segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Lei Antidrogas, 14 anos

 

Lei Antidrogas, 14 anos

Como está, lei só amplia prisão de pequenos traficantes, facilmente substituíveis


Willian Sampaio 
Advogado, foi subsecretário de Assuntos Estratégicos e secretário-adjunto da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (2007-10)

 

No próximo domingo (23) a atual legislação antidrogas do Brasil, lei 11.343/2006, completa 14 anos. De lá para cá viu-se aprofundar o modelo equivocado de política criminal do país. Desde 1940, nossa legislação penal é amparada por deturpada axiologia. É só ler o Código Penal: a honra e integridade física, por exemplo, valem menos que uma cabeça de gado. Explica-se: as penas para a calúnia, difamação e injúria vão de três meses a dois anos de detenção; para lesão corporal, três meses a um ano. Mas basta ocorrer um abigeato (furto de gado), que a pena será de dois a cinco anos de reclusão.

Assim andou a Lei Antidrogas. Ao tipificar o crime de tráfico de entorpecente, a lei trouxe, no artigo 33, 18 condutas. Juntou-se tudo: “Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

Já a posse de substância entorpecente foi despenalizada —não confundir com descriminalizada— pela previsão do artigo 28. Mas a lei deixou ao critério discricionário sua aferição. Ao aplicar ao caso concreto, modula-se a posse pela quantidade, local e circunstâncias sociais e pessoais da pessoa.

Estudo realizado pela Associação Brasileira de Jurimetria, com base nos dados do estado de São Paulo de 2010 a 2017, trouxe algumas conclusões: como a lei não definiu critério objetivo na quantidade para distinguir o uso do tráfico, esta operação é exercida pela autoridade policial no momento da lavratura do boletim de ocorrência.

A tipificação temporária do fato como tráfico varia conforme a região do estado. Na capital a classificação ocorre diante de apreensões de quantidades entre 20 e 40 gramas de substância, a depender da região da cidade. A valoração sobre a quantidade de drogas no geral é suficiente para classificar o suspeito como traficante ou como usuário, considerando a relativa raridade de outros elementos de prova, está sob a discricionariedade policial.

Também na capital é considerado tráfico de drogas o porte de 33 g de cocaína, 17 g de crack e 51,2 g de maconha. Já no restante do estado, considera-se tráfico o porte de 20 g de cocaína, 9 g de crack e 32,1 g de maconha. Critérios objetivos para distinção poderiam ser uma forma de reduzir a discricionariedade e definir fronteiras claras para reformulação da atual política de drogas.

Não obstante, ainda segundo o estudo, a utilização de critérios objetivos poderia gerar dois outros tipos de distorção: criminalizar usuários e ser leniente com traficantes. Apontou, entretanto, ser possível propor valores de corte ideais que balanceiam os dois tipos de injustiça. O Supremo Tribunal Federal está julgando, desde 2011, recurso extraordinário que visa declarar inconstitucional o artigo 28 da referida lei —os três primeiros votos foram nesse sentido, dois deles restritos à posse da maconha.

Mas, enquanto não se decide a questão e não se altera a lei, quais os efeitos? Sob vigência atual, verificou-se o aumento exponencial de presos por crime de “tráfico” e outros delitos ligados às drogas, a maior parte pequenos vendedores nas “biqueiras”, pessoas facilmente substituíveis por outras.

Dados do Infopen, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), mostram que a população carcerária do Brasil, somente entre 2010 e 2014, cresceu 33%, enquanto outros países reduziam o número de presos, como os Estados Unidos (-8%), a China (-9%) e a Rússia (-25%). O Brasil passou de 361 mil presos em 2005 para 755 mil em 2019. Em taxa por 100 mil habitantes, foi de 196, em 2005, para 359 em 2019. São jovens, dos quais 45% com idade entre 18 e 29 anos, 46% são pardos e 51% com ensino fundamental incompleto. Mais de 30% dos presos do Brasil estão sob custódia provisória, em alguns estados mais de 50%.

Da análise dos dados verifica-se um ponto relevante do perfil de população carcerária e seus reflexos. Aqueles que ingressaram no sistema penitenciário em 2008-2009, mais de um terço pela Lei das Drogas, começaram a sair do sistema prisional entre 2013 e 2017. É de se notar que até 2013 o número de roubos no estado de São Paulo era, em média, 240 mil por ano. Em 2014, saltou para 310 mil e assim se manteve nos anos subsequentes.

Criou-se um ciclo perverso: prende-se o pequeno vendedor de drogas que anos depois volta às ruas, já estigmatizado e com poucas oportunidades, como “roubador” e, o pior, muitas vezes para pagar a “cebola” —dinheiro mensal destinado à facção criminosa que domina a maioria do tráfico de drogas em São Paulo.

A população carcerária feminina também aumentou: 116% entre 2006 e 2019; 64% ligadas ao tráfico. Boa parte incorreu em um dos 18 verbos-núcleos típicos do artigo 33 —guardar a droga, e em casa.

O Brasil prende muito e prende mal —mas não é a polícia, que observa a lei nas suas ações, nem o Judiciário, que entrega jurisdição. A lei está errada. Errada ao colocar no mesmo dispositivo (artigo 33) pequenos vendedores, com a mesma pena mínima aplicada a maiores traficantes (cinco anos). Errada ao não estabelecer critérios objetivos para verificar-se a posse de entorpecente. Errada ao vincular a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (Senad) à atividade de Justiça e segurança pública, quando deveria ser uma das competências da área da saúde. Melhor seria que essa lei, na forma como está, não debutasse.


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