domingo, 5 de março de 2017

Mercado de construção vira alvo de empresas estrangeiras

Flagrado em atos de corrupção, mercado de construção vira alvo de empresas estrangeiras - Notícias - Política



Flagrado em atos de corrupção, mercado de construção vira alvo de empresas estrangeiras

Guilherme Azevedo
Do UOL, em São Paulo
O quadro de corrupção no segmento de construção pesada do Brasil, revelado e combatido pela Operação Lava Jato, poderá transferir o mercado nacional de grandes obras de infraestrutura para empresas estrangeiras.


Investigadas na Justiça e pressionadas financeiramente por causa de
sanções administrativas e criminais, as grandes empreiteiras nacionais
de construção, como Odebrecht, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão e
Camargo Corrêa, deixam um vazio no mercado. Empresas chinesas de
construção já assumiram obras e serviços, principalmente no segmento de
energia, e começaram aquisições de companhias nacionais.

A
ampliação da presença estrangeira é recebida com atenção por entidades
brasileiras da construção e da engenharia e analistas independentes
procurados pelo UOL. Para eles, o combate ao método que
incorporou sistemicamente propinas a políticos e caixa dois, sendo
agora desvendado pela Lava Jato, investigação com foco em contratos de
obras e serviços da Petrobras e desdobramentos para outras estatais, já
mostra consequências no segmento de construção pesada.

Apogeu e queda de um império

É uma situação complicada para as grandes empresas da construção
pesada, que, em 2013, experimentavam o seu grande momento desde a
redemocratização do país. Ainda não havia a Lava Jato e o primeiro
delator de desvios de recursos da Petrobras, o ex-diretor de
Abastecimento Paulo Roberto Costa, somente revelaria como funcionava o
esquema em agosto de 2014, envolvendo propinas pagas a políticos e a
diretores da estatal, financiamento de campanhas políticas via caixa
dois e formação de cartel.

Essas empreiteiras faziam obras
milionárias, ou bilionárias, nos 12 estádios para a Copa do Mundo de
2014, com execuções viárias nos entornos deles; construções de grandes
plantas energéticas, como as usinas hidrelétricas de Belo Monte, no
Pará, e de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia; remodelação do centro
histórico do Rio, já dentro da proposta da Rio-2016; entre outros
projetos de infraestrutura.

Somente as reformas e as construções
dos estádios da Copa custaram, ao final, R$ 8,3 bilhões, segundo o
Ministério do Esporte, quando os custos tinham sido estimados pelo
governo em R$ 2,2 bilhões, em 2007, e em R$ 3,67 bilhões, em 2009
--variação de mais de 270% do valor inicial estimado.

O emprego
na construção pesada (excluindo o segmento de construção civil de
residências e edificações) batia recorde: em dezembro de 2013,
empregava, formalmente, 1,059 milhão de trabalhadores, praticamente o
dobro de 2006, quando 562 mil atuavam formalmente nos canteiros do país,
segundo dados do Ministério do Trabalho. Procuravam-se mais
engenheiros, disputados já nas faculdades pelos novos projetos que saíam
do papel.

Hoje o cenário virou de ponta-cabeça. Alguns dos
principais dirigentes das construtoras, empresários até então
intocáveis, enfrentam processos judiciais, foram condenados e até
presos, como Marcelo Odebrecht, da Odebrecht, e Léo Pinheiro, da OAS.


Pressionadas, as grandes empresas da construção pesada estão
reconhecendo condutas ilegais e buscando acordos para poder voltar ao
mercado.




Com obras paradas, o desemprego na área cresceu. Em dezembro de 2016,
estavam formalmente na construção pesada 686 mil trabalhadores, uma
queda de 35% em relação ao nível de emprego de dezembro de 2013. Até
novembro do ano passado, foram demitidos 46.100 engenheiros e
contratados 27.828, um saldo negativo de 18.272 vagas formais.

ONG Contas Abertas vê "saudável oxigenação" do mercado

"Em relação à construção da infraestrutura, o que está em curso é a
destruição da nossa capacidade gerencial, administrativa e tecnológica
acumulada ao longo de mais de seis décadas. Está se arrasando a
capacidade da engenharia brasileira. É um retrocesso inimaginável", diz
Pedro Celestino, presidente do Clube de Engenharia, com sede no Rio de
Janeiro, a mais antiga associação de engenheiros do Brasil, com 136 anos
de atividade.

No sindicato nacional que reúne e representa os
grandes nomes da construção pesada, o Sinicon (Sindicato Nacional da
Indústria da Construção Pesada), também há preocupação. "Uma empresa
demora 30, 40 anos para conseguir fazer obras de grande capacidade.
Temos de preservar isso. É preciso punir com rigor merecido as pessoas
[envolvidas em desvios], mas não quebrar as empresas. A sede punitiva é
positiva, mas não a custo de liquidar tudo", afirma Petrônio Lerche,
diretor do Sinicon.

É verdade, sim, que outras empresas [de construção] vão ocupar espaços, mas não todos

Petrônio Lerche, diretor do Sinicon


Discorda Gil Castello Branco, economista e secretário-geral da ONG
Contas Abertas, que fiscaliza as contas de governos em todos os níveis e
assume a visão da sociedade civil: "A opinião dos empresários
cartelizados não é a opinião do segmento como um todo".

Segundo
ele, há outras empresas de construção querendo ingressar no mercado de
grandes obras públicas e "só não puderam porque as empresas do cartel
não permitiram". Por isso, defende que o governo incentive o crescimento
das pequenas e médias empresas da construção. "É saudável, vai oxigenar
o mercado." E também recuperaria, diz, o senso de realidade perdido dos
preços dos projetos de infraestrutura.

É que historicamente as
grandes obras públicas foram direcionadas, já nas especificações e
exigências inscritas nos processos de licitação, para as mãos das
grandes empresas da construção, com capacidade reconhecida de gerenciar
projetos de complexidade alta, obter recursos e se financiar.


Além disso, conforme revelado pela Lava Jato e reconhecido pelas
próprias grandes construtoras, havia acertos de preços e rateios de
obras entre essas empresas, definindo, assim, antecipadamente quem
ganharia certa concorrência ou de que forma o projeto seria dividido. A
formação desse cartel impedia o ingresso de outros competidores,
incluindo estrangeiros, e produzia valores de obras superfaturados, que
não correspondiam à realidade dos projetos.

Por um
reposicionamento do mercado de construção pesada mais ou menos como o
delineado pela Contas Abertas também trabalha o SindusconSP (Sindicato
da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo), entidade que
reúne as pequenas e médias empresas da construção paulista, segmento
afetado muito mais pela crise econômica do que pela Lava Jato.


Segundo José Romeu Ferraz Neto, o presidente da entidade, a ideia é
fazer com que seus associados possam participar dos certames dos grandes
projetos. O SindusconSP defende a abertura desse mercado às pequenas e
médias via loteamento ou fatiamento maior das obras dos grandes
empreendimentos na hora de licitar. "Mas isso ainda não aconteceu",
lamenta Ferraz Neto.




"Tem que punir mesmo, e duro, mas sabendo separar as coisas"

Paulo Resende, coordenador do núcleo de estudos de logística,
suprimentos e infraestrutura da Fundação Dom Cabral, afirma que a
engenharia brasileira é referência internacional na execução de grandes
obras de construção civil, experiência adquirida a partir dos grandes
projetos de infraestrutura dos anos de 1960 e 1970, como a usina
hidrelétrica de Itaipu, localizada no rio Paraná, na divisa entre Brasil
e Paraguai, e a ponte Rio-Niterói, sobre a baía de Guanabara.


Para o analista da Dom Cabral, o escândalo de corrupção trazido à tona
exige de toda a população uma nova consciência daqui por diante, mais
equilibrada: "A sociedade precisa procurar amadurecer a ideia de separar
o joio do trigo. É o nosso grande desafio. Se conseguirmos, teremos
aprendido a lidar com qualquer outro escândalo. Não abrindo mão da
punição nunca, porque tem que punir mesmo, e duro, mas sabendo separar
as coisas".

É também de preservação da "banda boa" das grandes
construtoras a posição de Marcos Melo, professor de finanças do Ibmec do
Distrito Federal e especialista no mercado de infraestrutura, que
valoriza o saber produzido por elas.

"(As grandes construtoras)
movimentam uma diversidade muito grande de recursos e pessoas e detêm
tecnologias e conhecimentos únicos. A quantidade de técnicas
desenvolvidas pela Odebrecht, por exemplo, é muito grande. Quando a
empresa se desfaz, isso se perde, porque as pessoas só são capazes de
levar uma parte disso", afirma Melo.

O professor sublinha que
foi um longo processo para a formação e amadurecimento dessas empresas e
sua queda não acontece sem consequências duras. "Em quanto tempo outras
empresas vão poder ocupar esse lugar?", pergunta.

Não se cria uma capacitação gerencial, tecnológica e financeira da noite para o dia. Isso é que nós estamos jogando fora

Pedro Celestino, do Clube de Engenharia


"Que essas empresas [envolvidas] prosseguissem, com faturamento menor, e
tivessem a possibilidade de se reinventar. Com mais governança
corporativa, com políticas de compliance [de conformidade, com regras
disciplinadoras e éticas mais rígidas] mais estruturadas", afirma Paulo
Resende, da Fundação Dom Cabral.

Para Gil Castello Branco, da
Contas Abertas, o momento agora é de as grandes construtoras da Lava
Jato fazerem o "dever de casa". Inclui, diz, a venda de ativos e
participações adquiridos em diversos setores da economia com facilidades
proporcionadas pela corrupção, como garantias de obras e de
financiamentos públicos e privados. "A casa delas caiu e devem agora se
ater ao tamanho real de uma construtora e competir no mundo real,
porque, todos esperamos, a fantasia do cartel acabou."




Abertura aos estrangeiros?

Mas, se a crise geral das grandes da construção pesada se aprofundar
ainda mais, levando até a pedidos de falência, o que vai acontecer?
Interromperá o desenvolvimento da própria engenharia brasileira como um
todo? Produzirá um vazio de serviços a ser ocupado provavelmente por
grandes construtoras estrangeiras, além das que hoje têm participação
relativa no Brasil, normalmente associadas ao capital nacional?


Para Paulo Resende, da Dom Cabral, o "vazio de oferta", somado à
participação menor do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social) como investidor em infraestrutura, estabelece o "jogo do
mercado". "O que acontece é que isso abre caminho para as grandes
empresas internacionais, e as consequências disso nós não sabemos."


Segundo Resende, o ideal seria que esse ingresso se desse numa fase de
crescimento acelerado do Brasil, em que as empresas de engenharia
estrangeiras entrassem no mercado para auxiliar as nacionais, mesmo que
em consórcio. Mas, no cenário adverso, como se delineia agora, haveria o
preenchimento, não a sociedade ou a complementaridade. "Uma vez que se
ocupa o espaço, cria-se uma barreira de entrada para as brasileiras
dentro do seu próprio país", diz.
 
Marcos Melo,
do Ibmec-DF, identifica que já há uma movimentação notável das grandes
empresas de infraestrutura estrangeiras no Brasil, que pode incluir a
própria compra de construtoras brasileiras, e isso seria natural.


Há quem veja com bons olhos o aumento da participação de estrangeiros
na construção nacional: "Não vejo prejuízo, porque as estrangeiras
contratam mão de obra brasileira e trazem novas tecnologias",
exemplifica Gil Castello Branco, da Contas Abertas.

"Nada indica
que as construtoras estrangeiras são menos corruptas que as nacionais.
Pelo contrário, situações como o contrato envolvendo a holandesa SBM com
a Petrobras [questionado judicialmente] e o cartel do metrô de São
Paulo [que incluiu as estrangeiras Siemens, Alstom e Bombardier, entre
outras] evidenciam como firmas de fora também são alvos de investigações
por ter cometido aparentemente atos ilegais", afirma o historiador
Pedro Campos, professor de história da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro e autor do livro "Estranhas Catedrais: As Empreiteiras
Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar", em que investiga as relações
históricas das grandes construtoras com governos.

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