Sobre o trabalho intelectual de desmantelamento da Esquerda cultural
Estájá muito solidamente identificada e investigada a intervenção da CIA no
plano da cultura e das artes, no plano do esforço de influenciar a
intelectualidade. Este texto recorda aspectos fundamentais de uma acção
que, nestes moldes, remonta à guerra-fria. E que exige uma muito maior
mobilização e combate, e de compreensão de que o terreno da cultura é
hoje uma das frentes centrais do combate anti-imperialista.
Presume-se,
com frequência, que os intelectuais têm pouco ou nenhum poder político.
Empoleirados numa privilegiada torre de marfim, desligados do mundo
real, envolvidos em debates académicos sem sentido sobre minúcias
especializadas ou flutuando nas abstrusas nuvens da alta teoria, os
intelectuais são frequentemente retratados não apenas como isolados da
realidade política mas também como incapazes de ter nela qualquer
impacto significativo. A CIA (Agência Central de Inteligência dos
Estados Unidos) não pensa assim.
De fato, a agência responsável pelos golpes de Estado, os
assassínios direccionados e a manipulação clandestina de governos
estrangeiros não só acredita no poder da teoria, como também dedicou
significativos recursos para ter um grupo de agentes secretos dedicados a
debruçar-se sobre o que alguns consideram ser a mais recôndita e
intrincada teoria já produzida. Num intrigante trabalho de pesquisa
escrito em 1985 (ver aqui),
e recentemente publicado com pequenas alterações através da Lei de
Liberdade de Informação (Freedom of Information Act), a CIA revela que
os seus agentes andaram estudando a complexa e internacionalmente
influente teoria francesa, filiada nos nomes de Michel Foucault, Jacques
Lacan e Roland Barthes.
A imagem de espiões americanos reunindo-se em cafés parisienses para
estudar assiduamente e comparar notas acerca dos sumos-sacerdotes da
intelligentsia francesa pode chocar quem presuma que tal grupo de
intelectuais é constituído por luminárias cuja requintada sofisticação
jamais poderia ser capturada numa rede policial tão tosca, ou quem
assuma que, pelo contrário, charlatães produtores de uma retórica
incompreensível que pouco ou nenhum impacto tem sobre o mundo real. Não
deveria, entretanto, surpreender aqueles familiarizados com o longo e
contínuo investimento da CIA numa guerra cultural global, incluindo o
apoio às suas formas mais vanguardistas, que tem sido bem documentado
por pesquisadores como Frances Stonor Saunders, Giles Scott-Smith, Hugh
Wilford (fiz a minha própria contribuição em “Radical History & the
Politics of Art”, ver aqui).
Thomas W. Braden, anterior supervisor de actividades culturais na
CIA, explicou o poder da ofensiva cultural da Agência num franco relato publicado em 1967
: “Lembro-me da enorme alegria que tive quando a Orquestra Sinfónica de
Boston [que foi apoiada pela CIA] ganhou mais elogios para os EUA em
Paris do que John Foster Dulles ou Dwight D. Eisenhower poderiam ter
conseguido com uma centena de discursos”. Esta não era de modo algum uma
operação pequena ou pouco elaborada. De facto, como Wilford argumentou
com razão, o Congresso para a Liberdade Cultural (CCF), que foi sediado
em Paris e mais tarde identificado como uma organização da CIA no
decurso da Guerra Fria, foi um dos mais importantes patrocinadores na
história mundial, apoiando uma incrível gama de actividades artísticas e
intelectuais. Contava com escritórios em 35 países, publicou dezenas de
revistas de prestígio, esteve envolvida na indústria do livro,
organizou conferências internacionais de grande relevo e exposições de
arte, coordenou apresentações e concertos, e contribuiu com amplo
financiamento para vários prémios culturais e bolsas de estudo, bem como
para organizações de fachada como a Farfield Foundation.
A agência de inteligência entende que a cultura e a teoria são armas
cruciais no arsenal global que desdobra a fim de perpetuar interesses
dos EUA em todo o mundo. O trabalho de investigação de 1985, intitulado
“França: Defecção dos intelectuais de esquerda”, recentemente publicado,
examina – sem dúvida para manipular – a intelectualidade francesa e o
seu papel fundamental na conformação de tendências que geram opções
políticas. Sugerindo que tem havido um relativo equilíbrio ideológico
entre esquerda e direita na história do mundo intelectual francês, o
relatório destaca o monopólio da esquerda no imediato período pós-guerra
– ao qual, sabemos, a CIA se opôs raivosamente – devido ao papel chave
dos comunistas na resistência ao fascismo e em finalmente ganhar a
guerra contra ele. Embora a direita tivesse sido massivamente
desacreditada devido à sua contribuição directa para os campos de
extermínio nazistas, bem como pela sua agenda xenófoba, anti-igualitária
e fascista (de acordo com a própria descrição da CIA), os agentes
secretos sem nome que elaboraram o esboço do estudo sublinham com nítido
deleite com o retorno da direita aproximadamente a partir do início dos
anos 1970.
Mais especificamente, os guerreiros culturais secretos aplaudem o que
vêem como um duplo movimento que tem contribuído para a deslocação do
foco crítico da intelligentsia dos EUA para a URSS. À esquerda, havia
uma gradual desafectação intelectual para com o estalinismo e o
marxismo, uma retirada progressiva do debate público por parte dos
intelectuais radicais e um afastamento teórico do socialismo e do
partido socialista. Mais à direita, os oportunistas ideológicos
referidos como “Novos Filósofos” e os intelectuais da “Nova Direita”
lançaram uma intensa campanha mediática de denegrimento do marxismo.
Enquanto outros tentáculos da organização mundial de espionagem
estavam envolvidos em derrubar líderes eleitos democraticamente,
fornecendo inteligência e financiando ditadores fascistas e apoiando
esquadrões da morte de direita, o esquadrão central de intelligentsia de
Paris estava a recolher dados sobre como a deriva teórica à direita do
mundo beneficiava directamente a política externa dos EUA. Os
intelectuais de esquerda do imediato pós-guerra tinham sido abertamente
críticos do imperialismo norte-americano. A influência mediática de
Jean-Paul Sartre como crítico marxista aberto e seu papel notável – como
fundador do Libération – em desmascarar a estação da CIA em Paris e
dezenas de agentes secretos, foi monitorado de perto pela Agência e
considerado um problema sério.
Em contraste, a atmosfera anti-soviética e antimarxista da emergente
era neoliberal desviou o escrutínio público e forneceu excelente
cobertura para as guerras sujas da CIA, tornando “muito difícil para
qualquer um mobilizar entre as elites intelectuais oposição
significativa às políticas dos EUA na América Central, por exemplo”.
Greg Grandin, um dos principais historiadores da América Latina, resumiu
perfeitamente esta situação em “The Last Colonial Massacre” (ver aqui):
“Além de realizar intervenções visivelmente desastrosas e mortíferas na
Guatemala em 1954, na República Dominicana em 1965, no Chile em 1973,
em El Salvador e Nicarágua durante a década de 1980, os Estados Unidos
emprestaram discreto e constante apoio financeiro, material e moral aos
Estados terroristas assassinos e contra-insurgentes. […] Mas a
enormidade dos crimes de Stálin garante que tais histórias sórdidas, por
mais convincentes, completas ou condenatórias, não perturbem a
fundamentação de uma cosmovisão que assume o papel exemplar dos Estados
Unidos na defesa do que hoje conhecemos como democracia.”
É neste contexto que os mandarins mascarados da CIA elogiam e apoiam
a crítica implacável que uma nova geração de pensadores antimarxistas
como Bernard-Henri Levy, André Glucksmann e Jean-François Revel
desencadearam sobre “a última camarilha de comunistas ilustrados”
(composta, segundo os agentes anónimos, por Sartre, Barthes, Lacan e
Louis Althusser). Dadas as tendências de esquerda destes antimarxistas
na sua juventude, eles fornecem o modelo perfeito para construir
narrativas enganosas que amalgamam o suposto amadurecimento político
pessoal com a marcha progressiva do tempo, como se tanto a vida
individual como a história fossem simplesmente uma questão de “crescer” e
reconhecer que a profunda transformação social igualitária é uma coisa
do passado pessoal e histórico. Este derrotismo paternalista e
omnisciente não só serve para desacreditar novos movimentos,
especialmente os impulsionados pela juventude, mas também desfigura os
relativos sucessos da repressão contra-revolucionária como o natural
progresso da história.
Mesmo teóricos que não eram tão opostos ao marxismo quanto esses
intelectuais reaccionários deram uma contribuição significativa para um
ambiente de desilusão com o igualitarismo transformador, o desapego à
mobilização social, a “investigação crítica” desprovida de políticas
radicais. Isto é extremamente importante para entender a estratégia
geral da CIA nas suas amplas e profundas tentativas de desmantelar a
esquerda cultural na Europa e em outros lugares. Reconhecendo que era
improvável que pudesse aboli-la inteiramente, a organização de
espionagem mais poderosa do mundo procurou afastar a cultura de esquerda
de uma resoluta política anticapitalista e transformadora para posições
reformistas de centro-esquerda que são menos abertamente críticas das
políticas externa e doméstica dos EUA. Na verdade, como Saunders
demonstrou detalhadamente, a Agência seguiu na esteira do Congresso de
liderança Macartista do período pós-guerra de modo a apoiar directamente
e promover projectos de esquerda que desviaram os produtores culturais e
os consumidores para longe da esquerda resolutamente igualitária. Ao
cindir e desacreditar esta última, também aspirava a fragmentar a
esquerda em geral, deixando o que restava do centro-esquerda com apenas
um mínimo poder e apoio público (bem como sendo potencialmente
desacreditada pela sua cumplicidade com políticas da direita de luta
pelo poder, questão que continua a atormentar partidos
institucionalizados contemporâneos à esquerda).
É sob esta luz que devemos compreender a afeição da Agência de
inteligência pelas narrativas de conversão e a sua profunda apreciação
pelos “marxistas reformados”, um leitmotiv que atravessa o trabalho de
pesquisa sobre a teoria francesa. “Ainda mais eficazes em minar o
marxismo”, escrevem as toupeiras, “foram aqueles intelectuais que se
propuseram aplicar a teoria marxista às ciências sociais mas terminaram
por repensar e rejeitar toda essa tradição”. Citam, em particular, a
profunda contribuição dada pela Escola dos Annales na historiografia, e
pelo estruturalismo – particularmente Claude Lévi-Strauss e Foucault – à
“demolição crítica da influência marxista nas ciências sociais”.
Foucault, que é referido como “o pensador mais profundo e influente da
França”, é especificamente aplaudido pelo seu elogio aos intelectuais da
Nova Direita por recordarem aos filósofos que “sangrentas”
consequências “fluíram da teoria social racionalista do Iluminismo do
século 18 e da era revolucionária”. Embora seja um erro creditar o
colapso de qualquer política ou efeitos políticos face a uma única
posição ou resultado, o esquerdismo anti-revolucionário de Foucault e a
sua perpetuação da chantagem do Gulag – isto é, a afirmação de que os
movimentos radicais expansivos que visam a profunda transformação social
e cultural apenas ressuscitam as mais perigosas tradições – estão
perfeitamente em sintonia com as estratégias globais de guerra
psicológica da agência de espionagem.
A leitura da teoria francesa pela CIA deveria dar-nos uma pausa,
então, para reconsiderar o verniz radical-chic que acompanhou boa parte
de sua recepção anglófona. De acordo com uma concepção etapista da
história progressista (que é normalmente cega à sua teleologia
implícita), o trabalho de figuras como Foucault, Derrida e outros
teóricos franceses de ponta é muitas vezes identificado intuitivamente
como uma forma de crítica profunda e sofisticada que presumivelmente
ultrapassa qualquer coisa encontrada nas tradições socialista, marxista
ou anarquista. É certamente verdade, e merece ênfase, o facto de que a
recepção anglófona da teoria francesa, como justamente apontou John
McCumber, teve importantes implicações políticas enquanto polo de
resistência à falsa neutralidade política, aos tecnicismos seguros da
lógica e da linguagem, ou à ideologia do conformismo operante nas
tradições da filosofia anglo-americana apoiadas por McCarthy. No
entanto, as práticas teóricas de figuras que deram as costas ao que
Cornelius Castoriadis chamou a tradição da crítica radical –
significando resistência anticapitalista e anti-imperialista –
certamente contribuíram para a deriva ideológica que se afasta de
políticas transformadoras. Segundo a própria Agência de espionagem, a
teoria francesa pós-marxista contribuiu directamente para o programa
cultural da CIA de empurrar a esquerda para a direita, ao mesmo tempo
que desacreditava o anti-imperialismo e o anticapitalismo, criando assim
um ambiente intelectual no qual seus projectos imperiais poderiam ser
prosseguidos sem serem incomodados pelo exame crítico sério por parte da
intelligentsia.
Como sabemos da investigação sobre o programa de guerra psicológica
da CIA, a organização não só acompanhou e procurou coagir os indivíduos,
mas sempre se interessou por compreender e transformar instituições de
produção e distribuição cultural. Na verdade, o seu estudo sobre a
teoria francesa aponta para o papel estrutural que as universidades, as
editoras e os meios de comunicação social desempenham na formação e
consolidação de um ethos político colectivo. Em descrições que, tal como
o resto do documento, nos deveriam convidar a pensar criticamente sobre
a actual situação académica no mundo anglófono e para além dele, os
autores do relatório colocam em primeiro plano as formas pelas quais a
precarização do trabalho académico contribui para a demolição do
radicalismo de esquerda. Se as pessoas de esquerda mais convictas não
conseguirem os meios materiais necessários para realizar seu trabalho,
ou se somos mais ou menos subtilmente obrigados a conformar-nos para
encontrar emprego, publicar os nossos textos ou ter uma audiência, estão
dadas as condições estruturais para uma comunidade de esquerda
enfraquecida. A profissionalização do ensino superior é outra ferramenta
utilizada para este fim, uma vez que visa transformar as pessoas em
engrenagens tecnocientíficas no aparelho capitalista em vez de cidadãos
autónomos com ferramentas confiáveis para a crítica social. Os mandarins
da teoria da CIA louvam assim os esforços por parte do governo francês
para “empurrar estudantes para os negócios e cursos técnicos”. Apontam
igualmente os contributos de editores de destaque como Grasset, dos
grandes media e o sucesso da cultura americana na promoção da sua
plataforma pós-socialista e anti-igualitária.
Que lições podemos extrair deste relatório, particularmente no
ambiente político actual, com o seu contínuo ataque à intelligentsia
crítica? Em primeiro lugar, ele deve ser um lembrete convincente de que,
se alguns presumem que os intelectuais são impotentes, e que as nossas
orientações políticas não importam, a organização que tem sido um dos
mais poderosos corretores de poder na política mundial contemporânea não
pensa desse modo. A Agência Central de Inteligência, como o seu nome
ironicamente sugere, acredita no poder da inteligência e da teoria, e
devemos levar tal facto muito a sério. Supondo falsamente que o trabalho
intelectual tem pouco ou nenhum impacto no “mundo real”, não apenas
deturpamos as implicações práticas do trabalho teórico, como corremos o
risco de fechar perigosamente os olhos aos projectos políticos dos quais
podemos facilmente tornar-nos, sem o saber, embaixadores culturais.
Embora seja certo que o Estado-nação e o aparelho cultural franceses
constituem uma plataforma pública muito mais significativa para os
intelectuais do que a que se encontra em muitos outros países, a
preocupação da CIA em mapear e manipular a produção teórica e cultural
noutros lugares deveria servir como um alerta para todos nós.
Segundo, os agentes do poder do presente têm interesse em cultivar
uma intelectualidade cuja visão crítica tem sido embotada ou destruída
por instituições patrocinadoras fundadas em interesses empresariais e
tecnocientíficos, equiparando política de esquerda com anti
cientificidade, correlacionando a ciência com uma suposta - mas falsa -
neutralidade política, promovendo meios de comunicação que saturam as
ondas sonoras com cavaqueira conformista, sequestrando gente sólida de
esquerda fora das principais instituições académicas e dos media, e
desacreditando qualquer reivindicação de transformação igualitária e
ecológica radical. Idealmente, procuram nutrir uma cultura intelectual
que, se está à esquerda, é neutralizada, imobilizada, tornada apática e
contente com um esbracejar derrotista, ou com o criticismo passivo da
esquerda radicalmente mobilizada. Esta é uma das razões pelas quais
podemos considerar a oposição intelectual ao esquerdismo radical, que é
preponderante na academia norte-americana, como uma posição política
perigosa: não é ela directamente cúmplice da agenda imperialista da CIA
em todo o mundo?
Terceiro, para combater este assalto institucional a uma resoluta
cultura de esquerda, é imperativo resistir à precarização e à educação
voltada para a profissionalização. É igualmente importante criar esferas
públicas de debate verdadeiramente crítico, proporcionando uma
plataforma mais ampla para aqueles que reconhecem que outro mundo é não
apenas possível mas necessário. Também precisamos de nos unir para
contribuir para (ou continuar a) desenvolver meios de comunicação
alternativos, diferentes modelos de educação, contra-instituições e
colectivos radicais. É vital promover precisamente o que os combatentes
culturais encobertos querem destruir: uma cultura de esquerda radical
com um amplo quadro institucional, amplo apoio público, influência
mediática prevalecente e poder expansivo de mobilização.
Finalmente, os intelectuais do mundo devem unir-se no reconhecimento
do nosso poder e basear-se nele para fazer tudo o que pudermos para
desenvolver uma crítica sistémica e radical tão igualitária e ecológica
como anticapitalista e anti-imperialista. As posições que se defendem na
sala de aula ou publicamente são importantes para definir os termos do
debate e traçar o campo da possibilidade política. Em oposição directa à
estratégia cultural da agência espiã de fragmentar e polarizar, pela
qual tem buscado separar e isolar a esquerda anti-imperialista e
anticapitalista, que ao mesmo tempo se opõe a posições reformistas,
devemos federar-nos e mobilizar-nos, reconhecendo a importância de
trabalharmos juntos – em toda a esquerda, como Keeanga-Yamahtta Taylor nos
lembrou recentemente – para o cultivo de uma intelligentsia
verdadeiramente crítica. Ao invés de proclamar ou lamentar a impotência
dos intelectuais, devemos aproveitar a capacidade de falar a verdade ao
poder trabalhando em conjunto e mobilizando a nossa capacidade de criar
colectivamente as instituições necessárias para um mundo aberto à
esquerda cultural. Pois é somente em tal mundo, e nas
caixas-de-ressonância que a inteligência crítica produz, que as verdades
ditas podem realmente ser ouvidas e assim mudar as próprias estruturas
de poder.
Publicado originalmente no site The Philosophical Salon e traduzido por Pablo Polese para o site Passa Palavra.
Tradução revista por odiario.info
com frequência, que os intelectuais têm pouco ou nenhum poder político.
Empoleirados numa privilegiada torre de marfim, desligados do mundo
real, envolvidos em debates académicos sem sentido sobre minúcias
especializadas ou flutuando nas abstrusas nuvens da alta teoria, os
intelectuais são frequentemente retratados não apenas como isolados da
realidade política mas também como incapazes de ter nela qualquer
impacto significativo. A CIA (Agência Central de Inteligência dos
Estados Unidos) não pensa assim.
De fato, a agência responsável pelos golpes de Estado, os
assassínios direccionados e a manipulação clandestina de governos
estrangeiros não só acredita no poder da teoria, como também dedicou
significativos recursos para ter um grupo de agentes secretos dedicados a
debruçar-se sobre o que alguns consideram ser a mais recôndita e
intrincada teoria já produzida. Num intrigante trabalho de pesquisa
escrito em 1985 (ver aqui),
e recentemente publicado com pequenas alterações através da Lei de
Liberdade de Informação (Freedom of Information Act), a CIA revela que
os seus agentes andaram estudando a complexa e internacionalmente
influente teoria francesa, filiada nos nomes de Michel Foucault, Jacques
Lacan e Roland Barthes.
A imagem de espiões americanos reunindo-se em cafés parisienses para
estudar assiduamente e comparar notas acerca dos sumos-sacerdotes da
intelligentsia francesa pode chocar quem presuma que tal grupo de
intelectuais é constituído por luminárias cuja requintada sofisticação
jamais poderia ser capturada numa rede policial tão tosca, ou quem
assuma que, pelo contrário, charlatães produtores de uma retórica
incompreensível que pouco ou nenhum impacto tem sobre o mundo real. Não
deveria, entretanto, surpreender aqueles familiarizados com o longo e
contínuo investimento da CIA numa guerra cultural global, incluindo o
apoio às suas formas mais vanguardistas, que tem sido bem documentado
por pesquisadores como Frances Stonor Saunders, Giles Scott-Smith, Hugh
Wilford (fiz a minha própria contribuição em “Radical History & the
Politics of Art”, ver aqui).
Thomas W. Braden, anterior supervisor de actividades culturais na
CIA, explicou o poder da ofensiva cultural da Agência num franco relato publicado em 1967
: “Lembro-me da enorme alegria que tive quando a Orquestra Sinfónica de
Boston [que foi apoiada pela CIA] ganhou mais elogios para os EUA em
Paris do que John Foster Dulles ou Dwight D. Eisenhower poderiam ter
conseguido com uma centena de discursos”. Esta não era de modo algum uma
operação pequena ou pouco elaborada. De facto, como Wilford argumentou
com razão, o Congresso para a Liberdade Cultural (CCF), que foi sediado
em Paris e mais tarde identificado como uma organização da CIA no
decurso da Guerra Fria, foi um dos mais importantes patrocinadores na
história mundial, apoiando uma incrível gama de actividades artísticas e
intelectuais. Contava com escritórios em 35 países, publicou dezenas de
revistas de prestígio, esteve envolvida na indústria do livro,
organizou conferências internacionais de grande relevo e exposições de
arte, coordenou apresentações e concertos, e contribuiu com amplo
financiamento para vários prémios culturais e bolsas de estudo, bem como
para organizações de fachada como a Farfield Foundation.
A agência de inteligência entende que a cultura e a teoria são armas
cruciais no arsenal global que desdobra a fim de perpetuar interesses
dos EUA em todo o mundo. O trabalho de investigação de 1985, intitulado
“França: Defecção dos intelectuais de esquerda”, recentemente publicado,
examina – sem dúvida para manipular – a intelectualidade francesa e o
seu papel fundamental na conformação de tendências que geram opções
políticas. Sugerindo que tem havido um relativo equilíbrio ideológico
entre esquerda e direita na história do mundo intelectual francês, o
relatório destaca o monopólio da esquerda no imediato período pós-guerra
– ao qual, sabemos, a CIA se opôs raivosamente – devido ao papel chave
dos comunistas na resistência ao fascismo e em finalmente ganhar a
guerra contra ele. Embora a direita tivesse sido massivamente
desacreditada devido à sua contribuição directa para os campos de
extermínio nazistas, bem como pela sua agenda xenófoba, anti-igualitária
e fascista (de acordo com a própria descrição da CIA), os agentes
secretos sem nome que elaboraram o esboço do estudo sublinham com nítido
deleite com o retorno da direita aproximadamente a partir do início dos
anos 1970.
Mais especificamente, os guerreiros culturais secretos aplaudem o que
vêem como um duplo movimento que tem contribuído para a deslocação do
foco crítico da intelligentsia dos EUA para a URSS. À esquerda, havia
uma gradual desafectação intelectual para com o estalinismo e o
marxismo, uma retirada progressiva do debate público por parte dos
intelectuais radicais e um afastamento teórico do socialismo e do
partido socialista. Mais à direita, os oportunistas ideológicos
referidos como “Novos Filósofos” e os intelectuais da “Nova Direita”
lançaram uma intensa campanha mediática de denegrimento do marxismo.
Enquanto outros tentáculos da organização mundial de espionagem
estavam envolvidos em derrubar líderes eleitos democraticamente,
fornecendo inteligência e financiando ditadores fascistas e apoiando
esquadrões da morte de direita, o esquadrão central de intelligentsia de
Paris estava a recolher dados sobre como a deriva teórica à direita do
mundo beneficiava directamente a política externa dos EUA. Os
intelectuais de esquerda do imediato pós-guerra tinham sido abertamente
críticos do imperialismo norte-americano. A influência mediática de
Jean-Paul Sartre como crítico marxista aberto e seu papel notável – como
fundador do Libération – em desmascarar a estação da CIA em Paris e
dezenas de agentes secretos, foi monitorado de perto pela Agência e
considerado um problema sério.
Em contraste, a atmosfera anti-soviética e antimarxista da emergente
era neoliberal desviou o escrutínio público e forneceu excelente
cobertura para as guerras sujas da CIA, tornando “muito difícil para
qualquer um mobilizar entre as elites intelectuais oposição
significativa às políticas dos EUA na América Central, por exemplo”.
Greg Grandin, um dos principais historiadores da América Latina, resumiu
perfeitamente esta situação em “The Last Colonial Massacre” (ver aqui):
“Além de realizar intervenções visivelmente desastrosas e mortíferas na
Guatemala em 1954, na República Dominicana em 1965, no Chile em 1973,
em El Salvador e Nicarágua durante a década de 1980, os Estados Unidos
emprestaram discreto e constante apoio financeiro, material e moral aos
Estados terroristas assassinos e contra-insurgentes. […] Mas a
enormidade dos crimes de Stálin garante que tais histórias sórdidas, por
mais convincentes, completas ou condenatórias, não perturbem a
fundamentação de uma cosmovisão que assume o papel exemplar dos Estados
Unidos na defesa do que hoje conhecemos como democracia.”
É neste contexto que os mandarins mascarados da CIA elogiam e apoiam
a crítica implacável que uma nova geração de pensadores antimarxistas
como Bernard-Henri Levy, André Glucksmann e Jean-François Revel
desencadearam sobre “a última camarilha de comunistas ilustrados”
(composta, segundo os agentes anónimos, por Sartre, Barthes, Lacan e
Louis Althusser). Dadas as tendências de esquerda destes antimarxistas
na sua juventude, eles fornecem o modelo perfeito para construir
narrativas enganosas que amalgamam o suposto amadurecimento político
pessoal com a marcha progressiva do tempo, como se tanto a vida
individual como a história fossem simplesmente uma questão de “crescer” e
reconhecer que a profunda transformação social igualitária é uma coisa
do passado pessoal e histórico. Este derrotismo paternalista e
omnisciente não só serve para desacreditar novos movimentos,
especialmente os impulsionados pela juventude, mas também desfigura os
relativos sucessos da repressão contra-revolucionária como o natural
progresso da história.
Mesmo teóricos que não eram tão opostos ao marxismo quanto esses
intelectuais reaccionários deram uma contribuição significativa para um
ambiente de desilusão com o igualitarismo transformador, o desapego à
mobilização social, a “investigação crítica” desprovida de políticas
radicais. Isto é extremamente importante para entender a estratégia
geral da CIA nas suas amplas e profundas tentativas de desmantelar a
esquerda cultural na Europa e em outros lugares. Reconhecendo que era
improvável que pudesse aboli-la inteiramente, a organização de
espionagem mais poderosa do mundo procurou afastar a cultura de esquerda
de uma resoluta política anticapitalista e transformadora para posições
reformistas de centro-esquerda que são menos abertamente críticas das
políticas externa e doméstica dos EUA. Na verdade, como Saunders
demonstrou detalhadamente, a Agência seguiu na esteira do Congresso de
liderança Macartista do período pós-guerra de modo a apoiar directamente
e promover projectos de esquerda que desviaram os produtores culturais e
os consumidores para longe da esquerda resolutamente igualitária. Ao
cindir e desacreditar esta última, também aspirava a fragmentar a
esquerda em geral, deixando o que restava do centro-esquerda com apenas
um mínimo poder e apoio público (bem como sendo potencialmente
desacreditada pela sua cumplicidade com políticas da direita de luta
pelo poder, questão que continua a atormentar partidos
institucionalizados contemporâneos à esquerda).
É sob esta luz que devemos compreender a afeição da Agência de
inteligência pelas narrativas de conversão e a sua profunda apreciação
pelos “marxistas reformados”, um leitmotiv que atravessa o trabalho de
pesquisa sobre a teoria francesa. “Ainda mais eficazes em minar o
marxismo”, escrevem as toupeiras, “foram aqueles intelectuais que se
propuseram aplicar a teoria marxista às ciências sociais mas terminaram
por repensar e rejeitar toda essa tradição”. Citam, em particular, a
profunda contribuição dada pela Escola dos Annales na historiografia, e
pelo estruturalismo – particularmente Claude Lévi-Strauss e Foucault – à
“demolição crítica da influência marxista nas ciências sociais”.
Foucault, que é referido como “o pensador mais profundo e influente da
França”, é especificamente aplaudido pelo seu elogio aos intelectuais da
Nova Direita por recordarem aos filósofos que “sangrentas”
consequências “fluíram da teoria social racionalista do Iluminismo do
século 18 e da era revolucionária”. Embora seja um erro creditar o
colapso de qualquer política ou efeitos políticos face a uma única
posição ou resultado, o esquerdismo anti-revolucionário de Foucault e a
sua perpetuação da chantagem do Gulag – isto é, a afirmação de que os
movimentos radicais expansivos que visam a profunda transformação social
e cultural apenas ressuscitam as mais perigosas tradições – estão
perfeitamente em sintonia com as estratégias globais de guerra
psicológica da agência de espionagem.
A leitura da teoria francesa pela CIA deveria dar-nos uma pausa,
então, para reconsiderar o verniz radical-chic que acompanhou boa parte
de sua recepção anglófona. De acordo com uma concepção etapista da
história progressista (que é normalmente cega à sua teleologia
implícita), o trabalho de figuras como Foucault, Derrida e outros
teóricos franceses de ponta é muitas vezes identificado intuitivamente
como uma forma de crítica profunda e sofisticada que presumivelmente
ultrapassa qualquer coisa encontrada nas tradições socialista, marxista
ou anarquista. É certamente verdade, e merece ênfase, o facto de que a
recepção anglófona da teoria francesa, como justamente apontou John
McCumber, teve importantes implicações políticas enquanto polo de
resistência à falsa neutralidade política, aos tecnicismos seguros da
lógica e da linguagem, ou à ideologia do conformismo operante nas
tradições da filosofia anglo-americana apoiadas por McCarthy. No
entanto, as práticas teóricas de figuras que deram as costas ao que
Cornelius Castoriadis chamou a tradição da crítica radical –
significando resistência anticapitalista e anti-imperialista –
certamente contribuíram para a deriva ideológica que se afasta de
políticas transformadoras. Segundo a própria Agência de espionagem, a
teoria francesa pós-marxista contribuiu directamente para o programa
cultural da CIA de empurrar a esquerda para a direita, ao mesmo tempo
que desacreditava o anti-imperialismo e o anticapitalismo, criando assim
um ambiente intelectual no qual seus projectos imperiais poderiam ser
prosseguidos sem serem incomodados pelo exame crítico sério por parte da
intelligentsia.
Como sabemos da investigação sobre o programa de guerra psicológica
da CIA, a organização não só acompanhou e procurou coagir os indivíduos,
mas sempre se interessou por compreender e transformar instituições de
produção e distribuição cultural. Na verdade, o seu estudo sobre a
teoria francesa aponta para o papel estrutural que as universidades, as
editoras e os meios de comunicação social desempenham na formação e
consolidação de um ethos político colectivo. Em descrições que, tal como
o resto do documento, nos deveriam convidar a pensar criticamente sobre
a actual situação académica no mundo anglófono e para além dele, os
autores do relatório colocam em primeiro plano as formas pelas quais a
precarização do trabalho académico contribui para a demolição do
radicalismo de esquerda. Se as pessoas de esquerda mais convictas não
conseguirem os meios materiais necessários para realizar seu trabalho,
ou se somos mais ou menos subtilmente obrigados a conformar-nos para
encontrar emprego, publicar os nossos textos ou ter uma audiência, estão
dadas as condições estruturais para uma comunidade de esquerda
enfraquecida. A profissionalização do ensino superior é outra ferramenta
utilizada para este fim, uma vez que visa transformar as pessoas em
engrenagens tecnocientíficas no aparelho capitalista em vez de cidadãos
autónomos com ferramentas confiáveis para a crítica social. Os mandarins
da teoria da CIA louvam assim os esforços por parte do governo francês
para “empurrar estudantes para os negócios e cursos técnicos”. Apontam
igualmente os contributos de editores de destaque como Grasset, dos
grandes media e o sucesso da cultura americana na promoção da sua
plataforma pós-socialista e anti-igualitária.
Que lições podemos extrair deste relatório, particularmente no
ambiente político actual, com o seu contínuo ataque à intelligentsia
crítica? Em primeiro lugar, ele deve ser um lembrete convincente de que,
se alguns presumem que os intelectuais são impotentes, e que as nossas
orientações políticas não importam, a organização que tem sido um dos
mais poderosos corretores de poder na política mundial contemporânea não
pensa desse modo. A Agência Central de Inteligência, como o seu nome
ironicamente sugere, acredita no poder da inteligência e da teoria, e
devemos levar tal facto muito a sério. Supondo falsamente que o trabalho
intelectual tem pouco ou nenhum impacto no “mundo real”, não apenas
deturpamos as implicações práticas do trabalho teórico, como corremos o
risco de fechar perigosamente os olhos aos projectos políticos dos quais
podemos facilmente tornar-nos, sem o saber, embaixadores culturais.
Embora seja certo que o Estado-nação e o aparelho cultural franceses
constituem uma plataforma pública muito mais significativa para os
intelectuais do que a que se encontra em muitos outros países, a
preocupação da CIA em mapear e manipular a produção teórica e cultural
noutros lugares deveria servir como um alerta para todos nós.
Segundo, os agentes do poder do presente têm interesse em cultivar
uma intelectualidade cuja visão crítica tem sido embotada ou destruída
por instituições patrocinadoras fundadas em interesses empresariais e
tecnocientíficos, equiparando política de esquerda com anti
cientificidade, correlacionando a ciência com uma suposta - mas falsa -
neutralidade política, promovendo meios de comunicação que saturam as
ondas sonoras com cavaqueira conformista, sequestrando gente sólida de
esquerda fora das principais instituições académicas e dos media, e
desacreditando qualquer reivindicação de transformação igualitária e
ecológica radical. Idealmente, procuram nutrir uma cultura intelectual
que, se está à esquerda, é neutralizada, imobilizada, tornada apática e
contente com um esbracejar derrotista, ou com o criticismo passivo da
esquerda radicalmente mobilizada. Esta é uma das razões pelas quais
podemos considerar a oposição intelectual ao esquerdismo radical, que é
preponderante na academia norte-americana, como uma posição política
perigosa: não é ela directamente cúmplice da agenda imperialista da CIA
em todo o mundo?
Terceiro, para combater este assalto institucional a uma resoluta
cultura de esquerda, é imperativo resistir à precarização e à educação
voltada para a profissionalização. É igualmente importante criar esferas
públicas de debate verdadeiramente crítico, proporcionando uma
plataforma mais ampla para aqueles que reconhecem que outro mundo é não
apenas possível mas necessário. Também precisamos de nos unir para
contribuir para (ou continuar a) desenvolver meios de comunicação
alternativos, diferentes modelos de educação, contra-instituições e
colectivos radicais. É vital promover precisamente o que os combatentes
culturais encobertos querem destruir: uma cultura de esquerda radical
com um amplo quadro institucional, amplo apoio público, influência
mediática prevalecente e poder expansivo de mobilização.
Finalmente, os intelectuais do mundo devem unir-se no reconhecimento
do nosso poder e basear-se nele para fazer tudo o que pudermos para
desenvolver uma crítica sistémica e radical tão igualitária e ecológica
como anticapitalista e anti-imperialista. As posições que se defendem na
sala de aula ou publicamente são importantes para definir os termos do
debate e traçar o campo da possibilidade política. Em oposição directa à
estratégia cultural da agência espiã de fragmentar e polarizar, pela
qual tem buscado separar e isolar a esquerda anti-imperialista e
anticapitalista, que ao mesmo tempo se opõe a posições reformistas,
devemos federar-nos e mobilizar-nos, reconhecendo a importância de
trabalharmos juntos – em toda a esquerda, como Keeanga-Yamahtta Taylor nos
lembrou recentemente – para o cultivo de uma intelligentsia
verdadeiramente crítica. Ao invés de proclamar ou lamentar a impotência
dos intelectuais, devemos aproveitar a capacidade de falar a verdade ao
poder trabalhando em conjunto e mobilizando a nossa capacidade de criar
colectivamente as instituições necessárias para um mundo aberto à
esquerda cultural. Pois é somente em tal mundo, e nas
caixas-de-ressonância que a inteligência crítica produz, que as verdades
ditas podem realmente ser ouvidas e assim mudar as próprias estruturas
de poder.
Publicado originalmente no site The Philosophical Salon e traduzido por Pablo Polese para o site Passa Palavra.
Tradução revista por odiario.info
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