam-se contraposições
defensivas, colhem-se provas perante o juiz da causa, postulam-se
condenações e absolvições e somente então têm lugar as decisões que
rechaçam a imputação ou punem os acusados. Esse democrático e secular
ritual sofre radical inversão, ou, como diz o povo, “é virado de
ponta-cabeça” nos processos impregnados de fatores político-partidários
ou disputas ideológicas.
Nesses as fases procedimentais, com exceção da defesa, movem-se no
sentido inverso, é dizer, de trás para a frente. É a preconcebida
condenação, e não a isenta apuração de um fato delituoso, que motiva,
orienta e subordina toda a sinergia processual. O inquérito policial é
dirigido não como uma apuração imparcial, mas como um encomendado e
irrevogável libelo incriminador de mão única, que só conduz a um e
inexorável resultado: a condenação ardentemente desejada.
Se constitui truísmo reafirmar que a sentença deve encerrar a
essência da verdade real dos fatos garimpados na instrução com o escopo
de formar o convencimento final do julgador, a apuração que isso precede
deve seguir o paradigma do método investigativo, ou seja, um imparcial
construto factual para a demonstração da materialidade e dos indícios de
autoria do delito. Os fatos têm de ser historicamente reconstituídos à
luz de evidências documentais, periciais, testemunhos, confissões, etc.,
vedada a prova ilícita. Mas, no “auto de fé” que constitui o processo
político, tal script é dramatúrgico: a regra é a de que nem é preciso
haver delito.
Para forjá-lo certos roteiristas (uma espécie de societas punitionis)
cuidam de inserir, como num filme ou romance histórico, achegas
ficcionais. As “provas condenatórias” são costuradas com a linha
imaginária do desejo (wishful thinking). Basta um anódino grão fático
para construírem seu castelo de areia (sem trocadilhos). Na sua falta,
recorrem à arte divinatória, com argumentos de dedução retórica do tipo
“talvez”, “só pode ser”, “tudo indica”, “disseram que disseram”. Aliás,
adivinhar tem sido um dom paranormal a mais exigido dos advogados desta
quadra brasileira, pois muitas vezes os inquéritos são secretos e o
investigado nem sabe de que é suspeito.
O processo desfigurado por paixões políticas é cediço nos regimes de
exceção, nas autocracias, mas pode vicejar na ambivalência das
conjunturas em que o Estado de Direito esteja vincado pela hipertrofia
da supremacia partidária, ideológica, ou pela intolerância de maiorias
sobre minorias. A causa política do mais forte subjuga o direito do mais
fraco. Urdem-se maliciosas tessituras normativas e, sobretudo,
praticam-se heterodoxias procedimentais para, em cumplicidade
autoritária, perseguir oponentes indesejáveis.
Mas, tal como a mulher de César, o disfuncional processo precisa
manter as aparências. O réu tem sempre direito de defesa, desde que
manejado para tentar provar a sua inocência – embora seja uma platitude
nas Cortes assinalar que o ônus da prova é do acusador. À acusação tudo
se permite, mas à defesa negam-se testemunhas, reperguntas, recursos,
diligências e perícias. Seu principal papel é apenas legitimar o
“julgamento”. Afinal, Alfred Dreyfus na França, em 1894, Sacco e
Vanzetti nos Estados Unidos, em 1927, e os bolcheviques perseguidos nos
Processos de Moscou, em 1936, tiveram defesa “ampla”… Mas seus
advogados, como todos os que oficiam em processos de conteúdo político,
realizaram o suplício de Sísifo, carregando paciente e incansavelmente
no lombo as evidências da inocência que a sentença pré-escrita teimava
sempre em lançar novamente morro abaixo…
À parte a caracterização política do processo, a ser feita fora dos
autos, a missão do advogado é realizar a defesa técnica de seu
constituinte. Seu breviário é a lei, sua oração é a lei, sua fé é a lei.
Às curvaturas do rito procedimental cabe-lhe esgrimir a retidão da
norma legal. O paradoxo é que em tais casos essa é a mais fácil e a mais
difícil de todas as lidas.
O defensor já entra em desvantagem por ver a presunção de inocência
substituída pela certeza preconcebida da culpa. Maneja a luz contra a
treva, o fato contra a ficção, a realidade contra a fantasia, mas pena
para demonstrar que ovo não tem pelo, jabuti não sobe em árvore, cavalo
não tem chifre – embora tais deformidades ilustrem certas peças de
acusação… É uma libertária porfia levada a efeito em estado de absoluta
solidão.
Advogado que compõe a banca de defesa do ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, encurralado por seis processos políticos (com direito a
media trial e power point em horário nobre), empenhamo-nos em realizar
sua defesa técnica, em todas as instâncias, na esperança de que a
cascata persecutória dê lugar à fonte cristalina onde se possa saciar a
sede de justiça. A convicção que nos move é a manifestada pelo poeta
inglês John Milton, em 1644, na Areopagítica: “Deixemos que a verdade e a
falsidade se batam. Quem jamais viu a verdade levar a pior num combate
franco e livre?”.
*Advogado criminalista, ex-deputado federal pelo PDT-SP e ex-presidente do conselho federal da OAB
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