domingo, 12 de março de 2017

Como a indústria do cigarro usou a pós-verdade | GGN

Como a indústria do cigarro usou a pós-verdade | GGN



Como a indústria do cigarro usou a pós-verdade

Mundo vive “era da ignorância”, e não a do conhecimento; antídoto estaria em incentivar curiosidade científica entre pessoas

 
Jornal GGN - A pós-verdade, termo para definir que
os fatos objetivos têm menos importância do que as emoções e crenças
pessoais, tomou proporções assustadoras em todos os âmbitos da
informação, seja em países desenvolvidos ou em desenvolvimento. 
 
O fenômeno ocorre, muito provavelmente, facilitado pelas redes
sociais, dado seu processo acelerado de produção, reprodução e
compartilhamento de ideias. No artigo a seguir, o repórter Tim Harford,
do Finantial Times, traz novas informações sobre o tema, com avaliações
de especialistas que acompanham o avançou da pós-verdade desde as
décadas passadas. 
 
Para Robert Proctor, historiador na Universidade Stanford, por
exemplo, a humanidade globalizada vive hoje a "era da ignorância", um
verdadeiro contrassenso à era da informação iniciada na década de 1980 e
que, teoricamente, ainda estaria em vigor.
 
Mas nem tudo está perdido, apesar de a tarefa para reverter esse
quadro não ser nada fácil, pois estaria em ampliar a curiosidade das
pessoas sobre o conhecimento científico. Estudos apontaram que,
indivíduos cientificamente curiosos se dispõem mais a assistir
documentários científicos do que propagandas focadas sobre
celebridades. 
 
"Como se poderia prever, existe uma correlação entre conhecimentos
científicos e curiosidade científica, mas as duas medidas são distintas,
(...) embora o raciocínio politicamente motivado pese mais que o
conhecimento científico, ele 'parece ser negado pela curiosidade
científica'"
 
 
 
 
Pouco antes do Natal de 1953, os líderes das maiores empresas
americanas de cigarros se reuniram com John Hill, fundador e
executivo-chefe de uma das maiores firmas americanas de relações
públicas, a Hill & Knowlton. Apesar do ambiente luxuoso –o Plaza
Hotel, dando para o Central Park, em Nova York–, o clima era de crise.
 
Cientistas estavam publicando evidências sólidas de um vínculo
entre o tabagismo e o câncer. Do ponto de vista das empresas de
cigarros, o mais preocupante era que "The Reader's Digest", a publicação
mais lida do mundo, já tinha divulgado essa evidência em um artigo
publicado em 1952, "Cancer by the Carton" (O câncer em maços).
Escrevendo em 1954, o jornalista Alistair Cooke previu que a publicação
do próximo grande estudo científico sobre tabagismo e câncer poderia
acabar com a indústria de cigarros.
 
Isso não aconteceu. O guru de relações públicas John Hill
apresentou um plano –que, visto em retrospectiva, foi tremendamente
eficaz. Apesar de seu produto ser viciante e letal, a indústria do
cigarro conseguiu evitar a regulamentação, litígios na Justiça e a ideia
que muitos fumantes tinham havia décadas que seus produtos eram
mortíferos.
 
A grande indústria do tabaco foi tão hábil em adiar o dia da
prestação de contas que a tática que ela adotou vem sendo imitada desde
então. Além disso, inspirou um setor crescente do mundo acadêmico que
estuda como esse truque foi realizado.
 
Em 1995, Robert Proctor, historiador na Universidade Stanford que
estudou a fundo o caso da indústria de cigarros, cunhou o termo
"agnotologia". Trata-se do estudo da produção intencional de ignorância,
e o campo todo começou com as observações feitas por Proctor da
indústria de cigarros.
 
Os fatos relativos ao tabagismo –fatos indiscutíveis, fornecidos
por fontes de valor inquestionável– não foram os vencedores do embate.
Os fatos incontestáveis foram contestados. As fontes inquestionáveis
foram questionadas. O que se descobriu é que os fatos são importantes,
mas não garantem a vitória nesse tipo de discussão.
 
A agnotologia nunca foi tão pertinente quanto agora. "Vivemos em
uma era de ouro da ignorância", diz Proctor hoje. "Trump e o 'brexit'
fazem parte disso."
 
No plebiscito britânico para decidir se o Reino Unido sairia da
União Europeia, o lado favorável à saída apresentou o argumento falso de
que o Reino Unido enviava £ 350 milhões (R$ 1,35 milhões) por semana à
UE.
 
Seria difícil imaginar um exemplo anterior na política ocidental
moderna de uma campanha que apresentou como argumento uma mentira tão
deslavada, reafirmando-a quando foi refutada por especialistas
independentes e acabando por triunfar.
 
Mas essa proeza seria superada pouco depois por Donald Trump, que
alardeou ondas sucessivas de mentiras demonstráveis, mas foi
recompensado com a Presidência. Os Dicionários Oxford declararam a
"pós-verdade" a palavra do ano de 2016. Os fatos simplesmente pareciam
não ter mais importância.
 
A reação instintiva daqueles entre nós (jornalistas, acadêmicos e
muitos cidadãos comuns) que ainda nos importamos com a verdade vem sendo
de checar e rechecar os fatos. Organizações de "fact-checking", ou
verificação de dados, como a Full Fact, no Reino Unido, e a PolitiFact,
nos EUA, avaliam declarações de políticos e jornalistas que chamam a
atenção pública.
 
Preciso confessar aqui que tenho um viés pessoal favorável a elas:
eu mesmo já fui verificador de fatos do programa de rádio "More or
Less", da BBC, e frequentemente faço uso de sites de fact-checking. Em
lugar de apresentar as versões das duas partes em uma história, como
faria um jornalista tradicional, esses sites avaliam o que é verdadeiro.
 
O trabalho de verificação de dados pública e transparente tornou-se
um elemento tão importante do jornalismo político de hoje que é fácil
esquecer que essa atividade existe há apenas uma década.
 
Também os jornalistas da grande imprensa estão começando a abraçar a
ideia de que mentiras ou equívocos devem ser identificados com
destaque.
 
Considere o caso de uma reportagem no site da NPR (Rádio Pública
Nacional) sobre o discurso que Donald Trump fez para a CIA em janeiro:
"Ele negou falsamente que já tivesse criticado a agência, inflou
falsamente as dimensões da multidão que acompanhara sua posse, na
sexta-feira anterior".
 
Tem sido uma quebra estimulante com as normas do jornalismo
americano, mas a verdade é que o presidente Trump vem sendo uma quebra
estimulante com as normas da política americana.
 
Também o Facebook contratou verificadores de dados, anunciando
medidas contra as reportagens de "notícias falsas" que ganharam destaque
tão grande em sua rede após a eleição. Hoje o Facebook permite que seus
usuários denunciem falsas notícias.
 
O site envia manchetes dúbias a verificadores independentes de
fatos, identifica notícias desacreditadas com tags de "contestado" e
possivelmente reduz sua classificação no algoritmo que decide o que cada
usuário vê quando entra no site.
 
Precisamos de algum consenso em relação aos fatos, senão a situação
fica inviável. No entanto, será que esse destaque repentino aos fatos
vai realmente levar a um eleitorado mais bem informado, a decisões
melhores, a um respeito renovado pela verdade?
 
A história da indústria do cigarro sugere que não. O vínculo entre
cigarros e câncer foi confirmado pelos maiores cientistas médicos do
mundo e, em 1964, pelo próprio porta-voz principal dos Estados Unidos em
questões de saúde pública. O tema foi coberto por jornalistas
experientes, engajados com os valores da objetividade. Mesmo assim, os
lobistas do tabaco deram um baile neles.
 
Nas décadas de 1950 e 1960, os jornalistas tinham uma desculpa para
explicar seus tropeços: as táticas adotadas pela indústria de cigarros
eram astutas, complexas e novas. Inicialmente a indústria pareceu estar
reagindo bem, prometendo realizar pesquisas de alta qualidade sobre o
tema.
 
Garantias foram apresentadas ao público de que as melhores cabeças
estavam estudando a questão. A segunda etapa consistiu em complicar a
questão e semear dúvidas: o câncer de pulmão podia ter um sem-número de
causas, afinal.
 
E o problema real era o câncer de pulmão, e não o cigarro, certo?
Na terceira etapa, pesquisas e pareceres sérios foram postos em dúvida.
Resultados de autópsias eram descritos como casos isolados, estudos
epidemiológicos como sendo dados meramente estatísticos, estudos com
animais eram descritos como irrelevantes.
 
Por último veio a normalização: os fabricantes de cigarros
indicavam que a questão do vínculo entre tabaco e câncer era notícia
ultrapassada. Os jornalistas não podiam por acaso encontrar um tema novo
e interessante para tratar?
 
Essas táticas hoje estão fartamente documentadas. Pesquisadores
estudaram a fundo as tendências psicológicas que elas exploram. Assim,
deveríamos poder identificar seu ressurgimento no campo de batalha
político.
 
"É como se a equipe do presidente estivesse seguindo o manual de
instruções da indústria do cigarro", diz Jon Christensen, jornalista e
hoje professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que em 2008
escreveu um estudo notável sobre o modo em que a indústria do cigarro
manipulou a tradição jornalística.
 
Um memorando interno infame da empresa de cigarros Brown &
Williamson, redigido no verão de 1969, apresenta o pensamento do setor
muito claramente: "A dúvida é nosso produto". Por que? Porque semear a
dúvida "é a melhor maneira de competir com o 'conjunto de fatos'
existente na cabeça do grande público. É também o jeito de se criar uma
controvérsia." O mantra do "Big Tobacco" (a indústria de cigarros):
alimentar a controvérsia.
 
Normalmente não é difícil gerar dúvidas, e elas não são desfeitas
apenas com fatos. Já deveríamos ter aprendido essa lição. Hoje estamos
sendo obrigados a reaprendê-la.
 
Por mais que seja tentador combater as mentiras com fatos, essa
estratégia encerra três problemas. O primeiro é que uma mentira simples é
capaz de derrotar um conjunto complexo de fatos, simplesmente por ser
mais fácil de entender e recordar.
 
Na dúvida, as pessoas muitas vezes tendem a acreditar naquilo que
se fixa em sua cabeça. Em 1994 os psicólogos Hollyn Johnson e Colleen
Seifert realizaram um experimento em que pessoas liam um relato de um
incêndio em um depósito. O relato mencionava latas de gasolina e de
tinta, mas explicava mais adiante que na verdade não houvera gasolina ou
tinta presentes no local.
 
Os sujeitos do experimento, interrogados sobre o que se recordavam
do relato, se lembraram da tinta que na realidade não estivera lá. Mas,
solicitados a explicar fatos sobre o incêndio ("por que houve tanta
fumaça?"), elas mencionavam a tinta.
 
Na ausência de uma explicação alternativa, voltavam àquela que já
tinham admitido ser errada. Depois de ouvirmos uma alegação falsa, não
há mais como "deixar de ouvi-la".
 
Isso deve nos alertar: é desaconselhável deixar que um processo de
mentiras e desmentidos tome conta do ciclo noticioso. Vários estudos já
mostraram que reiterar uma afirmação falsa, mesmo que seja para
desmenti-la, pode fazê-la "colar".
 
O desmentido do mito parece funcionar, mas então nossas memórias se
desvanecem e só nos lembramos do mito. Afinal, foi o mito que foi
repetido várias vezes. No esforço para desmentir uma falsidade,
desmentidos intermináveis apenas fortalecem o feitiço da mentira.
 
Com isso em mente, pensemos na alegação infame da campanha pelo
"brexit": "Mandamos £ 350 milhões por semana à UE". Simples. Memorável.
Falso. Mas como rebatê-lo?
 
Um esforço típico nesse sentido do jornal britânico "the Guardian"
teve o título "Por que é falsa a alegação dos £ 350 milhões semanais
para a UE feita pelo lado do Voto pela Saída", repetindo a alegação
falsa para então dedicar centenas de palavras a detalhes cansativos e à
definição exata do termo "enviar".
 
Esse tipo de artigo de verificação de fatos tem valor enorme para
outros jornalistas que precisam que os pontos principais sejam
detalhados e relacionados. Mas, para o eleitor comum, a mensagem que
provavelmente ficou é: "Não dá para confiar nos políticos, mas parece
que mandamos muito dinheiro à UE". A dúvida foi ótima para a campanha
pelo "brexit".
 
Essa é uma vulnerabilidade inata do setor de verificação de dados.
Os profissionais da checagem de fatos têm razão em ser meticulosos, em
cobrir todos os detalhes e mostrar como foi seu raciocínio. Mas é por
isso que a checagem de fatos só pode ser uma parte do esforço para fazer
com que a verdade seja ouvida.
 
Andrew Lilico, um defensor da saída britânica da UE, me disse
durante a campanha que queria que os ônibus britânicos tivessem exibido
uma cifra mais defensável, como £ 240 milhões (R$ 930 milhões).
 
Mas ele reconhece que o valor falso apresentado foi mais eficaz.
"Em termos cínicos de campanha, o uso da cifra de £ 350 milhões foi
perfeito. Criou uma armadilha que atraiu a campanha pela permanência na
UE a repeti-la inúmeras vezes."
 
De fato. Mas não apenas essa campanha –também os jornalistas que
investigam a veracidade de fatos, entre os quais eu me incluo. A
declaração falsa foi muito mais poderosa do que uma declaração
verdadeira teria sido, não por envolver uma quantia mais alta, mas
porque todo o mundo ficou falando sobre ela sem parar.
 
Proctor, o historiador da indústria do cigarro e agnotologista,
avisa que um efeito semelhante está acontecendo nos Estados Unidos: "Há o
risco de os verificadores de fatos virarem empregadinhos de Trump,
correndo de um lado a outro para verificar as declarações de outros."
 
Há uma segunda razão por que os fatos parecem não merecer o
respeito que esperaríamos. Os fatos podem ser entediantes. O mundo está
cheio de coisas às quais prestar atenção, desde a TV-realidade até
nossos filhos, do Instagram de um amigo a uma conta de impostos a pagar.
Para que gastar tempo com alto tão maçante quanto fatos?
 
No ano passado, os pesquisadores Seth Flaxman, Sharad Goel e Justin
Rao publicaram um estudo sobre como as pessoas leem notícias online.
Aparentemente, o estudo foi uma investigação sobre a polarização das
fontes de notícias.
 
Os pesquisadores começaram analisando dados de 1,2 milhão de
internautas, mas acabaram estudando apenas 50 mil. Por que? Porque
apenas 4% da amostra estudada liam notícias sérias em volume suficiente
para merecer serem incluídos em um estudo dessa natureza (o critério
aplicado era terem lido dez artigos e dois textos de opinião ao longo de
três meses).
 
Muitos comentaristas temem que estejamos nos segregando em bolhas
ideológicas, expostos apenas às visões de outros que pensam como nós.
Essa preocupação tem certa base. Mas para 96% daqueles internautas, a
bolha que vinha ao caso não era liberal ou conservadora, era "as
notícias que se danem".
 
Na guerra das ideias, o tédio e a distração constituem armas
poderosas. Um estudo recente de propaganda política chinesa avaliou as
táticas usadas por redatores pagos pró-governo (conhecidos como "o
exército dos 50 cents", devido ao valor que os colaboradores
supostamente recebem por cada post escrito) que difundem comentários nas
mídias sociais.
 
Os pesquisadores (Gary King, Jennifer Pan e Margaret Roberts)
concluem: "Quase nenhum dos posts de 50 cents do governo chinês encerra
qualquer tipo de debate ou discussão. Eles parecem evitar assuntos
polêmicos por completo. O objetivo estratégico do regime é distrair e
redirecionar a atenção do público."
 
Astro da TV realidade, Trump conhecem bem o valor de uma distração
divertida: basta começar uma briga com Megyn Kelly, com o "New York
Times" ou até com Arnold Schwarzenegger. Por acaso isso não chama a
atenção das pessoas mais que uma discussão sobre a reforma da saúde?
 
A indústria do cigarro também entendeu esse ponto, embora tivesse
adotado uma abordagem mais intelectual à geração de distrações. "Você
sabem quem é Stanley Prusiner?", pergunta Proctor.
 
Prusiner é neurologista. Em 1972 ele era um pesquisador jovem que
acabara de entrar em contato com um paciente com a doença de
Creutzfeldt-Jakob. Era uma doença degenerativa pavorosa que na época se
pensava ser causada por um vírus de ação lenta.
 
Após muitos anos de estudo, Prusiner concluiu que a doença era
causada, em vez disso, por uma espécie de proteína de ação irregular. A
maioria dos especialistas achou a ideia absurda, e a carreira de
Prusiner começou a afundar. Promoções e dotações para pesquisa foram
minguando.
 
Mas Prusiner recebeu financiamento do setor privado que lhe
possibilitou levar seu estudo adiante. Ele acabou sendo justificado de
modo espetacular, recebendo o Nobel de Medicina em 1997.
 
Em seu ensaio autobiográfico no site do Prêmio Nobel, Prusiner
agradeceu seus benfeitores do setor privado pelo apoio crucial dado:
eram a empresa RJ Reynolds, fabricante dos cigarros Camel.
 
A indústria do cigarro era uma fonte generosa de verbas para
pesquisas, e Prusiner não foi o único cientista a receber dinheiro da
indústria e também um prêmio Nobel. Proctor calcula que esse tenha sido o
caso de pelo menos outros dez laureados com o Nobel.
 
Que fique claro: não se tratou de uma tentativa de suborno. Para
Proctor, foi algo muito mais sutil. "A indústria do cigarro foi a maior
fonte de financiamento de pesquisas de genética, vírus, imunologia e
poluição aérea", diz Proctor. Ou seja, quase tudo menos o tabaco. "Foi
um projeto maciço de 'pesquisas para desviar a atenção'."
 
Esse financiamento científico ajudou a posicionar a Big Tobacco
como uma indústria voltada ao bem público, mas Proctor acha que a
finalidade principal da Big Tobacco foi produzir dados científicos
especulativos novos e interessantes.
 
A doença de Creutzfeldt-Jakob pode ser rara, mas era notícia
instigante. Doenças ligadas ao cigarro, como câncer de pulmão e doenças
cardíacas, nem sequer são notícias.
 
O objetivo final dessas distrações é que questões de importância
vital tornem-se tão desinteressantes que ninguém se dê ao trabalho de
escrever sobre elas. Proctor descreve isso como o oposto do terrorismo: o
trivialismo.
 
O terrorismo provoca uma reação enorme na mídia; o tabagismo, não.
No entanto, segundo os Centros de Controle de Doenças dos EUA, o
tabagismo mata 480 mil americanos por ano –mais de 50 mortes por hora.
Raramente os terroristas foram capazes de matar tantos americanos em um
ano inteiro. Mesmo assim, os terroristas conseguem dominar as manchetes,
enquanto os trivialistas as evitam.
 
Hoje os observadores experientes da indústria do cigarro receiam
que Trump exerça o mesmo efeito. No final, a maioria das pessoas
começará a simplesmente se entediar com todo seu circo? Jon Christensen,
da Universidade da Califórnia em Los Angeles, diz: "Acho essa a
perspectiva mais assustadora".
 
Por outro lado, para ele, existe um elemento positivo em tudo isso:
é quase impossível que o presidente dos Estados Unidos deixe de ser
notícia. O lobby do tabaco e o governo chinês se mostraram muito hábeis
em desviar as atenções para longe deles. Há razões para crer que isso
será difícil para Trump.
 
PERSUASÃO
 
Existe uma última dificuldade em se tentar persuadir as pessoas,
dando-lhes fatos verídicos: a verdade pode parecer ameaçadora, e ameaçar
as pessoas tende a ter efeito inverso ao desejado. "As pessoas reagem
no sentido contrário", diz Jason Reifler, cientista político da
Universidade de Exeter.
 
Esse "efeito inverso" está sendo estudado por vários pesquisadores, incluindo Reifler e seu colega Brendan Nyhan, de Dartmouth.
 
Em um estudo de 2011, Nyhan, Reifler e outros fizeram um ensaio
randomizado em que informações científicas eram ou não eram mostradas
aos pais de crianças pequenas, desmentindo um vínculo imaginário mas
muito temido entre vacinas e autismo.
 
À primeira vista, os fatos eram persuasivos: os pais que tinham
acesso aos dados científicos que desmentiam o mito tiveram menos
tendência a pensar que vacinas causem autismo. Mas, mesmo depois de ser
expostos aos fatos e apesar de terem aparentemente acreditado neles, os
pais que já eram céticos em relação a vacinas mostraram tendência menor a
dizer que vacinariam seus filhos.
 
O que está acontecendo? "As pessoas aceitam as informações
corretoras, mas então as resistem de outras maneiras", diz Reifler. Uma
pessoa que teme a vacinação vai resistir subconscientemente,
lembrando-se de todas as outras razões por que lhe parece que vacinas
são uma má ideia. O medo do autismo pode ir embora, mas os outros medos
ficam mais fortes que antes.
 
É fácil ver como isso pode acontecer em uma campanha política.
Digamos que você teme que o Reino Unido seja invadido por imigrantes
turcos, porque um membro da campanha pelo "brexit" lhe disse que a
Turquia vai ingressar na UE em breve (mentira). Um verificador de fatos
pode explicar que é improvável que a Turquia ingresse na UE no futuro
previsível.
 
A pesquisa de Reifler também sugere que você aceite a ideia de que a
Turquia não está prestes a entrar na UE. Mas você vai se lembrar de
muitos outros medos: imigração, perda de controle, a proximidade da
Turquia à guerra da Síria e ao Estado Islâmico, o terrorismo, etc. A
mentira original foi desmentida, mas sua mentira sedutora continua
presente.
 
O problema aqui é que, embora nós nos enxerguemos como seres
racionais, nossa racionalidade não evoluiu apenas para solucionar
problemas práticos, como construir uma armadilha para elefantes, mas
para nos ajudar a nos orientarmos em situações sociais. Precisamos
manter as outras pessoas do nosso lado.
 
O raciocínio prático em muitos casos não diz respeito tanto a
determinar o que é verídico, mas mais a nos conservarmos na tribo certa.
 
Um sinal de como nossa lógica pode ser tribal foi visto em um
estudo de 1954 conduzido pelo psicólogo Albert Hastorf, de Dartmouth, e
sua colega Hadley Cantril, de Princeton. Os dois examinaram imagens de
uma partida de futebol americano entre dois times universitários.
 
Foi uma partida violenta, em que um jogador quebrou a perna.
Hastorf e Cantril pediram que os estudantes contassem as faltas e
avaliassem sua gravidade. Os estudantes de Dartmouth tenderam a
minimizar as faltas de Dartmouth, mas relataram todos os erros dos
jogadores de Princeton. Os estudantes de Princeton tiveram o
comportamento oposto.
 
A conclusão foi que, apesar de terem assistido às mesmas imagens,
os alunos de Dartmouth e Princeton não assistiram aos mesmos fatos. Cada
aluno tinha sua percepção própria, moldada por suas próprias lealdades
tribais. Os psicólogos intitularem seu estudo "They Saw a Game" (Eles
assistiram a uma partida).
 
Um estudo mais recente voltou a essa ideia, agora no contexto de
tribos políticas. Os pesquisadores mostraram imagens de um protesto a
estudantes e contaram uma história falsa sobre o que motivou o protesto.
 
A alguns estudantes foi dito que foi uma manifestação de defensores
dos direitos dos gays, promovida diante de um centro de recrutamento do
exército para protestar contra a política de "não pergunte, não revele"
então adotada pelas Forças Armadas. A outros foi dito que era uma
manifestação contra o aborto promovida diante de uma clínica de abortos.
 
Apesar de olharem para as mesmas imagens, os sujeitos do ensaio
tiveram visões muito diferentes do que estava acontecendo nas imagens
–visões moldadas por suas lealdades políticas. Os estudantes liberais
foram tolerantes em relação ao comportamento de pessoas que acharam ser
defensores dos direitos dos gays, mas acharam preocupante o que fizeram
os manifestantes contra o aborto.
 
Os estudantes conservadores tiveram a visão oposta. Como no caso de
"They Saw a Game", a discordância não foi sobre os princípios gerais,
mas sobre pontos específicos: os manifestantes gritaram com pessoas do
público? Eles bloquearam o acesso ao prédio? Vemos o que queremos ver –e
rejeitamos os fatos que ameaçam nossa visão de quem somos.
 
Quando chegamos à conclusão à qual queremos chegar, estamos
praticando o "raciocínio motivado". O raciocínio motivado foi um aliado
poderoso da indústria do cigarro. Se você é dependente de um produto e
muitos cientistas lhe dizem que esse produto é letal, mas o lobby do
tabaco lhe diz que são necessários mais estudos, em quem você prefere
acreditar?
 
O estudo de Jon Christensen sobre a campanha de relações públicas
dos fabricantes de cigarros revelou que a indústria muitas vezes foi
retratada positivamente na imprensa porque muitos jornalistas eram
fumantes. Esses jornalistas queriam a todo custo acreditar que seu vício
era benigno, e esse fato os converteu em transmissores ideais da
mensagem da indústria do cigarro.
 
Mesmo em um debate poluído pelo raciocínio motivado, poderíamos
esperar que os fatos ajudassem. Mas não é necessariamente assim: quando
ouvimos fatos que nos contestam, amplificamos seletivamente aquilo que
nos convém, ignoramos o que não nos convém e reinterpretamos o que é
possível.
 
Mais fatos representam mais combustível no motor do raciocínio
motivado. O dramaturgo francês Molière escreveu: "O bobo erudito é mais
tolo que o ignorante". A ciência social moderna concorda com ele.
 
Numa questão politicamente carregada, como as mudanças climáticas, a
impressão que temos é que fornecer informações científicas precisas
deveria promover um consenso. Mas o que acontece é o oposto, diz Dan
Kahan, professor de direito e psicologia em Yale e um dos autores do
estudo sobre as percepções de um protesto político.
 
Ele escreve: "Os grupos com valores opostos frequentemente se
polarizam ainda mais, e não menos, quando são expostos a informações
cientificamente validadas".
 
Quando as pessoas procuram a verdade, os fatos ajudam. Mas quando
elas raciocinam seletivamente sobre sua identidade política, os fatos
podem ter o efeito inverso ao procurado.
 
PÓS-VERDADES
 
Tudo isso forma um quadro deprimente para aqueles de nós que não
queremos habitar um mundo de pós-verdades. Parece que os fatos não têm
força. O esforço de rebater uma mentira deslavada com um conjunto de
fatos complexos frequentemente acaba reforçando a mentira.
 
As verdades importantes muitas vezes são desinteressantes e chatas,
e é fácil inventar alegações novas e que chamam a atenção das pessoas. E
oferecer mais fatos às pessoas pode ter o efeito inverso ao desejado,
com esses fatos gerando uma reação defensiva em pessoas que querem muito
conservar sua visão de mundo atual.
 
"É uma realidade tenebrosa", diz Reifler. "Vivemos em tempos tenebrosos e assustadores."
 
Existe alguma solução? É possível que sim.
 
Sabemos que o domínio de conhecimentos científicos pode na
realidade ampliar a divergência entre tribos políticos diferentes sobre
questões como a mudança climática –ou seja, que liberais bem informados e
conservadores bem informados divergem mais em suas opiniões do que
liberais e conservadores com pouco conhecimento da verdade científica.
 
Mas um novo estudo de Dan Kahan, Asheley Landrum, Katie Carpenter,
Laura Helft e Kathleen Hall Jamieson explora o papel não do domínio de
conhecimentos científicos, mas da curiosidade científica.
 
Para medir a curiosidade científica, os pesquisadores fizeram aos
participantes do estudo perguntas diversas sobre seus hobbies e
interesses. Foi apresentada aos participantes uma seleção de sites para
que lessem e fizessem uma prova de compreensão.
 
Alguns optaram pela ESPN, outros pelo Yahoo Finance, mas os que
optaram pelo Science demonstravam curiosidade científica. As pessoas
cientificamente curiosas também se dispunham a assistir a documentários
científicos mais que a programas de fofocas sobre celebridades.
 
Como se poderia prever, existe uma correlação entre conhecimentos
científicos e curiosidade científica, mas as duas medidas são distintas.
 
O que Kahan e seus colegas constataram, para sua surpresa, foi que
embora o raciocíno politicamente motivado pese mais que o conhecimento
científico, ele "parece ser negado pela curiosidade científica".
 
Lembre-se que as pessoas com conhecimentos científicos tinham mais
tendência a ser polarizadas em suas respostas a perguntas científicas
politicamente carregadas. Mas isso não acontecia com as pessoas
cientificamente curiosas. A curiosidade aproximava as pessoas de uma
maneira que os meros fatos não faziam.
 
Os pesquisadores teorizam que as pessoas curiosas têm uma razão
adicional para buscar os fatos: "Para sentir o prazer de contemplar
insights surpreendentes sobre como funciona o mundo".
 
Então como podemos incentivar a curiosidade? É difícil fazer a
reforma dos bancos ou a reversibilidade do Artigo 50 parecer mais
interessantes que futebol, "Game of Thrones" ou programas de culinária.
Mas parece ser isso o que é necessário. "Precisamos incluir as pessoas
na história, em narrativas humanas de ciências, mostrar às pessoas como a
ciência funciona", diz Christensen.
 
Nós, jornalistas e analistas políticos, não podemos forçar ninguém a
prestar atenção aos fatos. Precisamos encontrar um jeito de levar as
pessoas a querer procurar os fatos. A curiosidade é a semente da qual
podem brotar decisões democráticas sensatas.
 
Parece que ela é uma das únicas curas para o raciocínio
politicamente motivado, mas também é a cura de uma sociedade em que a
maioria das pessoas não presta atenção aos jornais impressos ou de TV
porque acha as notícias entediantes ou confusas.
 
O que precisamos hoje é de um Carl Sagan ou David Attenborough da
ciência social –alguém que seja capaz de suscitar um senso de
maravilhamento ou fascínio, não apenas com a estrutura do sistema solar
ou a vida dos animais em uma floresta tropical, mas diante do
funcionamento de nossa civilização: saúde, migração, finanças, educação,
diplomacia.
 
Nosso candidato para isso teria sido o médico e estatístico sueco
Hans Rosling, morto em fevereiro. Ele atingiu um público surpreendente
com algo que, essencialmente, eram simples apresentações de dados
oficiais de organismos como o Banco Mundial.
 
Ele descreveu o que fazia como transmitir os fatos às pessoas:
"descrever o mundo". Mas os fatos precisam de defensores. Eles raramente
se defendem sozinhos: precisam de alguém que nos faça nos importar com
eles, que desperte nossa curiosidade em relação a eles. Foi isso o que
Rosling fez.
 
E, diante da possibilidade apocalíptica de um mundo em que os fatos
não interessam às pessoas, esse é um exemplo que precisamos seguir.
 
Tradução de CLARA ALLAIN

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