sábado, 25 de março de 2017

Os “Intelectuais” Homologados

Os “Intelectuais” Homologados



Os “Intelectuais” Homologados

Villas, Pondés e afins são produtos de uma época sombria. Nunca
criticam estruturas. Diluem, em favor da rapidez e do simplismo, o tempo
e esforço exigidos pelo trabalho do pensamento





Por Fran Alavina



Não é de hoje que os intelectuais passaram a exercer uma função
midiática para além das antigas aparições públicas, nas quais a fala do
acadêmico se apresentava como um diferenciador no âmbito do debate
público. Entre a tagarelice das opiniões de pouca solidez, porém
repetidas como se certezas fossem, a figura do conhecedor, do estudioso,
ou mesmo do especialista surgia como um tipo de freio às vulgarizações e
distorções do cotidiano. Não que isso representasse uma alta
consideração e respeito da mídia hegemônica em relação ao conhecimento
acadêmico, uma vez que a fala do intelectual ao se inserir em um debate
cujas regras lhes são alheias facilitava a distorção de suas falas,
todavia mantinha-se a diferença explícita entre o conhecimento e a simples informação.


Ademais, a identificação dos intelectuais com certas causas os
afastavam do centro do poder e de seus bajuladores: os donos da mídia.
Tal representava um entreve por princípio. Era melhor não chamá-los a
ocupar um espaço voltado para um público amplo. Entre uma fala e outra
surgiria a criticidade que a mídia hegemônica procurava “amansar”.
Quando era inevitável ceder-lhes espaço, suas falas nunca poderiam ser
identificadas com a informação, nem apresentada na forma da informação.
Isto era o signo divisor, como que dizendo: “não liguem muito, é coisa
de intelectual (…)”. Nos últimos anos, contudo, essa diferença (entre
conhecimento e informação, entre o papel do intelectual e a função
midiática) não apenas se esgarçou, como se tornou quase nula. Por isso,
hoje estamos diante de um novo tipo de intelectual: o intelectual homologado.


Este tipo de intelectual surge nos espaços da mídia hegemônica como uma espécie de adendo à informação, um plus,
pois o saber, representado pela sua presença, que supostamente
emprestaria prestigio às notícias é dado sempre na forma da informação,
portanto descaracterizando os elementos que constituem qualquer tipo de
conhecimento. Ou seja, sobre critérios que fazem do saber um não saber.
Dilui-se na torrente informacional midiática o tempo demandado e o
esforço necessário exigidos pelo trabalho do pensamento, em favor da
rapidez e do simplismo. Porém, tais aspectos, embora importantes, não
configuram o fator determinante da homologação.


Estes intelectuais são homologados na medida em que suas falas
públicas têm aparente criticidade e profundidade. Em verdade, nunca
dizem algo que seja contra os interesses dos meios midiáticos que lhes
dão guarida, nunca fazem um crítica profunda que mexa com as estruturas
mais acomodadas do seu público, pois este já não é mais uma plateia que
dá ouvidos às palavras do homem de saber, mas um grande fã-clube
que ele não pode jamais desapontar. A formação deste fã-clube impede a
autonomia que caracteriza o sujeito de saber. Desse modo, não se
estabelece, de fato, uma relação que enseja conhecimento, mas uma relação de poder,
na qual o liame é a dependência entre os ditos e gestos e a obediência
na forma do consentimento Tanto é assim que nos raros momentos em que o
fã-clube do intelectual homologado se volta contra ele, o objeto da
“revolta” não é de cunho teórico, ou seja, não é um debate sobre suas
obras ou suas ideias, porém diz respeito a um fato de sua vida privada.
Seus fãs exercem uma vigilância policialesca, como os fãs de qualquer astro pop,
pois a relação se, por um lado, exige o consentimento, por outro lado,
faculta a vigilância aos que consentem. A figura do intelectual
homologado traz consigo uma legião de homologados intelectuais. Ora, não
foi isto que ocorreu nos últimos dias, com a pantomima em torno de uma
foto postada nas redes sociais pelo nosso mais bem acabado exemplo de
intelectual homologado?


Como a celebridade pop que depois de flagrada fazendo
algo que desagradou aos seus fãs, foi obrigado a redigir um pedido de
desculpas. Na “prestação de contas” ao seu fã-clube deixou-se escapar
toda a vaidade e o exibicionismo. Ele dividiu o mundo entre aqueles que o
amam e aqueles que o odeiam. Crença típica das celebridades midiáticas,
segundo a qual uma vez alcançado o posto de famoso, as pessoas ou o
invejam, ou lhes prestam deferência. Qualquer coisa fora desse script
é visto como algo sem sentido. Em alguns casos são críticos das
religiões, mas agem como os pastores que criticam, formando um rebanho
não pequeno. O que atesta que se trata de uma relação de poder, e de um
poder sedutor, pois travestido de saber.


O grande fã-clube reforça a secular vaidade dos intelectuais, que
hoje já não medem mais o êxito de suas carreiras pela qualidade de suas
publicações, ou por terem se tornado referência em suas áreas, ou mesmo
pelo número de citações de seus trabalhos em outros estudos. O
produtivismo do currículo lattes não lhe sacia mais. O êxito e a
qualidade são confundidos com o sucesso de público, a qualidade mede-se
pela quantidade de curtidas que suas páginas virtuais possuem, pelos
vídeos postados que se tornam virais e pelo maior número de palestras
pagas que podem amealhar. Embora, na maioria dos casos, suas formações e
carreiras sejam devidas ao sistema público e gratuito de ensino
superior, ao venderem palestras e workshops pagos e fora das
universidades públicas, além de distorcerem a função social do saber,
tornam-se um tipo de mercadoria. Por conseguinte, expressam a ideologia
neoliberal segundo a qual todo indivíduo é um empreendedor de si mesmo.
Como empreendedores, eles se vendem para um público determinado, cujo
nicho de mercado descortinaram. Tal é o caráter mercadológico que
perpassa a atividade do intelectual homologado.


Em alguns casos, seus discursos públicos e “intervenções” parecem ter
uma singular acidez crítica. Porém, se trata de uma semelhança
aparente, o intelectual homologado tem um efeito placebo sobre o
grande público, sua crítica nunca visa a raiz das coisas, mas alguns
aspectos modísticos, oportunistas. Aceitando a homologação, seu papel é
entreter, desviando a atenção do público com base no conhecimento e na
posição que lograram.




Dessa maneira, suas falas podem ser confundidas com apresentações de stand-up comedy.
Sabem animar auditórios como poucos. O intelectual homologado, com
efeito, é o produto mais recente da indústria cultural. Tal figura,
típica do farsesco debate público contemporâneo, contudo não surgiu do
nada. Embora seja uma figura recente, o intelectual homologado é
precedido por uma história própria da intelectualidade e suas
determinações de classe. Ainda que, muitas vezes, ele queira se
apresentar como alguém que fala de fora e acima do corpo social, assim
observa sem sujar as mãos, supondo uma posição privilegiada e imparcial,
quase sempre tende a repetir, sob o manto do discurso abalizado, a
visão parcial de sua classe social.


O intelectual homologado é precedido pela figura do intelectual orgânico que outrora se comprometia com um projeto nacional-popular; este, um pouco depois, deu lugar ao intelectual engajado. Já nos anos 1990, verificou-se o silêncio dos intelectuais
após o fim das utopias e a derrota histórica das formas alternativas de
organização social até então constituídas. Esta derrota histórica e
este silêncio, que apareciam como um gesto de mea culpa, formaram
um interdito que reduziu os objetos do discurso público do intelectual,
objetos que à medida que diminuíam de dimensão propiciaram a
identificação do intelectual com o especialista. Tal se configurou,
primordialmente, na figura do economista. Todavia, depois da crise mais
recente do capital, a fala pública do economista perdeu crédito,
surgindo em seu lugar o intelectual homologado que na maioria dos casos
são homens saídos das ciências humanas, mais particularmente da
filosofia, da história e da educação. Por enquanto, os geógrafos,
antropólogos, e parte dos cientistas sociais, parecem resistir à
homologação, ainda que ela seja extremamente sedutora.
Pasolini, em seus textos corsários e luteranos, que
tinham como objeto a Itália dos anos 1970, já diagnosticava a figura do
intelectual homologado como um produto que perduraria por longo tempo no
espaço público, pois sua vitalidade se alimenta justamente de um
crescente anti-intelectualismo. Enquanto a postura do intelectual requer
algo contrário do que aí se apresenta, aceita-se o simulacro como se
fosse a própria coisa. A tagarelice do intelectual homologado, que
discursa sobre tudo por medo de ser esquecido, não é o fim do silêncio
dos intelectuais, mas sua confirmação. Quanto mais falam, mais se mostra
sobre o que silenciam.


Entre nós, não faltam casos ilustrativos. Como vivem da imagem
midiática que construíram, os intelectuais homologados apresentam-se com
certo aspecto caricatural, como o personagem que se identifica pelo
bordão. O historiador da UFSCar, por exemplo, quase sempre se apresenta
em tom elevado, dedo em riste, e no auge de suas “intervenções” mais
acaloradas não fica com um fio de cabelo fora do lugar. Bate-boca e
indisposição com políticos de esquerda, como se isto fosse sinal do bom
debate, é o diferencial de seu produto. Já o filósofo do politicamente
incorreto ressuscitou o cachimbo como secular excentricidade do
intelectual. Perfazendo uma imagem que beira o kitsch, com
frequência posta vídeos em que aparece fumando (talvez seja este o signo
do politicamente incorreto?!) e cercado de livros que lhe emprestam a
áurea de sabichão.


Seria apenas cômico, se não configurassem a expressão trágica do pensamento fácil. O
intelectual homologado é o último estágio da miséria dos intelectuais.
Indica a perda de dignidade do pensamento crítico, na verdadeira acepção
do termo, e, talvez, o vislumbre de sua derrota.



Fran Alavina

Doutorando do Programa de Pós-Graduação
em Filosofia da USP. Mestre em Estética e Filosofia da Arte pela
Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP.

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