domingo, 30 de agosto de 2020

Na internet, o senso comum ganhou o mesmo status da expertise técnica

 

 

Na internet, o senso comum ganhou o mesmo status da expertise técnica

Ativistas do movimento antivacina, terraplanistas e defensores de teorias conspiratórias divulgam ideias estapafúrdias

Drauzio Varella

A ciência é uma ilha cercada de incompreensões por todos os lados. A um só tempo, ela contradiz o senso comum, o misticismo e o pensamento mágico, formas de interpretar o mundo adotadas pela maioria.

Nos países mais desenvolvidos, as crianças ouvem falar dos princípios que regem a ciência, já nos primeiros anos da vida escolar. Infelizmente, entre nós, os estudantes entram e saem das universidades sem noção de como deve ser articulado o pensamento científico.

Quando Galileu Galilei afirmou que a Terra era um dos planetas que giravam ao redor do Sol, quase foi condenado à morte pela Inquisição. O senso comum era o de que ficávamos parados no centro do Universo, enquanto o Sol, a Lua e os demais astros orbitavam à nossa volta.

Muito mais fácil para os religiosos defender que a Terra era imóvel, como afirmava a Bíblia, do que para Galileu explicar os movimentos de translação e rotação, que ninguém conseguia enxergar nem sentir.


Quando Charles Darwin e Alfred Wallace demonstraram que a vida na Terra —e em qualquer planeta em que venha a existir— é uma eterna competição por recursos naturais limitados, na qual os menos aptos perdem a oportunidade de deixar descendentes, a reação foi tão feroz que 150 anos mais tarde
ainda existem contestadores.

No mundo da internet, o senso comum ganhou status de expertise técnica. Ativistas do movimento antivacina, terraplanistas, charlatães e os defensores de teorias conspiratórias e de tratamentos de eficácia jamais comprovada divulgam ideias estapafúrdias, como se tivessem o nível de conhecimento de cientistas brilhantes.

A ciência é uma frágil conquista civilizatória da sociedade, baseada no raciocínio lógico, na observação empírica, na significância estatística, no confronto de dados e na reprodutibilidade dos experimentos, regra segundo a qual a repetição de uma experiência deve levar aos mesmos resultados, independentemente do observador.

Não é tarefa simples convencer sociedades inteiras de conceitos tão abstratos. Veja o caso do uso da hidroxicloroquina no tratamento da infecção pelo atual coronavírus, droga dotada de ação antiviral no tubo de ensaio, já testada sem sucesso contra dengue, gripe, zika, chikungunya e outras viroses.

Para demonstrar atividade de um medicamento contra determinada enfermidade, para a qual não há tratamento conhecido, o estudo deve pertencer à categoria dos ensaios clínicos controlados, randomizados, prospectivos, em duplo cego.

Isso quer dizer, que os participantes precisam ser alocados ao acaso para dois grupos: um deles servirá de controle, outro receberá pela primeira vez a droga em teste. No entanto, como o simples ato de tomar remédio altera a percepção dos sintomas que nos afligem, os pacientes não devem saber para que grupo foram sorteados. Da mesma forma, é preciso evitar que o julgamento do médico seja comprometido.

Para evitar esses vieses, há necessidade de administrar um placebo para o grupo-controle, comprimido inerte (geralmente talco) com aparência idêntica à do que contém a droga em teste, de modo que nem o participante nem o médico possam identificar quem está em cada grupo (duplo cego).

Os participantes serão seguidos até que o número de desfechos clínicos nos dois grupos (cura, piora, mortalidade, sobrevida ou outro) seja suficiente para que os dados nos deem pelo menos 95% de certeza de que são significantes do ponto de vista estatístico.

Como explicar a necessidade de estudos tão detalhados para quem não teve formação científica? É muito mais fácil para os mistificadores contestá-los com base em crenças pessoais, opiniões, dados falsos, interesses políticos ou financeiros. Nem precisam se dar ao trabalho de contra-argumentar, basta pôr os resultados em dúvida: “não é bem assim”, “eu não acredito nisso”.

Médicos criteriosos se baseiam em estudos conduzidos com tanto rigor, porque foi graças a eles que a medicina contribuiu para duplicar a expectativa de vida da população, no decorrer do século 20.

No caso da hidroxicloroquina, nenhum estudo prospectivo, randomizado, controlado, em duplo cego, mostrou que pacientes tiveram qualquer benefício em comparação com os que receberam placebo.

Então, por que há médicos que a receitam? A resposta, prezado leitor, deixo a seu critério.

Drauzio Varella

Fala aos moços

 

 

Fala aos moços

de Darcy Ribeiro

Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando e lutando, como um cruzado, pelas causas que me comovem. Elas são muitas, demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade, somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isto não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos venceram nessas batalhas.

Tudo que diz respeito ao humano, suas vidas, suas criações, me importam supremamente. Dentro do humano, o povo brasileiro, seu destino é o que mais me mobiliza. Nele, a ínvia indianidade brasileira, que consegue milagrosamente sobreviver. Mas, sobretudo, a massa de gente nossa, ainda em fusão, esforçando-se para florescer numa nova civilização tropical, mestiça e alegre.

Acho que aprendi isso, ainda muito jovem, com os antigos comunistas.Imbatíveis em sua predisposição generosa de se oferecerem à luta, por qualquer causa justa, sem mais querer que o bem geral. Estou certo de que a dignidade, e até o gozo de viver que tenho, me vêm dessa atitude básica de combatente de causas impessoais. Tanto, que me atrevo a recomendar duas coisas aos jovens de hoje.

Primeiro, que não respeitem seus pais, porque estão recebendo, como herança, um Brasil muito feio e injusto, por culpa deles. Minha também, é claro. Segundo, que não se deixem subornar por pequenas vantagens em carreirinhas burocráticas ou empresariais pelo dinheirinho ou dinheirão que poderiam render.

Mais vale ser um militante cruzado, acho eu.

Vejo os jovens de hoje esvaziados de juventude, enquanto flama, combatividade e indignação. Deserdados do sentimento juvenil de solidariedade humana e de patriotismo e de orgulho por nosso povo.

Incapacitados para assumir as carências dos brasileiros como defeitos próprios e sanáveis de todos nós. Ignorantes de que o atraso, a fome e a pobreza só existem e persistem, entre nós, porque são lucrativos para uma elite infecunda e cobiçosa de patrões medíocres e de políticos corruptos.

Afortunadamente, podemos nos orgulhar de muitos jovens brasileiros que são o sémen de nosso povo sofredor. Sem eles, nossa Pátria estaria perdida. É indispensável, porém, ganhar a totalidade da juventude brasileira para si mesma e para o Brasil. O dano maior que nos fez a ditadura militar, perseguindo, torturando e assassinando aos jovens mais ardentemente combativos da última geração, foi difundir o medo, promover a indiferença e a apatia. Aquilo de que o Brasil mais necessita, hoje, é de uma juventude iracunda, que se encha de indignação contra tanta dor e tanta miséria. Uma juventude que não abdique de sua missão política de cidadãos responsáveis pelo destino do Brasil, porque sua ausência é imediatamente ocupada pela canalha.

Talvez eu veja tanto desencantamento, onde o que há é apenas o normal das coisas ou o sentimento do mundo que corresponde às novas gerações. Talvez seja assim, mas isso me desgosta muito. Desgosta, principalmente, porque sinto no fundo do peito que é obra da ditadura militar tamanha juventude abúlica, despolitizada e desinteressada de qualquer coisa que não corresponda ao imediatismo de seus interesses pessoais. É por isso que não me canso de praguejar e xingar, exaltado, dizendo e repetindo obviedades.

Sobretudo, quando falo à gente jovem em pregações sobre valores que considero fundamentais e que não ressoam neles como eu quisera.

Primeiro de tudo, o sentimento profundo de que esse nosso paísão descomunal e esse povão multitudinário, que temos e somos, não nos caiu ao acaso, nem nos veio de graça. É fruto e produto de séculos de lutas e sacrifícios de incontáveis gerações. O território brasileiro é do tamanho que é graças à obsessão portuguesa de fronteira, impressa neles por um milênio de resistência, para não serem absorvidos pela Espanha, como ocorreu com todos os outros povos ibéricos. Desde os primeiros dias de nosso fazimento estava o lusitano preocupadíssimo em marcar posses, gastando nesse esforço gerações de índios e caboclos que nem podiam compreender que nos faziam.

Meu apego apaixonado pela unidade nacional começa pela preservação desse território como a base física em que nosso povo viverá seu destino. Encho-me da mais furiosa indignação contra quem quer que manifeste qualquer tendência separatista. Acho até que não poderia nunca ser um ditador, porque mandaria fuzilar quem revelasse tais pendores.
Outro valor supremo, e até sagrado, que quero comunicar à juventude, é o sentimento de responsabilidade pelo atroz processo de fazimento de nosso povo, que custou a vida e a felicidade de tantos milhões de índios caçados nas matas e de negros trazidos de África, para serem desgastados no moinho brasileiro de gastar gente. Nós viemos dos zés-ninguém gerados pela índia prenhada pelo invasor ou pela negra coberta pelo amo ou pelo feitor. Aqueles caboclos e mulatos, já não sendo índios nem africanos e não sendo também admitidos como europeus, caíram na ninguendade. A partir desta carência de identificação étnica é que plasmaram nossa identidade de brasileiros.

Fizeram-no um século depois, quando, através dos insurgentes mineiros, tomamos consciência de nós brasileiros como um povo em si, aspirando existir para si.

Surgimos, portanto, como um produto “inesperado e indesejado do empreendimento colonial que só pretendia ser uma feitoria. A empresa Brasil se destinava era a prover o açúcar de adoçar boca de europeu, o ouro de enricá-los e, depois, minerais e quantidades de gêneros de exportação.

Éramos, ainda somos, um proletariado externo aqui posto para servir ao mercado mundial. Criá-lo foi a façanha e a glória das classes dominantes brasileiras, cujo empenho maior consistia, e ainda consiste, em nos manter nessa condição.

Foi sobre esse Povo-Nação, já constituído e levado à independência com milhões de caboclos e mulatos, que se derramou a avalancha européia quando seus trabalhadores se tornaram descartáveis e disponíveis para a exportação como imigrantes. Os melhores deles se identificaram com o povo antigo da terra e até se tornaram indistinguíveis de nós, por sua mentalidade, língua, cultura e identificação nacional. Ajudaram substancialmente a modernizar o país e a fazê-lo progredir, gerando uma prosperidade ampliada, a inda que muito restrita, e que beneficiou principalmente aos recém-vindos.

É de lamentar, porém, que vez por outra surja, entre eles, uns idiotinhas alegando orgulhos de estrangeiridade. O fazem como se isso fosse um valor, mas principalmente porque estão predispostos seja a quebrar a unidade nacional em razão de eventuais vantagens regionais, seja a retornarem eles mesmos para outras terras, como fizeram seus avós. Afortunadamente, são uns poucos. Com um pito se acomodam e se comportam.

Compreendem, afinal, que não há nesse mundo glória maior que participar da criação, aqui, da civilização bela e justa que havemos de ser.

Tal como ocorreu com nossos antepassados, hoje, o Brasil é nossa tarefa, essencialmente de vocês, meus jovens. A história está a exigir de nós que enfrentemos alguns desafios cruciais que, em vão, tentamos superar há décadas. Primeiro que tudo, reformar nossa institucionalidade para criar aqui uma sociedade de economia nacional e socialmente responsável, a fim de alcançarmos uma prosperidade generalizada a todos os brasileiros. O caminho para isso é desmonopolizar a propriedade da terra, tirando-a das mãos de uma minoria estéril de latifundiários que não plantam nem deixam plantar. Eles são responsáveis pelo êxodo rural e o crescimento caótico de nossas cidades e, conseqüentemente, pela Fome do povo brasileiro. Fome absolutamente desnecessária, que só existe e só se amplia porque se mantém uma ordem social e um modelo econômico compostos para enriquecer os ricos, com total desprezo pelos direitos e necessidades do povo.

Simultaneamente, teremos de derrubar o corpo de interesses que nos quer manter atados, servilmente, ao mercado mundial, exigindo privilégios aos estrangeiros e a privatização das empresas que dão ser e substância à economia nacional, para manter o Brasil como o paraíso dos banqueiros. Não se trata de criar aqui nenhuma economia autárquica, mesmo porque nascemos no mercado mundial e só nele sobreviveremos.

Trata-se é de deixar de ser um reles proletariado externo para ser um povo que exista para si mesmo, ocupado primacialmente em promover sua própria felicidade.

Essas lutas só podem ser travadas com chance de vitória desmontando a ordem política e o sistema econômico vigentes. Seu objetivo expresso é preservar o latifúndio improdutivo e aprofundar a dependência externa para manter uma elite rural esfomeadora e enriquecer um empresariado urbano servil a interesses alheios. Todos eles estão contentes com o Brasil tal qual é. Se não anularmos seu poderio, eles farão do Brasil do futuro o país que corresponda aos interesses dos países que nos exploram.

Nestas singelas proposições se condensa para mim o que é substancial da ideologia política que faz dos brasileiros, brasileiros dignos. Tais são o zelo pela unidade nacional, o orgulho de nossa identidade de povo que se fez a si mesmo pela mestiçagem da carne e do espírito; a implantação de uma sociedade democrática onde imperem o direito e a justiça para todos; a democratização do acesso à terra para quem nela queira morar ou cultivar; a criação de uma economia industrial autônoma como o são todas as nações desenvolvidas.

Eis o que peço a cada jovem brasileiro: repense estas ideias, reavalie estes sentimentos e assuma, afinal, uma posição clara e agressiva no quadro político brasileiro.

*Publicado em agosto de 1994

Nazistas, assassinos, abusadores, corruptos e milicianos estão no poder

 

 

Nazistas, assassinos, abusadores, corruptos e milicianos estão no poder

Caso Flordelis é um resumo perfeito do Brasil sob Bolsonaro

  • Antonio Prata

A cantora, deputada e pastora evangélica Flordelis não podia se separar do filho adotivo com quem havia se casado —ex-marido de uma de suas filhas também adotadas— porque um divórcio escandalizaria a Deus: então, obviamente, decidiu matá-lo. Com a ajuda dos filhos, claro. Essa lógica tão cristalina quanto um bloco de granito é um resumo perfeito do bolsonarismo.

Nas eleições de 2018, Bolsonaro se apresentou como anti-establishment e antipolítico, embora tivesse passado as últimas três décadas bundando na Câmara dos Deputados. Durante os anos em que bundou em Brasília, Bolsonaro mantinha um apartamento funcional, pago por nós, embora contasse com um imóvel próprio. Quando questionado, disse que o apartamento funcional, pago por nós, era “pra comer gente”. E quem mama nas tetas do Estado, segundo ele e seu asseclas, é o coreógrafo, o ator de teatro, o aluno cotista, o pesquisador da Capes, do CNPq que contam, ou, em grande parte, contavam, com incentivos estatais.

Este velho político que usava o nosso dinheiro “pra comer gente”, que está no terceiro casamento, que elogia publicamente o músico espancador da namorada, coloca-se como “defensor da família”. É uma defesa da família bem parecida com a da deputada Flordelis. Um duplo twist carpado na lógica já torta do Maluf, “estupra, mas não mata”: é o “mata, mas não desquita”.

Os cruzados da família não vão atrás do tio pedófilo que violentava a criança dos seis aos dez anos, vão atrás é da menina no hospital para fazer um aborto legal depois de ser engravidada pelo estuprador. A criança teve que entrar no hospital dentro do porta-malas de um carro, enquanto os defensores da família gritavam “assassina!”. A neonazista Sara Winter (leiam o perfil na última Piauí) divulgou os dados da criança em suas redes, de forma a garantir que ela siga sendo para sempre abusada, agora não mais pelo tio, mas por todos os cidadãos e cidadãs “de bem”.

“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos." Quando eu ouvi pela primeira vez o slogan inconstitucional com que Bolsonaro batizou nosso Estado laico, lamentei profundamente. Hoje em dia, diante da demolição moral, institucional, ambiental, enfim, da implosão civilizacional a que estamos assistindo, lamento profundamente é que não tenhamos no lugar deste herege um presidente “profundamente evangélico”.

Ao contrário do presidente, que não leu sequer a bula da cloroquina, li a Bíblia de cabo a rabo. Não encontrei nos Evangelhos um versículo sequer que justifique ter como braço direito da família um miliciano assassino suspeito de organizar rachadinhas no gabinete do filho e repassar dinheiro para a mulher do pai. Tampouco encontrei nos Evangelhos —o Velho Testamento é outra coisa, ali El Shadai bota pra quebrar— nada que embase o extermínio de 30 mil ímpios. Porrada na boca. Rato na vagina. (Uma tara do ídolo do Bolsonaro, Brilhante Ustra). Jesus fez-se conhecido principalmente por curar doentes. Não por dar as costas a leprosos dizendo que era “só uma micosezinha” e deixar morrer 120 mil em poucos meses.

Jesus sacrificou-se para salvar a humanidade. Bolsonaro sacrifica a humanidade para salvar o próprio rabo. Não é um bundão, é um serial killer. Quando a crise econômica bater feio, ele dirá como Pôncio Pilatos, algoz de Cristo: “Lavo minhas mãos”. As mãos de Pilatos estão sujas até hoje, 2020 anos depois.

Nazistas, assassinos, abusadores de crianças, corruptos, delinquentes e milicianos estão no poder, hoje, no Brasil, em nome da família, de Deus e da liberdade. Amém.

Antonio Prata

domingo, 23 de agosto de 2020

Steve Bannon, o Trotsky da Internacional dos Populista

 

 

Steve Bannon, o Trotsky da Internacional dos Populistas, por Fernando Nogueira da Costa

Steve Bannon é originário da classe trabalhadora americana e nunca superou sua raiva original. Abomina a elite esnobe em relação a gente como ele. Ele luta para arrancar da intelligentsia liberal (esquerda norte-americana) a hegemonia cultural.


Steve Bannon, um dos mentores da vitória de Donald Trump nas eleições de 2016, foi preso em um iate. É acusado de enganar milhares de doadores por meio de uma plataforma de financiamento coletivo chamada “We Build the Wall” (“Nós Construímos o Muro”). Acumulou US$ 25 milhões para o muro na fronteira entre EUA e México.

Bannon usou centenas de milhares de dólares desse dinheiro para expandir despesas pessoais. Entende-se porque pregou esse bordão xenófobo na campanha Trump…

Segundo Giuliano da Empoli, em seu livro “Os Engenheiros do Caos” (tradução Arnaldo Bloch. 1ª. ed. São Paulo: Vestígio, 2019), Steve Bannon é, de certo modo, o Trotsky do movimento populista, misto de ideólogo e organizador da Internacional dos populistas. Apresentarem-se como nacionalistas seria uma contradição em termos. Tais como seus representantes no Brasil, pertencentes ao clã Bolsonaro da casta dos militares, não rejeitam a submissão aos Estados Unidos, presidido por Donald Trump.

Steve Bannon é originário da classe trabalhadora americana e nunca superou sua raiva original. Abomina a elite esnobe em relação a gente como ele. Ele luta para arrancar da intelligentsia liberal (esquerda norte-americana) a hegemonia cultural.

Antes de se integrar a campanha de Trump, Bannon comandou o site de contrainformação, Breitbart News, do movimento “direita alternativa” dos EUA. Abriga nacionalistas, supremacistas brancos, neonazistas e antissemitas radicais. Bannon logo aprendeu com seu mestre Andrew Breitbart, fundador do site homônimo: “a política deriva da cultura”. Aliás, Antônio Gramsci, à esquerda, sugeriu isso muito antes.

Seus membros se imaginam conspiradores contra o establishment. São militaristas ou, simplesmente, indivíduos raivosos. Sempre estão decididos a impor um ponto de vista diferente com “negacionismo científico” sobre as principais questões no centro do debate: a imigração, o livre-comércio, a defesa das minorias e os direitos civis.

A internet revolucionou a política em diversos países. O populismo neofascista se iniciou na Itália. Lá, pela primeira vez, o poder foi conquistado por uma forma nova de tecnopopulismo pós-ideológico, fundado não em ideias, mas em algoritmos formadores de opiniões extremistas, disponibilizados pelos engenheiros do caos.

Segundo Empoli, um tecnólogo de informações (Gasaleggio), especialista em marketing digital, dirigiu o Movimento 5 Estrelas, aliado a um comediante popularíssimo (Grillo). Depois de constituir sua rede social a partir de um blog, fundou o partido e escolheu os candidatos submetidos à sua visão até assumir o controle do governo de toda a nação.

No dia 8 de setembro de 2007, em toda a Itália, praças foram tomadas por apoiadores do movimento populista. Direita e esquerda se confundiam, tal como nas “gloriosas (sic) jornadas de junho de 2013” no Brasil, abertura da porta para a direita “sair do armário”, onde tinha se metido desde a Campanha Diretas Já, há 30 anos.

Insuflados por Grillo, os italianos raivosos manifestaram o Vaffanculo [Vão se fuder, políticos!] à casta dos homens políticos corruptos, pressuposta opressora de toda “gente de bem”. Em plena recessão, com uma taxa de desemprego de 13% e uma carga tributária recorde, os italianos estavam cada vez mais receptivos às palavras de ordem simplórias do Movimento 5 Estrelas, organizado por uma rede social de ódio.

Em poucos meses, ele se torna o único verdadeiro partido nacional do país, popular do Norte ao Sul, entre jovens e velhos, capaz de captar vozes tanto à esquerda quanto à direita. Nas eleições de fevereiro de 2013, o Movimento 5 Estrelas, com pouco menos de 9 milhões de votos e 25% do sufrágio, se torna o partido mais votado da Itália.

A Física Social, há dois séculos, foi definida como “ciência cujo objeto é o estudo de fenômenos sociais, considerados similares aos fenômenos astronômicos, físicos, químicos e psicológicos”. Eles estariam sujeitos às leis naturais invariáveis, cuja descoberta é a meta das pesquisas: reduzir a sociedade a uma equação matemática.

Nunca atingiu o objetivo de tornar mais previsível a evolução da sociedade. Mas, nos últimos anos, os comportamentos humanos começaram a produzir um fluxo maciço de dados por conta da digitalização de todos os celulares. Graças à internet e às redes sociais, nossos hábitos, nossas preferências, opiniões e mesmo emoções passaram a ser mensuráveis. Somos rastreáveis e mobilizáveis dentro de nossas “câmaras de ecos”.

Quantos “amigos” ou seguidores você tem na internet? Quinhentos? Mil? Não se iluda. O limite das relações humanas é determinado pela biologia evolutiva. O ser humano tem capacidade de manter uma rede de amizade composta por, em média, 150 pessoas.

Conhecido como “número de Dunbar”, ele foi estipulado, na década de 90, pelo antropólogo inglês Robin Dunbar. Compartilhar informações pessoais com quem não se tem intimidade, em rede social, cria a falsa sensação de amizade.

Na Física, o comportamento de cada componente de um sistema não é previsível. Cada um, porém, é submetido a interações com uma infinidade de outros. O comportamento de um aglomerado é previsível. Através da observação do sistema é possível deduzir o comportamento médio de certos nódulos centrais com múltiplas interconexões.

As interações contam mais em vez das unidades individuais. O sistema emergente, tomado em seu conjunto, possui características – e obedece a regras – passíveis de tornar previsíveis e manipuláveis tanto suas opiniões quantos suas ações. As leis da Física, em análise de big data, se aplicam aos comportamentos humanos aglomerados.

Um sistema de seres humanos, interativos entre si, pode ser um sistema caótico. Uma fake news pode ser a pequena modificação inicial capaz de produzir imensos efeitos secundários. Provoca até uma comoção social influente em uma eleição.

O Facebook, por exemplo, permite testar simultaneamente dezenas de milhares de mensagens diferentes, selecionando em tempo real as com um retorno positivo e bem-sucedido. Por um processo de otimização contínua, consegue-se elaborar versões mais eficazes para mobilizar partidários e convencer os céticos. Graças ao trabalho de físicos, aplicado à comunicação, cada categoria de eleitores recebe uma mensagem sob medida.

Pode-se, por exemplo, abordar os argumentos mais controversos, endereçando-os somente àquelas pessoas sensíveis a eles, sem correr o risco de perder o apoio de outros eleitores com pensamento diferente. Chama-se “dog whistle politics” [“política do apito para cão”], quando só alguns percebem o chamado, enquanto outros não ouvem nada.

A Física Newtoniana era baseada na observação a olho nu ou pelo telescópio. Ela descrevia um universo mecânico, regido por leis imutáveis, no qual certas causas produziam certas consequências. A Física Quântica desafia essas antigas leis da racionalidade científica. Revela um mundo de relatividade, no qual nada é estável e onde uma realidade objetiva não pode existir, porque, inevitavelmente, cada observador a modifica na perspectiva de seu ponto de vista pessoal.

De maneira análoga, a Política Newtoniana estava adaptada a um mundo mais ou menos racional, controlável, no qual a uma ação correspondia uma reação. Os eleitores podiam ser considerados como componentes dotados de pertencimentos ideológicos, de classe ou de território, dos quais derivavam escolhas políticas definidas e constantes.

Com a Política Quântica, a realidade objetiva não existe. Cada coisa se define, provisoriamente, em relação a uma outra, e, sobretudo, cada internauta determina sua própria realidade. Em sua bolha, recebe apenas informações pelas quais se interessa.

Na Política Quântica, a versão do mundo vista por cada um é literalmente invisível aos olhos de outros. Afasta cada vez mais a possibilidade de um entendimento coletivo.

Cada um fica dentro de sua própria bolha, no interior da qual só certas vozes se fazem ouvir. Apenas alguns fatos existem. Na ultrapassada Política Newtoniana, cada um tinha direito a suas próprias opiniões, mas não a seus próprios fatos, mas na Política Quântica esse princípio não é mais viável. A verdade passa a ser a interpretação.

Alguns analistas comparam a política norte-americana atual ao clima de 1860, antes da Guerra Civil. Os democratas querem acabar com as injustiças históricas, para conquistar um país multicultural, negro, branco, pardo, gay, transgênero, com necessidades especiais e cosmopolita. Os republicanos têm a aparência predominantemente branca, suburbana, provinciana e quase exclusivamente heterossexual. Os conservadores buscam restaurar a situação histórica a uma época anterior ao “politicamente correto”.

No Brasil, como diz Maria Rita Kehl, “para o machista, homofóbico, misógino e conservador em costumes religiosos deve ser um osso duro de roer ver a alegria, a liberdade e a autossuficiência da geração do #EleNão”. Acumula ressentimento.

Os apoiadores do autoritarismo militar se ressentiram de ficar de fora da festa da reconquista da democracia. Eles não se veem como perdedores na competição social, mas como “prejudicados”. Ressentidos, acusam a gente culta de esquerda por isso.

Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Golpe Econômico: Locaute ou Nocaute da Economia Brasileira” (2020). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

Boaventura de Sousa Santos: “credibilidade do sistema judicial do Brasil foi tremendamente corroída pela Lava-Jato”

 

 

Boaventura de Sousa Santos: “credibilidade do sistema judicial do Brasil foi tremendamente corroída pela Lava-Jato”,

 por Cesar Calejon

Em sua nova obra, o professor português utiliza o livro A Ascensão do bolsonarismo no Brasil do século XXI como referência bibliográfica e estabelece uma comparação entre as ascensões de Jair Bolsonaro e Adolf Hitler


Em sua mais recente obra, a terceira edição do livro Toward a New Legal Common Sense: Law, Globalization and Emancipation, que será lançada na próxima semana (31 de agosto) pela Cambridge University Press, na Inglaterra, o professor português Boaventura de Sousa Santos aborda a judicialização da política como um dos principais eventos transnacionais da nossa época. Ele afirma que, no caso brasileiro (Lava-Jato), existe um componente fortíssimo de influência externa e cita o livro A Ascensão do bolsonarismo no Brasil do Século XXI como referência bibliográfica para compreender o bolsonarismo e demonstrar as similaridades das ascensões de Jair Bolsonaro e Adolf Hitler, considerando a atuação da operação Lava-Jato.

“Por que a Operação Lava Jato foi muito além dos limites das polêmicas que habitualmente surgem na esteira de qualquer caso proeminente de ativismo judicial?”, questiona Boaventura no sexto capítulo do seu novo livro. “Permitam-me salientar que a semelhança com a investigação italiana, Mãos Limpas, tem sido frequentemente invocada para justificar a exibição pública e a agitação social causadas por este ativismo judicial. Embora as semelhanças sejam aparentemente óbvias, há de fato duas diferenças bem definidas entre as duas investigações”, prossegue o acadêmico.

Segundo ele, “(…) por um lado, os magistrados italianos sempre mantiveram o respeito escrupuloso pelo processo penal e, no máximo, não fizeram nada além de aplicar regras que haviam sido estrategicamente ignoradas por um sistema judicial que não era apenas complacente, mas também cúmplice dos privilégios dos políticos governantes e das elites na política do pós-guerra da Itália”.

“Por outro lado, procuraram aplicar o mesmo zelo invariável na investigação dos crimes cometidos pelos dirigentes dos vários partidos políticos. Eles assumiram uma posição politicamente neutra justamente para defender o sistema judiciário dos ataques a que certamente seria submetido pelos visados por suas investigações e processos. Essa é a própria antítese do triste espetáculo que atualmente oferece ao mundo um setor do sistema judiciário brasileiro. O impacto causado pelo ativismo dos magistrados italianos passou a ser denominado República dos Juízes. No caso do ativismo do setor associado à Lava Jato, talvez fosse mais correto falar de uma república judiciária da Banana”, afirma Boaventura.

Ainda de acordo com ele, “a influência externa que está claramente por trás desse caso particular de ativismo judicial brasileiro estava amplamente ausente no caso italiano. Essa influência é o que está ditando a seletividade flagrante de tal procedimento investigativo e acusatório. Pois embora envolva dirigentes de vários partidos, o fato é que a Operação Lava Jato – e seus cúmplices da mídia – tem se mostrado extremamente inclinada a envolver as lideranças do PT (Partido dos Trabalhadores).”

Na página 386 do seu novo trabalho, Boaventura argumenta que a Lava-Jato tem menos semelhanças com a operação Mãos Limpas do que com o processo judicial que precedeu a ascensão do nazismo após o fim da primeira guerra mundial na Alemanha.

“A Operação Lava Jato tem mais semelhanças com outra investigação judicial, que ocorreu na República de Weimar após o fracasso da revolução alemã de 1918. A partir daquele ano, e em um contexto de violência política originada tanto na extrema esquerda quanto na extrema direita , os tribunais alemães mostraram uma chocante demonstração de dois pesos e duas medidas, punindo com severidade o tipo de violência cometida pela extrema esquerda e mostrando grande leniência com a violência da extrema direita – a mesma direita que em poucos anos colocaria Hitler no poder. No Brasil, isso levou à eleição de Jair Bolsonaro”, escreve o autor, que, neste parágrafo, oferece o livro A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI como referência bibliográfica sobre o bolsonarismo.

“A credibilidade do sistema judicial do Brasil foi tremendamente corroída pela manipulação grosseira a que foi submetido. Mas este é um sistema internamente diverso, com um número significativo de magistrados que entendem que a sua missão institucional e democrática consiste em respeitar o devido procedimento e falar exclusivamente no âmbito do processo”, acrescenta Boaventura.

Por fim, ele pondera que “(…) a grosseira violação desta missão, exposta pela Vaza -Jato (“Car-Leak”), está forçando as organizações profissionais a se distinguirem dos amadores. Uma recente declaração pública da Associação Brasileira de Juízes pela Democracia, chamando o ex-presidente Lula da Silva de prisioneiro político, é um sinal promissor de que o sistema judiciário está se preparando para recuperar a credibilidade perdida”, conclui.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro “A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI” (Lura Editorial).

Fachin vê, como todos, e diz, como poucos, sobre futuro contaminado por despotismo

 

Fachin vê, como todos, e diz, como poucos, sobre futuro contaminado por despotismo

Ministro do STF faz diagnóstico forte e destemido ao tratar da escalada do autoritarismo no Brasil após eleições de 2018

Janio de Freitas

A repercussão negada pelos jornalistas não nega ao exame da atualidade pelo ministro Edson Fachin, do Supremo, a condição de mais importante pronunciamento de um integrante das altas instituições brasileiras, ao menos desde iniciado o governo Bolsonaro, se não desde a queda de Dilma Rousseff.


A “recessão democrática” ainda não recebera nada no nível adotado por Fachin, exceto em parte pelo ministro Celso de Mello.

Objetivo como os magistrados evitam ser, claro e simples como os magistrados detestam ser, franco e lúcido como deveriam ser as considerações necessárias dos magistrados, Fachin advertiu que “as eleições de 2022 [as presidenciais] podem ser comprometidas se não se proteger o consenso em torno das instituições democráticas”. Proteger de quê ou de quem?

O diagnóstico é forte e destemido: há “uma escalada do autoritarismo no Brasil após as eleições de 2018”, gerada pela existência de “um cavalo de Troia dentro da legalidade constitucional” do país.

“Esse cavalo de Troia apresenta laços com milícias e organizações envolvidas com atividades ilícitas. Conduta de quem elogia ou se recusa a condenar ato de violência política no passado”. O
que inflama o presente com “surtos arrogantes e ameaças de intervenção”.

Fachin vê, como todos, e diz, como poucos: “O futuro está sendo contaminado por despotismo”.

No Supremo, a ministra Cármen Lúcia pareceu dar eco às palavras de Fachin no Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral. Considerou triste a volta forçada do tribunal, diante do dossiê do Ministério da Justiça contra antifascistas, “a este assunto quando já se acreditava ser apenas”, ou ter sido, “uma fase mais negra da nossa História”. Nada a ver com o dito por Fachin, se até agora Cármen Lúcia tinha tal crença. Mesmo a tristeza soa irrealista.

Não faltaram ocasiões em que o Supremo e o TSE foram chamados a sustar a candidatura que atacou a democracia com a defesa da ditadura e da tortura, atacou as instituições constitucionais, prometeu acabar com os petistas e outros, anunciou uma população armada, transpirou ódios preconceituosos e vocação homicida. Isso tudo expelido por uma perturbação mental indisfarçável e com histórico comprovado.

Hoje não faltam crimes de responsabilidade acumulados. Como não faltam mortes pela Covid, não combatida de fato e inocentada para os incautos. E nem é só o figurante principal que continua inatingível pela defesa da ordem constitucional e do devido à população.

Flávio Bolsonaro não precisa controlar as revelações que se sucedem sobre sua delinquência, porque controla a passividade do Senado e o vagar dos seus inquéritos. Carlos Bolsonaro nem interesse demonstrou pelas revelações que o atingem. Fabrício Queiroz e seus contatos milicianos estão protegidos.

A instauração e a ameaçadora continuidade do descrito por Edson Fachin, como ninguém ousou fazer nas altas instituições, têm corresponsabilidades no Judiciário e no Congresso. Mas aí mesmo, na impossibilidade de negar o exposto pelo ministro, ficará mais difícil não ver o que está vendo, para não fazer o que deve.

Os bons moços

Desde que passou de senador a deputado, para que seus processos saíssem de Brasília rumo à sua Minas, Aécio Neves não cessa de receber benesses.

Agora é o desaparecimento de delações premiadas integrantes dos seus processos, que por isso param... na Justiça (sic) de Minas.

O que importa é poder usufruir bem, com sua vocação de playboy, os milhões que extorquiu por aí com a irmã. Enquanto Geraldo Alckmin e José Serra seguem suas vidas discretas e bem providas. Aos bons moços do PSDB correspondem bons moços no Ministério Público e nos tribunais.

Janio de Freitas

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Lei Antidrogas, 14 anos

 

Lei Antidrogas, 14 anos

Como está, lei só amplia prisão de pequenos traficantes, facilmente substituíveis


Willian Sampaio 
Advogado, foi subsecretário de Assuntos Estratégicos e secretário-adjunto da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (2007-10)

 

No próximo domingo (23) a atual legislação antidrogas do Brasil, lei 11.343/2006, completa 14 anos. De lá para cá viu-se aprofundar o modelo equivocado de política criminal do país. Desde 1940, nossa legislação penal é amparada por deturpada axiologia. É só ler o Código Penal: a honra e integridade física, por exemplo, valem menos que uma cabeça de gado. Explica-se: as penas para a calúnia, difamação e injúria vão de três meses a dois anos de detenção; para lesão corporal, três meses a um ano. Mas basta ocorrer um abigeato (furto de gado), que a pena será de dois a cinco anos de reclusão.

Assim andou a Lei Antidrogas. Ao tipificar o crime de tráfico de entorpecente, a lei trouxe, no artigo 33, 18 condutas. Juntou-se tudo: “Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

Já a posse de substância entorpecente foi despenalizada —não confundir com descriminalizada— pela previsão do artigo 28. Mas a lei deixou ao critério discricionário sua aferição. Ao aplicar ao caso concreto, modula-se a posse pela quantidade, local e circunstâncias sociais e pessoais da pessoa.

Estudo realizado pela Associação Brasileira de Jurimetria, com base nos dados do estado de São Paulo de 2010 a 2017, trouxe algumas conclusões: como a lei não definiu critério objetivo na quantidade para distinguir o uso do tráfico, esta operação é exercida pela autoridade policial no momento da lavratura do boletim de ocorrência.

A tipificação temporária do fato como tráfico varia conforme a região do estado. Na capital a classificação ocorre diante de apreensões de quantidades entre 20 e 40 gramas de substância, a depender da região da cidade. A valoração sobre a quantidade de drogas no geral é suficiente para classificar o suspeito como traficante ou como usuário, considerando a relativa raridade de outros elementos de prova, está sob a discricionariedade policial.

Também na capital é considerado tráfico de drogas o porte de 33 g de cocaína, 17 g de crack e 51,2 g de maconha. Já no restante do estado, considera-se tráfico o porte de 20 g de cocaína, 9 g de crack e 32,1 g de maconha. Critérios objetivos para distinção poderiam ser uma forma de reduzir a discricionariedade e definir fronteiras claras para reformulação da atual política de drogas.

Não obstante, ainda segundo o estudo, a utilização de critérios objetivos poderia gerar dois outros tipos de distorção: criminalizar usuários e ser leniente com traficantes. Apontou, entretanto, ser possível propor valores de corte ideais que balanceiam os dois tipos de injustiça. O Supremo Tribunal Federal está julgando, desde 2011, recurso extraordinário que visa declarar inconstitucional o artigo 28 da referida lei —os três primeiros votos foram nesse sentido, dois deles restritos à posse da maconha.

Mas, enquanto não se decide a questão e não se altera a lei, quais os efeitos? Sob vigência atual, verificou-se o aumento exponencial de presos por crime de “tráfico” e outros delitos ligados às drogas, a maior parte pequenos vendedores nas “biqueiras”, pessoas facilmente substituíveis por outras.

Dados do Infopen, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), mostram que a população carcerária do Brasil, somente entre 2010 e 2014, cresceu 33%, enquanto outros países reduziam o número de presos, como os Estados Unidos (-8%), a China (-9%) e a Rússia (-25%). O Brasil passou de 361 mil presos em 2005 para 755 mil em 2019. Em taxa por 100 mil habitantes, foi de 196, em 2005, para 359 em 2019. São jovens, dos quais 45% com idade entre 18 e 29 anos, 46% são pardos e 51% com ensino fundamental incompleto. Mais de 30% dos presos do Brasil estão sob custódia provisória, em alguns estados mais de 50%.

Da análise dos dados verifica-se um ponto relevante do perfil de população carcerária e seus reflexos. Aqueles que ingressaram no sistema penitenciário em 2008-2009, mais de um terço pela Lei das Drogas, começaram a sair do sistema prisional entre 2013 e 2017. É de se notar que até 2013 o número de roubos no estado de São Paulo era, em média, 240 mil por ano. Em 2014, saltou para 310 mil e assim se manteve nos anos subsequentes.

Criou-se um ciclo perverso: prende-se o pequeno vendedor de drogas que anos depois volta às ruas, já estigmatizado e com poucas oportunidades, como “roubador” e, o pior, muitas vezes para pagar a “cebola” —dinheiro mensal destinado à facção criminosa que domina a maioria do tráfico de drogas em São Paulo.

A população carcerária feminina também aumentou: 116% entre 2006 e 2019; 64% ligadas ao tráfico. Boa parte incorreu em um dos 18 verbos-núcleos típicos do artigo 33 —guardar a droga, e em casa.

O Brasil prende muito e prende mal —mas não é a polícia, que observa a lei nas suas ações, nem o Judiciário, que entrega jurisdição. A lei está errada. Errada ao colocar no mesmo dispositivo (artigo 33) pequenos vendedores, com a mesma pena mínima aplicada a maiores traficantes (cinco anos). Errada ao não estabelecer critérios objetivos para verificar-se a posse de entorpecente. Errada ao vincular a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (Senad) à atividade de Justiça e segurança pública, quando deveria ser uma das competências da área da saúde. Melhor seria que essa lei, na forma como está, não debutasse.


domingo, 9 de agosto de 2020

Lava Jato Lado B: Como a Petrobras foi parar no banco dos réus nos EUA

 

Lava Jato Lado B: Como a Petrobras foi parar no banco dos réus nos EUA

"Como é que a Petrobras pode ser ao mesmo tempo responsável perante os promotores americanos e vítima perante os procuradores brasileiros? Quem está errado?"

Por Luís Nassif e Cintia Alves

A história de como a Petrobras foi parar no banco dos réus nos Estados Unidos entrelaça três frentes de atuação contra a empresa.

A primeira delas, que exerceu o papel de carro-chefe em relação às demais, foi a montagem de uma class-action, uma espécie de ação judicial coletiva, uma das maiores do mundo, que fez a Petrobras desembolsar sozinha quase 3 bilhões de dólares em indenizações.

Na esteira dessa ação coletiva, o Departamento de Justiça – em inglês, a sigla é DOJ – e a Comissão de Valores Mobiliários – a SEC, uma espécie de agência reguladora do mercado de capitais – também passaram a investigar a Petrobras, que está sujeita à fiscalização desde que abriu capital na Bolsa de Nova York.

Seguindo a mesma linha de defesa que adotou na class-action, a Petrobras também fechou um acordo com o DOJ, e pagou mais uma multa, de 853 milhões de dólares.

No total, são 3,8 bilhões de dólares, ou mais de 15 bilhões de reais no câmbio do final de 2019. Essa quantia hoje é quase 4 vezes maior do que a reparação que a Petrobras recebeu por meio da Lava Jato nos últimos 5 anos. Também é mais do que o dobro do valor anunciado como perdas de corrupção pela própria Petrobras, quando ela se dirigiu ao mercado em 2015, para prestar contas dos prejuízos.

COMO SURGIU A CLASS-ACTION

A class-action surgiu logo depois das primeiras delações da Lava Jato. Com destaque para o depoimento de Paulo Roberto Costa, que foi funcionário de carreira na Petrobras. Ele ter participado das negociatas representava uma falha grave no sistema de compliance da companhia.

Valeska Teixeira. Imagem: Nacho Lemus

A advogada Valeska Teixeira, que estuda as relações da Lava Jato com os Estados Unidos, explicou ao GGN: “Eles começam a ação [coletiva] em 2014 por práticas corruptas, ou seja, alegando um sistema de corrupção sistêmico que teria, na realidade, gerado um prejuízo muito grande para todos os acionistas minoritários da Petrobras nos Estados Unidos.”

“Começam a fase de discovery, a parte de instrução para descobrir essa corrupção. Eles inclusive narram [nos autos do processo nos EUA] que mandaram ex-agentes do FBI ao Brasil; que teriam tido muito cooperação das autoridades brasileiras, que teriam entrevistado possíveis delatores que estariam na prisão. É uma pergunta que se faz: como eles tiveram acesso a esses possíveis delatores?”

A ideia da class-action partiu de um advogado brasileiro, André de Almeida, formado no exterior. Ele se associou ao escritório norte-americano Wolf Popper para processar a Petrobras em nome dos acionistas. Em dezembro de 2014, eles entregaram a ação a um tribunal federal em Nova York.

“Por que não fazer no Brasil? Primeiro porque acho que existe um gap civilizatório brutal entre o Poder Judiciário americano e o brasileiro. Especialmente em ações coletivas, e especialmente em reparações ao acionista minoritário”, comentou.

“A minha pretensão, muito ousada na época, era que a Justiça americana compensasse ou indenizasse todos os acionistas, brasileiros e estrangeiros. O Judiciário americano decidiu, no curso da ação, que ele teria competência apenas para julgar as indenizações relacionadas aos acionistas que investiram nos Estados Unidos. Não são [apenas] americanos, são fundos, pessoas físicas ou jurídicas ou qualquer outro veículo de investimento, mas que tenham comprado [ações da Petrobras] no mercado americano.”

Na teoria, a desvalorização das ações da Petrobras na fase inicial da Lava Jato tinha três componentes: a queda no preço do barril de petróleo no mercado internacional, os danos à imagem provocados pelo estouro da operação em Curitiba e a corrupção em si. Como separar esses três elementos no cálculo do valor da ação?

Segundo Almeida, “para fazer um cálculo de quanto foi a perda, nós temos de ter um marco zero. E o marco zero que desenhei para a class-action foi aquele, entre aspas, IPO [sigla em inglês para “oferta pública inicial”, ou abertura de capital] que ocorreu em 2010, que fez a Petrobras ser a quinta empresa mais valiosa do mundo na época.”

André de Almeida: Imagem: Nacho Lemus

“Ela tinha um market cap, um valuation de mais de 300 bilhões de dólares, em 2010. Foi um dado que a própria companhia divulgou ao mercado e foi o número com que o próprio mercado avaliou a companhia. Ao final de 2015, a companhia valia 30 bilhões de dólares, ou seja, teve uma depreciação ao longo de quatro anos.”

Nesse mesmo período, houve uma “queda abrupta no preço do petróleo”. Mas as ações de grandes petrolíferas “bem administradas”, segundo Almeida, não caíram tanto quanto as da Petrobras. “A ação da Exxon Mobil caiu 18%. A ação da British Petroleum, 14%. A ação da Petrobras caiu 90%, e a ação da PDVSA caiu 89%. Veja bem: a Petrobras conseguiu ter queda superior a da PDVSA, que é a companhia [venezuelana] mais ineficiente do mundo.”

Essa diferença, na visão do advogado dos acionistas, só tinha uma explicação: a Petrobras perdeu mais valor porque tinha problemas internos de má gestão e desvios de conduta ética.

“Nada justifica uma empresa perder um valor de mercado de 90% em quatro anos, e justificar isso com relação a perda de valor do mercado de petróleo, quando, simultaneamente, outras empresas na realidade não sofreram nada”, argumentou.

Mas para ressarcir os acionistas, o cálculo envolvendo os danos à imagem da Petrobras e a corrupção alegada pela Lava Jato jamais foi realizado.

“Não chegou-se no processo no momento em que houve uma conta para verificar qual valor se deve à corrupção, qual valor se deve à ineficiência, qual valor se deve ao uso político da empresa e qual valor se deve à incompetência.”

A conta ao final não precisou ser feita, de acordo com Almeida, porque a Petrobras optou pelo acordo e se obrigou a pagar 3 bilhões de dólares em indenização aos acionistas, “o que dá um valor de mais ou menos 1 dólar por ação.”

“A pretensão inicial era um ressarcimento no valor de 8 dólares a 9 dólares por ação, por isso é ‘a maior ação do mundo’ [título do livro escrito por Almeida sobre o processo histórico contra a Petrobras], mas um acordo é sempre um acordo.”

A PRESSÃO PELO ACORDO

“Você começa a perceber que há a metodologia de carrots and sticks [cenouras e porretes, em tradução livre], que é uma tática muito conhecida de lawfare”, explicou Valeska Teixeira.

“Você simplesmente, como disse Dallagnol, coloca a pessoa de joelhos e oferece uma redenção. É basicamente isso. A pessoa [no caso, a Petrobras] confessa, aceita a jurisdição [dos EUA], aceita a aplicação do FCPA [a lei anticorrupção norte-americana], e isso tudo é negociado. Não há revisão, não há escrutínio judicial nos Estados Unidos. Tudo acontece lá, de forma negocial, na Justiça de lá.”

“A Petrobras se apresentou espontaneamente naqueles autos e começou a compartilhar todas as provas, ou documentos, ou testemunhos”, comentou Valeska.

“O curioso é que, nos acordos governamentais, por exemplo, o DOJ [Departamento de Justiça dos EUA], quando faz o acordo [separado da class-action], ele estimava uma perda no âmbito da Petrobras, por conta da corrupção, de 1 bilhão de dólares. A SEC [Comissão de Valores Mobiliários dos EUA], na mesma data, fala que deveriam ser reparados aos acionistas, global, 933 milhões de dólares. O fato é que fecham um acordo por quase 3 bilhões de dólares.”

A class-action foi finalizada oficialmente em janeiro de 2018. Em setembro daquele mesmo ano, a Petrobras fechou ao mesmo tempo os outros dois acordos que faltavam nos Estados Unidos. Um deles com a SEC, que estimou a multa de 933 milhões de dólares, como explicou Valeska. Esse valor, contudo, foi descontado dos bilhões pagos na class-action. O terceiro acordo foi com o DOJ, que é bastante controverso dentro da comunidade jurídica.

Para o advogado e consultor André Motta Araújo, “é aceitável que a SEC multe a Petrobras como multaria qualquer outra empresa. A SEC dá embasamento à cobrança de multas porque ela considera que a corrupção afeta a regular cotações das ações. O balanço, não refletindo a corrupção, ele é falso, está adulterado, então passaram informações inadequadas ou insuficientes para os acionistas. É nesse quadro que se dá a multa da SEC.”

André Motta Araújo. Imagem: Nacho Lemus

Já o acordo com o DOJ gera uma discussão sobre a legitimidade de submeter uma empresa estratégica para o desenvolvimento do Brasil à jurisdição norte-americana.

Além disso, é de se perguntas se o que aconteceu dentro da Petrobras se enquadra no escopo da FCPA, que é a lei anticorrupção dos EUA.

AS NARRATIVA ANTAGÔNICAS CONTRA A PETROBRAS 

Aqui no Brasil a Petrobras não foi acusada de ter sido pagadora de propina. Ao contrário: foi tratada como vítima e sua pessoa jurídica não só foi poupada pela Lava Jato em Curitiba como trabalhou como assistente de acusação.

A União, que é acionista majoritária, poderia então ter invocado imunidade funcional para a Petrobras – uma estratégia embasada no tratado de cooperação internacional com os Estados Unidos em matéria penal, em vigor no Brasil desde 2001.

A ARMA DIPLOMÁTICA

“O Brasil bastaria invocar, através de seu canal diplomático, essa cláusula de interesse nacional, [alegando] que a Petrobras não está sob jurisdição [dos EUA] no que concede à lei anticorrupção de 1971, que é a FPCA. O governo americano jamais criaria caso com o Brasil”, disse Araújo ao GGN.

“Considero ainda absurdo pensar que o governo americano fosse pensar em uma sanção contra a Petrobras, que é a maior cliente dos combustíveis dos EUA. Quer dizer, o Brasil não usou nenhuma arma diplomática. O governo teria todo o peso para fazer, e não fez por vergonha ou talvez timidez. Isso é uma coisa que não se trata como subalterno. É de País para País”, acrescentou Araújo.

A FUNDAÇÃO LAVA JATO

Curiosamente, os Estados Unidos abriram mão de 80% da multa de 853 milhões de dólares aplicada à Petrobras pelo DOJ. Eles determinaram a devolução de 682 milhões de dólares, algo equivalente a 2,5 bilhões de reais. O acordo previa expressamente que as “autoridades brasileiras” deveriam decidir como utilizar esse dinheiro.

Mas em janeiro de 2019, a Petrobras assinou um contrato exclusivo com os procuradores de Curitiba. A força-tarefa planejava criar uma fundação bilionária que financiaria ações sociais e anticorrupção com metade da multa da Petrobras. Os outros 50% seriam guardados para indenizar acionistas brasileiros no futuro. A jogada foi barrada pelo Supremo Tribunal Federal.

O PAPEL DOS PROCURADORES DE CURITIBA

Uma das dúvidas que ainda pairam sobre os processos que a Petrobras enfrentou nos Estados Unidos diz respeito ao papel nebuloso exercido pelos procuradores da Lava Jato.

“O Ministério Público Federal teve uma relação muito ambígua no caso. Os promotores brasileiros em Curitiba achavam um absurdo a ação judicial [class-action]”, disse Almeida, o advogado dos acionistas nos EUA.

“A teoria do Ministério Público era de que a empresa era vítima. E essa teoria era contrária à minha, de que ela deu causa [à corrupção e consequente desvalorização]. E o Ministério Público Federal brasileiro queria que eu perdesse a class-action, porque se eu perdesse, quer dizer que a teoria deles de que a empresa brasileira era vítima, era a correta.”

“Agora me explica uma coisa: como é que a Petrobras pode ser ao mesmo tempo responsável perante os promotores americanos e vítima perante os procuradores brasileiros. Quem está errado?”, disparou Almeida.

“É, na minha visão, um grande enredo equivocado criado pelo Ministério Público Federal pela sua conveniência. Porque era mais fácil tratar a Petrobras como vítima e empresas como bandidas, do que o contrário, juridicamente falando. Porque caso o MPF quisesse demonstrar que a Petrobras foi autora dos ilícitos, assim como os fornecedores, ele teria o trabalho de envolver o poder público, a União federal, no processo. E eles não tiveram a capacidade, ou a vontade, ou talvez a inteligência de separar uma coisa da outra”, esclareceu Almeida.

É claro que a Lava Jato não vai admitir isso, mas pode ter sido pura estratégia processar a Petrobras como vítima no Brasil, e não como culpada, como fizeram nos Estados Unidos. No fundo, o que estava em jogo era manter o centro da operação em Curitiba, sem perder o controle para tribunais superiores, algo que poderia acontecer a União fosse arrastada para o caso.

A VIAGEM DE JANOT E A OPERAÇÃO RADIOATIVIDADE

Além de receber agentes do DOJ aqui no Brasil, os procuradores da Lava Jato também fizeram diversas viagens aos Estados Unidos.

Em fevereiro de 2015, Deltan Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos Lima foram pedir ajuda das autoridades norte-americanas para investigar a Eletronuclear, uma subsidiária da Petrobras.

Na mesma viagem, Rodrigo Janot, então chefe do Ministério Público Federal, visitou Leslie Caldwell, procuradora-adjunta da Divisão Criminal do Departamento de Justiça.

Leslie tem ampla experiência. Participou do caso Enron e ficou marcada pelo estilo implacável. Antes de atuar no DOJ, ela foi sócia do Morgan Lewis, o maior escritório de advocacia a trabalhar para a indústria eletronuclear nos EUA.

Cinco meses depois daquela viagem, a Lava Jato em Curitiba prendeu o Almirante Othon Luiz Pereira da Silva, o pai do programa nuclear brasileiro. As pistas provavelmente vieram das reuniões com o DOJ.

Ao longo de sua carreira, o Almirante Othon acumulou um conhecimento único sobre um mercado que, no comércio mundial, equivale a 100 bilhões de dólares ao ano.

Contra ele, usaram a delação de Dalton Avancini, que “ouviu dizer” que a formação de cartel nas obras da usina de Angra 3 teve a suposta anuência do Almirante, que foi presidente da Eletronuclear, a contratante da obra.

Havia uma enorme desproporção entre as supostas propinas que o Almirante e a empresa de tradução técnica de sua filha teriam recebido em troca de supostamente beneficiar empresas do tal cartel. Além disso, decisões usadas contra ele no processo eram de competência exclusiva da Presidência da República, do Ministério da Defesa e das Forças Armadas.

Sergio Moro. Imagem: Reprodução

O ex-juiz Sergio Moro até chegou a considerar que as “conhecidas qualificações técnicas de Othon” justificavam os pagamentos sob investigação. Mas no final, Moro alegou “um possível conflito de interesses” para fundamentar a prisão.

Foi assim que a Lava Jato colocou o mais relevante cientista militar brasileiro da atualidade atrás das grades, comprometendo o desenvolvimento de uma tecnologia crítica para o País.

Moro depois transferiu a ação penal para o juiz Marcelo Bretas, que cuida da Lava Jato no Rio de Janeiro. o Almirante Othon, já com 77 anos de idade, foi então condenado a 43 anos de prisão. Atordoado com o que estava acontecendo, ele tentou suicídio em sua própria cela.

Dois anos mais tarde, quando foi libertado, Othon avaliou que seu caso envolvia “interesses internacionais”.

Algum tempo depois, o governo Bolsonaro propôs o fim do controle estatal sobre a exploração de urânio e a possibilidade de empresas privadas atuarem no mercado brasileiro.

“Não há nenhuma dúvida de que o governo Trump está muito feliz com Bolsonaro e o apoia fortemente ou irá tentar apoiá-lo da maneira que puderem. Isso porque eles alinharam sua política externa. É por esse motivo, eu acho, que os Estados Unidos quiseram se livrar do antigo governo brasileiro”, disse o economista Mark Weisbrot.

Mark Weisbrot. Imagem: André Neves Sampaio

“O que está acontecendo na Petrobras hoje é consequência da Lava Jato. É privatização branca. ‘Quanto maior for a Petrobras, mais corrupção vai ter. Vamos cortar um pedaço do boi para não dar carrapato.’ Essa é a lógica que está sendo aplicada em consequência da Lava Jato”, comentou Araújo.

A nossa equipe de reportagem questionou a Petrobras sobre os gastos com escritórios de advocacia especializados na legislação norte-americana e o uso dos canais diplomáticos em sua defesa. A empresa não quis comentar esses pontos. Por e-mail, ela afirmou que os acordos com o DOJ e a SEC, e também a class-action, “atendem aos melhores interesses da Petrobras e de seus acionistas, e põem fim a incertezas, ônus e custos associados a potenciais litígios nos Estados Unidos.”

Já os procuradores de Curitiba afirmaram por e-mail que Janot não participou das reuniões com o Departamento de Justiça. A força-tarefa também disse que “não interferiu no processo da Petrobras junto ao DOJ e à SEC, nem nas negociações entre eles. Contudo, realizou gestões perante as autoridades norte-americanas para que parte significativa dos recursos pudesse ficar no Brasil. O pedido se fundamentou especialmente no fato de que a sociedade brasileira foi quem mais sofreu com a corrupção político-partidária na estatal.”

Nota da redação: Esta reportagem faz parte do projeto “Lava Jato Lado B – A influência dos EUA e a indústria do compliance”, produzido pelo GGN no último trimestre de 2019 e divulgado em janeiro de 2020. Antes, portanto, das revelações feitas pelo dossiê “Vaza Jato”, do The Intercept Brasil e veículos associados.