domingo, 30 de agosto de 2020

Na internet, o senso comum ganhou o mesmo status da expertise técnica

 

 

Na internet, o senso comum ganhou o mesmo status da expertise técnica

Ativistas do movimento antivacina, terraplanistas e defensores de teorias conspiratórias divulgam ideias estapafúrdias

Drauzio Varella

A ciência é uma ilha cercada de incompreensões por todos os lados. A um só tempo, ela contradiz o senso comum, o misticismo e o pensamento mágico, formas de interpretar o mundo adotadas pela maioria.

Nos países mais desenvolvidos, as crianças ouvem falar dos princípios que regem a ciência, já nos primeiros anos da vida escolar. Infelizmente, entre nós, os estudantes entram e saem das universidades sem noção de como deve ser articulado o pensamento científico.

Quando Galileu Galilei afirmou que a Terra era um dos planetas que giravam ao redor do Sol, quase foi condenado à morte pela Inquisição. O senso comum era o de que ficávamos parados no centro do Universo, enquanto o Sol, a Lua e os demais astros orbitavam à nossa volta.

Muito mais fácil para os religiosos defender que a Terra era imóvel, como afirmava a Bíblia, do que para Galileu explicar os movimentos de translação e rotação, que ninguém conseguia enxergar nem sentir.


Quando Charles Darwin e Alfred Wallace demonstraram que a vida na Terra —e em qualquer planeta em que venha a existir— é uma eterna competição por recursos naturais limitados, na qual os menos aptos perdem a oportunidade de deixar descendentes, a reação foi tão feroz que 150 anos mais tarde
ainda existem contestadores.

No mundo da internet, o senso comum ganhou status de expertise técnica. Ativistas do movimento antivacina, terraplanistas, charlatães e os defensores de teorias conspiratórias e de tratamentos de eficácia jamais comprovada divulgam ideias estapafúrdias, como se tivessem o nível de conhecimento de cientistas brilhantes.

A ciência é uma frágil conquista civilizatória da sociedade, baseada no raciocínio lógico, na observação empírica, na significância estatística, no confronto de dados e na reprodutibilidade dos experimentos, regra segundo a qual a repetição de uma experiência deve levar aos mesmos resultados, independentemente do observador.

Não é tarefa simples convencer sociedades inteiras de conceitos tão abstratos. Veja o caso do uso da hidroxicloroquina no tratamento da infecção pelo atual coronavírus, droga dotada de ação antiviral no tubo de ensaio, já testada sem sucesso contra dengue, gripe, zika, chikungunya e outras viroses.

Para demonstrar atividade de um medicamento contra determinada enfermidade, para a qual não há tratamento conhecido, o estudo deve pertencer à categoria dos ensaios clínicos controlados, randomizados, prospectivos, em duplo cego.

Isso quer dizer, que os participantes precisam ser alocados ao acaso para dois grupos: um deles servirá de controle, outro receberá pela primeira vez a droga em teste. No entanto, como o simples ato de tomar remédio altera a percepção dos sintomas que nos afligem, os pacientes não devem saber para que grupo foram sorteados. Da mesma forma, é preciso evitar que o julgamento do médico seja comprometido.

Para evitar esses vieses, há necessidade de administrar um placebo para o grupo-controle, comprimido inerte (geralmente talco) com aparência idêntica à do que contém a droga em teste, de modo que nem o participante nem o médico possam identificar quem está em cada grupo (duplo cego).

Os participantes serão seguidos até que o número de desfechos clínicos nos dois grupos (cura, piora, mortalidade, sobrevida ou outro) seja suficiente para que os dados nos deem pelo menos 95% de certeza de que são significantes do ponto de vista estatístico.

Como explicar a necessidade de estudos tão detalhados para quem não teve formação científica? É muito mais fácil para os mistificadores contestá-los com base em crenças pessoais, opiniões, dados falsos, interesses políticos ou financeiros. Nem precisam se dar ao trabalho de contra-argumentar, basta pôr os resultados em dúvida: “não é bem assim”, “eu não acredito nisso”.

Médicos criteriosos se baseiam em estudos conduzidos com tanto rigor, porque foi graças a eles que a medicina contribuiu para duplicar a expectativa de vida da população, no decorrer do século 20.

No caso da hidroxicloroquina, nenhum estudo prospectivo, randomizado, controlado, em duplo cego, mostrou que pacientes tiveram qualquer benefício em comparação com os que receberam placebo.

Então, por que há médicos que a receitam? A resposta, prezado leitor, deixo a seu critério.

Drauzio Varella

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