sábado, 11 de março de 2017

Revolução francesa no Brasil

Revolução francesa no Brasil

Revolução francesa no Brasil

A
eleição de 2018 pode ser a derrubada da Bastilha. Mas as sirenes da
história impõe requisitos inéditos para isso.

por: Saul Leblon






reprodução




Limada
pelo bisturi conservador, a espantosa violência econômica imposta à
população brasileira nesse momento é confinada no calendário dos eventos
pré-golpe.


Algo que ‘passou’, martelam autoridades e seus autofalantes de aluguel e fé.

‘Culpa da Dilma’, sintetiza o decano da indignação seletiva da Folha, cuja argúcia econômica foi apurada em Davos.

É
assim que o colunismo isento esclarece uma nação afogada em desemprego
recorde, cuja indústria retrocedeu ao tamanho de 2009, o investimento
foi empurrado ao nível mais baixo em vinte e dois anos e a renda per
capital diminuiu 9% em relação a 2014, amarrotando o consumo no patamar
de 2011.


‘Culpa da Dilma’...
Uma guerra aberta de interesses naquela que talvez seja a transição de
ciclo de desenvolvimento mais profunda vivida pelo país, em meio à
deriva da ordem neoliberal no mundo, condensada na maior crise do
capitalismo depois de 1929, reduzida a isso.


Para
consertar ‘ a culpa da Dilma’ é preciso, primeiro, ‘purgar a
imundícia’, diz o martelete especializado em divulgar a economia como um
sistema hidráulico em equilíbrio, desde que dissociado da carne humana
enervada nos esqueletos dos pobres.


A
expressão é emprestada do presidente norte-americano Herbert Hoover,
que ocupou a Casa Branca nos primeiros quatro anos da quebradeira
iniciada em outubro de 1929.


O
esfarelamento econômico e social, então, era encarado pelo
contemplativo Hoover como uma ação autolimpante dos mercados, da qual o
Estado deveria manter distância.


O povo norte-americano foi salvo da faxina suicida por Franklin Roosevelt.

Quatro
anos depois de Hoover deixar uma sociedade convulsionada por
acampamentos de desemprego que acossavam a Casa Branca e precisavam ser
contidos pelo Exército, seu sucessor desativou a engrenagem infernal da
autorregulação dos mercados.


Trocou-a
por um poderoso programa de obras públicas e controle estatal do
mercado de dinheiro, logrando tirar a economia das mãos dos coveiros e
os chefes de famílias do cemitério do desemprego.



No caso brasileiro a ordem dos fatores alterou dramaticamente a soma do produto.

Aqui, ‘Herbert’ veio depois de ‘Franklin’.

Esse
instalou com a determinação de ‘purgar’ um ciclo de traços
rooseveltianos, ainda que imperfeitos, porque borrados de juros altos,
liberdade para a conta de capitais, câmbio valorizado e, sobretudo, seu
pecado capital: descaso com o papel fiador dos assalariados, do qual o
criador do New Deal norte-americano nunca se descuidou.


Mesmo
acusado de comunista pelo colunismo isento da época, Roosevelt não
abriu mão de promover a sindicalização em massa dos trabalhadores que
recuperaram seu emprego no New Deal.


Só assim o líder democrata resistiu a Wall Street e aos viúvos dos mercados desregulados.

No
Brasil, todo o aparato público, incluindo-se o judiciário e o
legislativo, mas também a mídia e os sindicatos dos patrões,
condensam-se no jato de um imenso wap de desinformação, ‘desinfecção’ e
des-emancipação, sem o contraponto organizado dos  principais alvos do
wap regressivo.


É disso que trata a faxina em curso.

Não de recuperar.

Mas de produzir ruínas.

Para soterrar com elas o pacto social desenhado na Carta de 1988.

E impor no seu lugar outro, oposto, sem a devida consulta à sociedade.

Na
linha do jato desinfetante encontram-se o pleno emprego, a maior
participação dos assalariados no fluxo da renda (mas não no estoque), o
espraiamento dos direitos sociais, a multiplicação das oportunidades
ascensionais pela educação, as iniciativas de afirmação cidadã e os
instrumentos endógenos de comando do desenvolvimento, como o pré-sal, o
BNDES, o banco dos Brics  e a Unasul.


Enfim,
a ‘imundícia’ toda que aguçou um conflito de classes protelado,
inicialmente, por um desequilíbrio fiscal e monetário decorrente da
elevada taxa de juro paga pelo Estado para tomar emprestado aquilo que
deveria ser taxado.


Era uma
corrida contra o tempo hipotecada na hipótese de uma recuperação
saneadora do comércio internacional, que afinal não veio.


Os efeitos colaterais dessa corrida para frente assumiriam,assim, contornos de novos círculos de ferro  cada vez mais estreitos.

Inclua-se
aí o custo desindustrializante do real valorizado para atenuar outra
expressão da escalada do conflito, a inflação, mitigada com importações.


Mas
também a asfixia do investimento público e privado no tríplice garrote
do juro alto, dos subsídios inúteis ao investimento produtivo num
ambiente rentista e do desequilíbrio progressivo nas contas externas.


Não, senhores colunistas, não estamos diante do cqd ‘da culpa da Dilma’.

O nome disso é luta de classes.

Condicionada,
no caso, por uma correlação de forças na qual a desorganização popular,
de um lado, e a reengenharia midiática, de outro, engessariam o poder
de iniciativa do governo.


A distinção é preciosa.

Não tanto para expor ao sol a toxidade da narrativa conservadora.

Mas,
sobretudo, para evidenciar os desafios –graúdos--  no passo seguinte da
luta pela construção de uma verdadeira democracia social no país.


‘A culpa da Dilma’, na verdade, camufla dois incômodos com uma só cajadada.

De
um lado, releva a força determinante da sabotagem golpista, que semeava
a ingovernabilidade já em 2013 para colher frutos nas urnas de 2014
--ou fora delas, se necessário, como foi.


De
outro, dribla a fragilidade crucial decorrente da ausência de
organização popular compatível com a transição de ciclo de
desenvolvimento vivida pelo país.


Mais que isso.

Coloca
as forças progressistas diante de uma realidade histórica com a qual
tem evitado se defrontar, mas que não poderá mais postergar na corrida
para 2018.


Não é uma referência nova: 1964 já o havia demonstrado.

Mas se reafirmou agora com virulência dos rebotes históricos, para sacudir a memória adormecida.

Ao
primeiro sinal de aguçamento da disputa pela riqueza, a elite
brasileira recusa-se terminantemente a discutir soluções coletivas para
os gargalos da sociedade e do seu desenvolvimento.


Opta pelo golpe em defesa do interesse unilateral.

Os fatos são autoexplicativos, mas não custa rememorar o abc dos mandatos históricos em nosso tempo.

A
verdade é que mesmo aquelas tarefas denominadas genericamente de
‘revolução democrática’, constituídas basicamente da universalização do
acesso aos marcos da civilização, não tem mais sujeito histórico nas
elites.


A liderança do
processo terá que ser assumida por uma frente política solidamente
capilarizada em organização popular de base, aliada a blocos de
identidades minoritárias, assentada em respostas à emergência climática,
à desigualdade alarmante nas esferas da riqueza e da tecnologia,
abraçada a novas formas de viver e de produzir e fortemente comprometida
em traduzir tudo isso numa desassombrada estratégia de inovação em
políticas públicas que, de fato, democratize  e valorize o bem comum.


Ou isso, ou a queda da Bastilha nunca ocorrerá por essas bandas.

Partidos
progressistas de massa e comitês de base espalhados por todo o país, se
existissem de fato, teriam impedido a reengenharia midiática de acuar a
nação na encruzilhada da falsa disjuntiva que hoje opõe a purga de
direitos ao caos econômico.


Houvesse
a organização requerida,  a alternativa crível ao desmonte seria a
taxação fiscal da riqueza, não a privação adicional cobrada da pobreza.


É
a consciência desse fio da navalha que explica a virulência recessiva
imposta à sociedade brasileira nesse momento, como um instrumento
funcional de desmobilização política e desarticulação ideológica
enfeixadas no grito de guerra conservador: ‘Culpa da Dilma’.


Ou
seja, um dos mais violentos programas de ‘des-emancipação’ social  já
registrados em tempos de paz e por um período tão longo de duas décadas
seguidas.


‘Significa que toda uma futura geração está condenada, o que é inaceitável’.

É
assim que o relator das Nações Unidas para Pobreza Extrema, Philip
Alston, qualificou a PEC do Teto, em dezembro do ano passado, antes
ainda dos desdobramentos atuais nas esferas da previdência e pensões
rurais, do salário mínimo e dos direitos trabalhistas (pela
terceirização).


Só uma
recessão diluviana poderia escorar um projeto de poder dessa natureza,
atado a vinte anos de concordata social, durante os quais os detentores
da riqueza –e agora do poder— avocam-se a prerrogativa de desativar todo
o aparato de direitos sociais e trabalhistas arduamente acumulados pelo
povo brasileiro desde Vargas.


A
abrangência e a brutalidade do que está em curso corresponde a uma
ruptura do pacto da sociedade --sem consulta-la, repita-se-- o que
dificilmente se completará sem atingir o núcleo duro das garantias
individuais, as liberdades civis e os direitos políticos.


Os
liberais que hoje se oferecem à barganha com o golpe, incluindo-se um
pedaço da classe média que supõe assim garantir suas ‘liberdades’
individuais, rapidamente serão afrontados pela violência de uma lógica
que tem na ganância do mercado, sobretudo financeiro, o único
compromisso sagrado de liberdade a preservar.


De
certa forma, o que se assiste hoje no Brasil, já se disse aqui, é a
viagem de volta ao cuore liberal reinante no ventre do capitalismo
selvagem dos séculos XVIII e XIX.  


O
termo ‘des-emancipação’, cunhado pelo filósofo marxista italiano,
Domenico Losurdo, descreve o moedor de carne humana em ação nesses
tempos pioneiros.


Mais que negar novos direitos, o que ressalta do bordão atual das reformas é a mesma determinação de ‘des-emancipar’.

Ou
seja, devolver ao absoluto desamparo a parcela majoritária da
sociedade, privada dos meios pelos quais se reproduziam as relações de
poder e produção no capitalismo.


É
disso que se trata no caso das reformas trabalhista e previdenciária
anunciadas pelo golpe no Brasil. O mesmo se pode dizer das consequências
da PEC 55 no acesso a direitos públicos essenciais  --a escola e a
saúde, entre  outros.


O
conjunto requer uma ruptura de ciclo histórico para se instalar. Mais
que um golpe parlamentar, o regime da ‘des-emacipação ‘ no século XXI
exige a fascistização dos instrumentos de Estado.


A
escalada policial de um Ministério Público e de um juiz que assombram a
cidadania brasileira ao subordinarem o Estado de Direito a
conveniências partidárias ilustra o calibre da espiral em marcha.


Dela
não escapará a classe média. Hoje simpática ao regime, amanhã será ela
também tragada no arrastão de direitos e escolhas individuais, pela
anemia das instituições e a desativação de sistemas regulatórios
imiscíveis com a supremacia dos mercados entregues a sua própria lógica.


A
lavagem ideológica promovida pela reengenharia midiática inocula na
sociedade a anestesiante ampola da naturalização de uma ruptura que hoje
a imobiliza, amanhã a escravizará.


A
receita do Estado mínimo suprime do arsenal público não apenas as
regulações que asseguram os diferentes espaços de escolha e liberdade,
como a estabilidade da taxa de investimento na economia.


Sem
financiamento público, grandes obras e orçamentos sociais, o futuro do
mundo do trabalho, inclusive o da classe média, insista-se, será
debulhado num angu de terceirizações, precariado e ‘bicos’, que podem
até receber denominações em inglês, mas nem por isso serão outra coisa
que não o declive social depressivo e aterrador.


Esse
é o preço oculto naquilo vendido pela mídia nesse momento como o repto
redentor ao lulopopulismo. Ou seja, uma subordinação escravizante do
desenvolvimento, da democracia, da política e demais instancias da
sociedade –inclusive a subjetividade do nosso tempo, aos impulsos
irrefletidos dos mercados ordenados pelo retorno especulativo
incompatível com a sobrevivência da economia, da sociedade e da
natureza.


A estagnação atual
nas economias ricas deveria servir de alerta ao evidenciar a falta que
faz tudo aquilo que  a democracia e o Estado cederam ao mercado nessas
sociedades nos anos de apogeu do neoliberalismo  


É
nesse deserto do real que o conservadorismo brasileiro se inspira para
golpear a democracia e reproduzir aqui receita que estrebucha no
planeta.


O que as
ressurgências do capitalismo selvagem oferecem  à classe média
brasileira agora–como o fazem os ideólogos da terceirização e da
prevalência do negociado sobre o legislado na CLT--  é a premiação do
mérito individual sobre o direito social universal.


A
platitude baseia-se na crença de que a construção da sociedade é movida
pelo interesse  egoísta extrapolado, mecanicamente, na rudimentar
ilação de que a luta individual pela felicidade leva ao fastígio
coletivo.


Aclamados
pensadores liberais, como Adam Smith, condicionavam na verdade a
centralidade do interesse próprio à irrepreensível obediência a
referências morais e religiosas.


Esse corpo moral percorreria um trilho ético rigoroso, rumo a uma comunidade de laços e valores impecavelmente compartilhados.

Nesse ambiente sacro o papel profano do Estado seria mínimo.  

No capitalismo realmente existente as coisas se dão de forma algo diversa.

Não
é difícil –aliás é muito fácil— deduzir o resultado da supremacia do
interesse egoísta em sociedades nas quais, ao lado da luta desesperada
de milhões de indivíduos desvalidos, avultam  interesses corporativos
desmesurados, sobretudo aqueles cujo produto é o dinheiro, sua
reprodução e as suas consequências.


A crise do nosso tempo é obra dessa assimetria leonina, vendida aqui como solução.

A
inexcedível capacidade das grandes corporações submeterem indivíduos
atomizados deixa pouco espaço à acomodação espontânea dos interesses
contrapostos em uma sociedade onde tudo, rigorosamente tudo, passa a ser
objeto de compra, venda e lucro.


Não há mais espaços sagrados.

Ou a regulação democrática impõe limites a sede do capital, ou a sociedade toda desidratará em servidão e catatonia.

É
sob esse pano de fundo que a ‘des-emancipação’ toca as trombetas do
apocalipse social no Brasil, cujo Estado foi assaltado pelos mordomos
dos mercados.


A marcha dos acontecimentos não mente.

A estratégia de ‘des-emancipação’ não se satisfará em extorquir uma década de ganhos reais de poder de compra dos salários.

A
faxina requerida é tão virulenta que convoca o árduo trabalho do
escovão repressivo e do detergente ideológico para dissolver qualquer
traço de resistência indevidamente alojado em estruturas de produção,
consumo, serviços, meio ambiente e participação política.


As sirenes da história anunciam confrontos intensos no front da liberdade e da economia.

A eleição de 2018 pode ser a derrubada da Bastilha.

Mas
para isso as forças progressistas terão que se convencer, de uma vez
por todas –e convencer parte da classe média--  que direitos clássicos
das revoluções burguesas do século XVIII, hoje, só tem viabilidade
amarrados a uma poderosa alavanca de organizações sociais, que
subordinem a força criativa dos mercados aos projetos, metas e direitos
pactuados pela democracia.


Revolução francesa no Brasil é igual a Lula comitês de base.

Ou isso, ou a restauração em curso.

Com a violência  neoliberal ungida em Imperador do Brasil.

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