Análise
O ódio como ameaça ao pacto civilizatório
O debate político, não é de hoje, perdeu o freio e chegou a um nível de racionalidade próximo de zero
de Ronald Dworking, que me foi indicado pelo brilhante professor de
Direito Constitucional e Processo Civil Georges Abboud, há uma ideia
central que, de certa maneira, traduz uma preocupação que pessoalmente
me assoma há algum tempo. O livro é de 2006 e não tem tradução em
português. Dworking, grande jurista e teórico político, analisa a
conjuntura política norte-americana daquele momento, fazendo pontuações
que, como ele próprio afirma na apresentação, não cabem só aos Estados Unidos, mas a todo o Ocidente, em alguma medida.
Dworking trata especificamente da relação entre os “vermelhos” e os
“azuis”, ou republicanos e democratas, e de como a disputa entre os
adeptos desses dois grupos, à época, se refletia em um debate cada vez
mais raivoso, emocional, desprovido de qualquer racionalidade. Segundo
relata o autor ao longo da obra, a animosidade entre conservadores e
liberais era tanta que praticamente inviabilizava a convivência.
De lá pra cá, ao que parece, não mudou muita coisa. O ódio foi o ingrediente principal da recente disputa eleitoral entre Donald Trump e Hillary Clinton
pela presidência dos Estados Unidos. Os candidatos, seus partidos e
apoiadores elevaram o tom a decibéis impensáveis, trocaram acusações
graves e abriram espaço para grupos de ódio racistas e xenófobos mostrarem que estão mais ativos do que nunca.
No Brasil, também não é de hoje que o debate político perdeu o freio,
chegando a um nível de racionalidade próximo de zero. A raiva, a
deselegância e insensatez estão na boca e nos dedos ávidos daqueles que
não perdem a oportunidade de manifestar supostas divergências em relação
a quase tudo, seja nas redes sociais e nos portais de notícias, seja na
mesa do almoço ou do bar. Assim, creio não ser preciso tomar o precioso
tempo do leitor com exemplos e demonstrações. O mais importante, me
parece, é procurar entender por que o ódio que hoje permeia quase todo
tipo de discussão chegou a níveis estratosféricos. A identificação desse
problema é fundamental para entender o que está havendo e reconstruir
um caminho democrático.
Como diz Norberto Bobbio, democracia é um procedimento, um processo
de disputa, que visa preservar a paz. É por meio da disputa política, da
disputa do voto e, depois, de um processo de deliberação entre os
legisladores e representantes da sociedade civil, por exemplo, que os
conflitos de interesse entre os distintos grupos são resolvidos por
decisão majoritária. Luigi Ferrajoli destaca que após as Constituições
do pós-guerra, rígidas, a definição de Bobbio, e de Hans Kelsen, também
precisa ser acrescida de dimensões materiais relativas à proteção das
liberdades públicas e à efetivação dos direitos sociais, limitando,
portanto, o conteúdo da decisão política majoritária.
Como tenho reiterado em alguns artigos, a democracia não pode, no
entanto, ser entendida apenas como um regime político do Estado.
Democracia é muito mais do que isso e para que se efetive depende de
como se comporta a sociedade. Não se pode manter um Estado democrático
com uma sociedade autoritária. Há uma inter-relação evidente entre
Estado e sociedade que leva o grau de democracia que de fato existe
nessa sociedade a se refletir nas condutas concretas do Estado.
É comum ouvirmos de debatedores de parte a parte que democracia é
divergir e que, portanto, conflitar é a atitude verdadeiramente
democrática. Há, obviamente, alguma verdade nesse argumento. Não se deve
jamais discutir o direito do indivíduo a divergir. A democracia só se
sustenta se for garantida a qualquer cidadão a possibilidade de
discordar, inclusive quando se opõe às estruturas de poder ou a qualquer
decisão estatal, jurisdicional, legislativa ou administrativa.
Por outro lado, é verdade que esse debate não deve funcionar como ato
de guerra. Numa sociedade que tem o mínimo de maturidade democrática, o
debate, por mais competitivo, deve ter a funcionalidade argumentativa.
Se um diálogo argumentativo e minimamente racional produz divergência
– aliás, é da natureza do debate gerar divergências –, ao mesmo tempo
produz consenso entre seus debatedores, mesmo que não explícito, como
pressupostos valorativos gerais. Todo debate racional produz consenso e
dissenso. O dissenso acaba por gerar um consenso que, por sua vez,
produz novo dissenso e, assim, sucessivamente.
Uma sociedade não consegue ser democrática se, a par das divergências
existentes, não atingir um patamar valorativo mínimo em comum. Quando o
debate público perde a racionalidade e ganha o território da emoção,
passa-se a produzir certas visões de mundo mais pautadas em afeto e
menos em lógica e coerência. E só será possível superar esse tipo de
posição afetiva, normalmente mais autoritária, desarticulando-se esses
afetos e criando-se um mínimo de predisposição à convergência e à
formação daquilo que Dworking chama de common ground, ou seja, de padrões mínimos de consenso, o que fortalece a democracia.
Na sociedade contemporânea ocidental, a democracia foi concebida por
um processo histórico e surgiu como alternativa concreta a partir das
revoluções gloriosa, francesa
e americana. Foi a partir do século XVIII e, marcadamente nos séculos
XIX e XX, que um pacto humanista entre conservadores céticos, liberais e
a esquerda democrática se firmou. Por maiores que tenham sido as
divergências entre esses segmentos – e foram muitas e substanciais –,
como havia uma pauta humanista mínima comum a todos, ao menos no campo
dos direitos negativos, ou seja, dos direitos do indivíduo e/ou das
comunidades face ao poder do Estado, e de valores morais mínimos
relativos a dignidade humana, formou-se um certo consenso civilizatório.
As consequências desse consenso transcenderam o âmbito do Direito e
passaram a gerar uma moralidade própria, ou seja, um conjunto mínimo de
valores morais compartilhados por todos. Os mecanismos de sublimação ou
de autorrepressão humana, imprescindíveis para se garantir a
convivência, se estabeleceram a partir dessa visão humanista comum. É
graças à moralidade advinda desse consenso civilizatório mínimo que
qualquer indivíduo de bom senso entende, ou deveria entender, que diante
da enfermidade ou da morte de um desafeto ou de seu familiar o momento
de dor deve ser respeitado. Seria desumano aproveitar-se da fraqueza
extrema do adversário para querer fustigá-lo. Essa honorabilidade na
disputa e o reconhecimento da condição humana do adversário é algo
inerente a esse pacto.
Quando observamos o ódio do discurso, o debate raivoso, o despudor no
ataque ao oponente em momentos de vulnerabilidade e a ausência de
formação de consensos mínimos, dá-se justamente o “common ground”
humanista de civilização. Isso se traduz no comportamento dos
indivíduos, que deixam de ter freios de sublimação e passam a expressar o
lado mais primitivo das emoções humanas. Isso não só dificulta a vida
em comum, num processo que se quer democrático, mas também abre amplo
espaço para o surgimento de propostas políticas e modelos de
comportamento autoritários.
Vale dizer que, com todas as guerras, processos de repressão e
exploração, genocídios e tudo de ruim que a civilização ocidental
experimentou do século XIX até hoje, não se pode descartar inteiramente
suas conquistas. A civilização ocidental produziu na modernidade imensos
avanços, do campo tecnológico e científico ao político, ético, moral e
jurídico. Trata-se do único modelo civilizatório capaz de fazer a
autocrítica de seus processos de violência, como o nazismo e o fascismo,
os genocídios etc.
Aparentemente, também têm contribuído para o aniquilamento do nosso common ground humanista
certos aspectos fundamentais desse processo que, como todo engenho
humano, têm características negativas, como é o caso da comunicação por
internet. Esse ambiente, que permite enorme facilidade na pesquisa, no
acesso a documentos, estudos e informações que favorecem o
desenvolvimento cultural, também é o espaço – as redes sociais, em
especial – da produção de dois fenômenos interessantes e ao mesmo tempo
assustadores: o conhecimento superficial e a expressão das emoções sem
qualquer tipo de pudor, de freio civilizatório.
Se a internet propicia algum nível de informação, o principal
problema daqueles que se digladiam, ao contrário do que se costuma
dizer, não é a ignorância, mas o conhecimento raso e fragmentado acerca
dos fenômenos. Basta um conhecimento superficial de um determinado tema
ou acontecimento para fazer com que se sintam aptos a avalizar um
determinado ponto de vista.
Acontece que, como bem pontuou Hannah Arendt,
o mal sobrevive na banalidade, na superficialidade, nunca é radical,
pois não desce à raiz, não tem profundidade. Mas pode ser extremo.
Agentes policiais torturam prisioneiros por acreditarem de forma
irrefletida que isso faz parte do seu papel profissional. É a ausência
de reflexão – ética, moral, política – a origem do mal que pode se
tornar extremo e levar a um genocídio.
Essa mesma falta de reflexão, conjugada à ausência de qualquer freio
civilizatório, tem pautado diariamente o debate público e,
principalmente, as discussões que se estabelecem nas redes sociais.
Não se pode interpretar democracia apenas como um espaço onde é
possível divergir, assim como não se pode imaginar o ambiente da
política, numa democracia, como o ambiente das emoções mais primitivas.
Democracia pressupõe consensos formados pelo debates dotados de um
mínimo de profundidade analítica e reflexiva, onde a racionalidade e a
moral humanista sirvam de freio sublimatório dos afetos mais primitivos.
A vida pública – seja no Congresso, nos sites de notícias e nas redes
sociais – precisa voltar a ser pautada pelo debate racional que
possibilite a formação de alguma convergência. Caso contrário, estará
sob risco de extinção não só a possibilidade de uma sociedade e de um
Estado verdadeiramente democráticos, mas também aquilo que chamamos de
civilização.
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