domingo, 5 de março de 2017

Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro". Entrevista com Giorgio Agamben

Instituto Humanitas Unisinos - IHU - "Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro". Entrevista com Giorgio 

Agamben


"O capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e
irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção
nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o
trabalho e cujo objeto é o dinheiro", afirma Giorgio Agamben, em entrevista concedida a Peppe Salvà e publicada por Ragusa News, 16-08-2012.


Giorgio Agamben é um dos maiores filósofos vivos. Amigo de Pasolini e de Heidegger, Giorgio Agamben foi definido pelo Times e por Le Monde
como uma das dez mais importantes cabeças pensantes do mundo. Pelo
segundo ano consecutivo ele transcorreu um longo período de férias em Scicli, na Sicília, Itália, onde concedeu a entrevista.


Segundo ele, "a nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo
de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a
ver com o que este termo significava em Atenas".
Assim, "a tarefa que nos espera consiste em pensar integralmente, de
cabo a cabo,  aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de
resto pouco clara em si mesma, “vida política”, afima Agamben.


A tradução é de Selvino  J. Assmann, professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.


Eis a entrevista.


O governo Monti invoca a crise e o estado de necessidade, e
parece ser a única saída tanto da catástrofe  financeira quanto das
formas indecentes que o poder havia assumido na Itáli. A convocação de
Monti era a única saída, ou poderia, pelo contrário, servir de pretexto
para impor uma séria limitação às liberdades democráticas?

“Crise”
e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como
palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem
medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar.
”Crise” hoje em dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio
que seja evidente para todos que a chamada “crise” já dura decênios e
nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso
tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional.


Para entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a idéia de Walter Benjamin,
segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais
feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não
conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja
liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro.  Deus não morreu, ele
se tornou Dinheiro.  O Banco – com os seus cinzentos funcionários e
especialistas - assumiu  o lugar da Igreja e dos seus padres e,
governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente
abdicaram de sua soberania ), manipula e gere a fé – a escassa, incerta
confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o fato de o
capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o titulo
de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o
euro a qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o
que significa “a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas
humanas? Só numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa)
podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas.


A crise econômica que ameaça levar consigo parte dos Estados
europeus pode ser vista como condição de crise de toda a modernidade?



A crise atravessada pela Europa não é apenas um problema econômico,
como se gostaria que fosse vista, mas é antes de mais nada uma crise da
relação com o passado. O conhecimento do passado é o único caminho de
acesso ao presente. É procurando compreender o presente que os seres
humanos – pelo menos nós, europeus – são obrigados a interrogar o
passado.  Eu disse “nós, europeus”, pois me parece que, se admitirmos
que a palavra “Europa” tenha um sentido,  ele, como hoje aparece  como
evidente, não pode ser nem político, nem religioso e menos ainda
econômico,  mas talvez consista nisso, no fato de que  o homem europeu –
à diferença, por exemplo, dos asiáticos e dos americanos, para quem a
história  e o passado tem um significado completamente diferente – pode
ter acesso à sua verdade unicamente através de um confronto com o
passado, unicamente fazendo as contas com a sua história.


O passado não é, pois, apenas um patrimônio de bens e de tradições,
de memórias e de saberes, mas também e sobretudo um componente
antropológico essencial do homem europeu, que só pode ter acesso ao
presente olhando, de cada vez, para o que ele foi.  Daí nasce a relação
especial que os países europeus (a Itália, ou melhor, a Sicília,
sob este ponto de vista é exemplar)  têm com relação às suas cidades,
às suas obras de arte, à sua paisagem: não se trata de conservar bens
mais ou menos preciosos, entretanto exteriores e disponíveis; trata-se,
isso sim,  da própria realidade da Europa, da sua indisponível
sobrevivência. Neste sentido, ao destruírem, com o cimento, com  as
autopistas e a Alta Velocidade, a paisagem italiana, os especuladores
não nos privam apenas de um bem, mas destroem a nossa própria
identidade. A própria expressão “bens culturais” é enganadora, pois
sugere que se trata de bens entre outros bens, que podem ser desfrutados
economicamente e talvez vendidos, como se fosse possível liquidar e por
à venda a própria identidade.


Há muitos anos, um filósofo que também era um alto funcionário da Europa nascente, Alexandre Kojève, afirmava que o homo sapiens
havia chegado  ao fim de sua história e já não tinha nada diante de si a
não ser duas possibilidades: o acesso a uma animalidade pós-histórica
(encarnado pela american way of life) ou o esnobismo (encarnado
pelos japoneses, que continuavam a celebrar as suas cerimônias do chá,
esvaziadas, porém, de qualquer significado histórico). Entre uma América do Norte integralmente re-animalizada e um Japão que só se mantém humano ao preço de renunciar a todo conteúdo histórico, a Europa poderia
oferecer a alternativa de uma cultura que continua sendo humana e
vital, mesmo depois do fim da história, porque é capaz de confrontar-se
com a sua própria história na sua totalidade e capaz de alcançar, a
partir deste confronto, uma nova vida.

A sua obra mais
conhecida, Homo Sacer, pergunta pela relação entre poder político e vida
nua, e evidencia as dificuldades presentes nos dois termos. Qual é o
ponto de mediação possível entre os dois pólos?



Minhas investigações mostraram que o poder soberano se fundamenta,
desde a sua origem, na separação entre vida nua  (a vida biológica, que,
na Grécia, encontrava seu lugar na casa) e vida
politicamente qualificada (que tinha seu lugar na cidade). A vida nua
foi excluída da política e, ao mesmo tempo,  foi incluída e capturada
através da sua exclusão. Neste sentido, a vida nua é o fundamento
negativo do poder.  Tal separação atinge sua forma extrema na
biopolítica moderna, na qual o cuidado e a decisão sobre a vida nua se
tornam aquilo que está em jogo na política.  O que aconteceu nos estados
totalitários do século XX reside no fato de que é o poder (também na
forma  da ciência) que decide, em última análise, sobre o que é uma vida
humana e sobre o que ela não é. Contra isso, se trata de pensar numa
política das formas de vida, a saber, de uma vida que nunca seja
separável da sua forma, que jamais seja vida nua.

O
mal-estar, para usar um eufemismo, com que  o ser humano comum se põe
frente  ao mundo da política tem a ver especificamente com a  condição
italiana ou é de algum modo inevitável? 

Acredito que
atualmente estamos frente a um fenômeno novo que vai além do desencanto e
da desconfiança recíproca entre os cidadãos e o poder e tem a ver com o
planeta inteiro. O que está acontecendo é uma transformação radical das
categorias com que estávamos acostumados a pensar a política. A nova
ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade
que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este
termo significava em Atenas. E que este modelo seja, do
ponto de vista do poder, mais  econômico e funcional é provado pelo
fato de que foi adotado também por aqueles regimes que até poucos anos
atrás eram ditaduras. É mais simples manipular a opinião das pessoas
através da mídia e da televisão do que dever impor em cada oportunidade
as próprias decisões com a violência.  As formas da política por nós
conhecidas – o Estado nacional, a soberania, a participação democrática,
os partidos políticos, o direito internacional – já chegaram ao fim da
sua história. Elas continuam vivas como formas vazias, mas a política
tem hoje a forma de uma “economia”, a saber, de um governo das coisas e
dos seres humanos. A tarefa que nos espera consiste, portanto, em pensar
integralmente, de cabo a cabo,  aquilo que até agora havíamos definido
com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”.

O
estado de exceção, que o senhor vinculou ao conceito de soberania, hoje
em dia parece assumir o caráter de normalidade, mas os cidadãos ficam
perdidos perante a incerteza na qual vivem cotidianamente. É possível
atenuar esta sensação?


Vivemos há decênios num estado de
exceção que se tornou regra, exatamente assim como acontece na
economia  em que a crise se tornou a condição normal. O estado de
exceção – que deveria sempre ser limitado no tempo – é, pelo contrário, o
modelo normal de governo, e isso precisamente nos estados que se dizem
democráticos.  Poucos  sabem que as normas introduzidas, em matéria de
segurança, depois do 11 de setembro (na Itália já se
havia começado a partir dos anos de chumbo) são piores do que aquelas
que vigoravam sob o fascismo. E os crimes contra a humanidade cometidos
durante o nazismo foram possibilitados exatamente pelo fato de Hitler,
logo depois que assumiu o poder, ter proclamado um estado de exceção
que nunca foi revogado. E certamente ele não dispunha das possibilidades
de controle (dados biométricos, videocâmaras, celulares, cartões de
crédito) próprias dos estados contemporâneos. Poder-se-ia afirmar hoje
que o Estado considera todo cidadão um terrorista virtual. Isso não pode
senão piorar e tornar impossível  aquela participação na política que
deveria definir a democracia. Uma cidade cujas praças e cujas estradas
são controladas por videocâmaras não é mais um lugar público: é uma
prisão.

A  grande autoridade que muitos atribuem a
estudiosos que, como o senhor, investigam a natureza do poder político
poderá trazer-nos esperanças de que, dizendo-o de forma banal,  o futuro
será melhor do que o presente?

Otimismo e pessimismo não são categorias úteis para pensar. Como escrevia Marx em carta a Ruge: ”a situação desesperada da época em que vivo me enche de esperança”.

Podemos
fazer-lhe uma pergunta sobre a lectio que o senhor deu em Scicli? Houve
quem lesse a conclusão que se refere a Piero Guccione como se fosse uma
homenagem devida a uma amizade enraizada no tempo, enquanto outros
viram nela uma indicação  de como sair do xequemate no qual a arte
contemporânea está envolvida.

Trata-se de uma homenagem a Piero Guccione e a Scicli,
pequena cidade em que moram alguns dos mais importantes pintores vivos.
A situação da arte hoje em dia é talvez o lugar exemplar para
compreendermos a crise na relação com o passado, de que acabamos de
falar. O único lugar em que o passado pode viver é o presente, e se o
presente não sente mais o próprio passado como vivo, o museu e a arte,
que daquele passado é a figura eminente, se tornam lugares
problemáticos. Em uma sociedade  que já não sabe o que fazer do seu
passado, a arte se encontra premida entre a Cila do museu e a Caribdis da
mercadorização. E muitas vezes, como acontece nos templos do absurdo
que são os museus de arte contemporânea,  as duas coisas coincidem.


Duchamp talvez tenha sido o primeiro a dar-se conta do beco sem saída em que a arte se meteu. O que faz Duchamp quando inventa o ready-made
Ele toma um objeto de uso qualquer, por exemplo, um vaso sanitário, e,
introduzindo-o num museu, o força a apresentar-se como obra de arte. 
Naturalmente - a não ser o breve instante que dura o efeito do
estranhamento e da surpresa – na realidade nada alcança  aqui a
presença: nem a obra, pois se trata de um  objeto de uso qualquer,
produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de
forma alguma uma poiesis, produção – e nem sequer o artista,
porque aquele que assina com um irônico nome falso o vaso sanitário não
age como artista, mas, se muito, como filósofo ou crítico, ou, conforme
gostava de dizer Duchamp, como “alguém que respira”, um simples ser vivo.


Em todo caso, certamente ele não queria produzir uma obra de arte,
mas desobstruir o caminhar da arte, fechada entre o museu e a
mercadorização.  Vocês sabem: o que de fato aconteceu é que um conluio, 
infelizmente ainda ativo, de hábeis especuladores e de “vivos”
transformou o ready-made em obra de arte. E a chamada arte contemporânea nada mais faz do que repetir o gesto de Duchamp,
enchendo com  não-obras e performances a museus, que são meros
organismos do mercado, destinados a acelerar a circulação de
mercadorias, que, assim como o dinheiro, já alcançaram o estado de
liquidez e querem ainda valer como obras. Esta é a contradição da arte
contemporânea: abolir a obra e ao mesmo tempo estipular seu preço.

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