domingo, 12 de julho de 2015

A pauta negativa sobre o Brasil que não cabe nos manuais - Sul 21

A pauta negativa sobre o Brasil que não cabe nos manuais - Sul 21



A pauta negativa sobre o Brasil que não cabe nos manuais






A Suíça, terra dos paraísos fiscais e da Fifa de Joseph Blatter, ocupa um nobre quinto lugar na lista anticorrupção da ONG Transparency Internacional. A receita é simples: basta não investigar. (Foto: BBC)
A
Suíça, terra dos paraísos fiscais e da Fifa de Joseph Blatter, ocupa um
nobre quinto lugar na lista anticorrupção da ONG Transparency
Internacional. A receita é simples: basta não investigar. (Foto: BBC)
Flávio Aguiar, de BerlimRede Brasil Atual
Há exatos dois anos, em julho de 2013, uma solenidade
em Brasília celebrava os dez anos do Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social – fórum consultivo da sociedade instituído pelo
governo Lula para ouvir sugestões de empresários, sindicalistas,
movimentos sociais, intelectuais e outros atores com algo a dizer sobre
os rumos do país. Na ocasião, o diplomata brasileiro Roberto Azevêdo,
então recém-eleito diretor-presidente da Organização Mundial do Comércio
(OMC), protagonizou um dos pontos altos da reunião. Azevêdo expôs com
clareza que os dias de lua de mel entre o Brasil e a mídia internacional
tinham acabado. Dali para diante, seria ladeira acima.
Não deu outra. Até aquele momento, o Brasil estava na
pauta positiva. Lugar atraente para investimentos, a maior e a melhor
democracia entre os Brics – senão a única (com o passivo do apartheid
ainda pesando sobre a África do Sul), nosso país parecia ser ainda e
sempre aquele de e do futuro. Desde então, o bolo brasileiro desandou.
Naquele momento, havia um sutil componente político.
Na mesma medida em que o então G-8 perdia importância para o G-20, o
Brasil se fizera líder das nações emergentes. Auxiliaram nessa ascensão
muitos fatores, entre eles o de ser de fato uma democracia, de não ter
guerras com ninguém, de não ser um país militarista nem militarizado e
de ser um país sem poderio nuclear. O Brasil era uma opção não contra,
mas dentro da hegemonia mundial do capitalismo triunfante. Mas era uma
opção diante do predomínio dos Estados Unidos e dos países líderes da
União Europeia (Alemanha, França, Reino Unido), secundados pela Itália,
Canadá e Japão, que formavam o bloco ocidental dentro do G-8.
Ocorre que esse grupo seleto tinha outro candidato
para a OMC, um diplomata mexicano, aquele país que já foi líder da
diplomacia independente na América Latina e hoje se vê na condição de
ser um irmão menor, ou primo pobre, da América do Norte. E ele perdeu
para o brasileiro Ricardo Azevêdo. Os países hegemônicos, mais a
imprensa que os representa, da Wall Street à City londrina, de
Washington a Frankfurt, ou aquela que não os representa, mas os têm como
referência, não ficaram nada felizes.
A essa altura, já havia uma sutil mas significativa
campanha que se iniciava contra o ministro Guido Mantega e seu
“intervencionismo estatal” na economia. Mas muitas vozes viam tal
iniciativa como uma mera ressonância da campanha da direita brasileira,
na e da nossa mídia e fora dela. Não a viam como uma iniciativa da
própria mídia internacional.
Com o andar da carruagem, isso, que era um ribeiro,
tornou-se um caudal, uma torrente vertiginosa. O canal maior dessa
verdadeira campanha antiBrasil se abriu com a realização da Copa do
Mundo de 2014. Choviam matérias negativas, de todo o tipo, no jornalismo
de direita, centro e meia-esquerda em todos os quadrantes do Ocidente. E
a chuva caía na TV, na internet, na mídia impressa e no rádio. O tom
exaltado era o de que “agora vamos mostrar o verdadeiro Brasil”. E esse
“verdadeiro” era um país de eternos favelados, narcotraficantes,
governantes inescrupulosos, corruptos, prostituição, pobreza escabrosa,
quadrilheiros, sequestros, onde o profissional de jornalismo tinha de
andar de colete à prova de balas, enfim um caos.
Veio a Copa, e a única coisa que não funcionou a
contento foi o nosso time. O resto só merecia elogios. Mas a
contragosto. E as pautas negativas continuaram, depois alimentadas sobre
as denúncias de corrupção na Petrobras, no governo, sempre bordejando a
insinuação de que isso é algo “inerente” ao Brasil. Campanhas da
direita – da bancada da bala, da redução da maioridade penal, a
homofobia que busca se institucionalizar – se diluem nisso de que “o
Brasil é assim”. As manifestações antidemocráticas, os pedidos para que a
ditadura volte, se diluem numa expressão de um “descontentamento”
difuso diante do “caos” ou do “impasse” na economia, na administração
pública, coisas cuja raiz jaz na inapetência ou na incompetência
brasileira. Ou seja, o Brasil é o Brasil inadimplente porque é o
eternamente “atrasado”.
As matérias sobre o “drama Petrobras” se sucedem –
insinuando sempre que o Brasil não deveria, por exemplo, explorar o
pré-sal, por incompetência, porque trará danos ao meio ambiente, será
caro etc. Os únicos personagens brasileiros que merecem alguma­ intenção
positiva são aqueles que resistem ao desenvolvimento econômico, em nome
da preservação de um Brasil que, diga-se de passagem, nem sequer existe
mais.
Para essa mídia internacional e aquilo que ela
representa, a lista de pecados do Brasil só aumentou. Além de a
Petrobras ter-se tornado uma das maiores companhias do mundo, o Brasil
agora planeja com os Brics a organização de um mundo financeiro
alternativo e com bancos independentes. Aliás, os Brics por inteiro só
têm direito, em conjunto, a uma pauta negativa. China e Rússia não são
democracias, a África do Sul é uma democracia capenga nas mãos dos
descendentes do apartheid (de um lado e do outro dele) e o Brasil, bem o Brasil, noves fora, é geneticamente inepto para o mundo moderno.
Na relação com a mídia tradicional brasileira, fica a
dúvida sobre o que nasce primeiro, se o ovo ou a galinha. Uma ressoa a
outra, ainda que a nossa seja mais provinciana e acanhada. Ao se ler
reportagem sobre o Brasil, o mais que se pode esperar é que apareçam
referências ao grupo Globo, Folha de S. Paulo, Estado, aqui e ali Veja. CartaCapital
não existe, bem como a mídia alternativa (isso eu até entendo, não há
nada parecido com a nossa mídia alternativa na Europa, nem mesmo o
equivalente a um site como Democracy Now, dos Estados Unidos).
Penso que ideologia neoliberal antiBrasil de hoje tem por alimento principal a pauta dos arautos da City londrina, The Economist e Financial Times, mas ela também ecoa aparentemente pela esquerda no The Guardian e, em tom menor ou pelo menos não tão frequente, no New York Times. Frequenta o Wall Street Journal, de modo mais sóbrio. É frequente no El País. Mas isso não explica tudo.
Há um fator psicológico importante, que abarca a
relação editor-jornalista-leitor (esta última palavra num sentido bem
amplo, que abrange toda a mídia). O Brasil mudou de lugar no mundo. Na
Projeção de Mercator, que informa os mapas-múndi globais, o ponto de
vista é determinado a partir do trópico de Câncer, o que transforma o
Brasil num anão de pernas curtas frente aos gigantes, como o Alasca e a
Groenlândia. Isto cria uma falsa impressão, mas é assim que nos
acostumamos a nos ver, e que “eles” nos veem. De repente, o
anão-criança-inepto-palhaço virou outra coisa, além do estereótipo de
praia-futebol-café-pobreza-corrupção-traseiro-de-mulher-na-raia-ou-na-praia,
fechando o círculo.
O Brasil não cabe nos manuais, nem nos marxistas nem
nos do FMI ou do Banco Mundial. Nem nos manuais de redação. Isso traz
uma insegurança danada. Diante dela, o melhor é tentar devolver o
“estranho” ao seu lugar. Por isso, há uma certa sofreguidão em mostrar
que no Brasil noves fora, nada fica em pé. Dezenas de milhões de pessoas
saindo da pobreza? Um SUS universal que, com suas precariedades,
funciona? Uma política social e de auxílio a refugiados que a ONU
considera exemplar? Uma presença cada vez mais forte e reconhecida nos
fóruns internacionais? Ora, ora, noves fora, nada.
E se tivermos um critério comparativo, a coisa piora.
A Petrobras continua no noticiário. O HSBC e suas­ contas podres de
narcotráfico, tráfico de armas e joias, evasão fiscal etc. já sumiu das
manchetes e das páginas interiores. Até porque a investigação sobre
desvios na Petrobras continua, enquanto a promotoria suíça encerrou a
investigação sobre as contas do banco, mediante o pagamento de uma multa
irrisória, de 43 milhões de francos, nada, diante dos mais de 100
bilhões em qualquer moeda que se queira daquelas contas.
A Suíça, terra dos paraísos fiscais e da Fifa de
Joseph Blatter, ocupa um nobre quinto lugar na lista anticorrupção da
ONG Transparency Internacional. Assim é fácil. Basta não investigar.

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