Uma proposta com dez medidas elementares de ética para o STF
Pesquisador lista princípios para que a corte escape da tentação colaboracionista
Conrado Hübner Mendes
[RESUMO] Professor de direito constitucional da USP critica sujeição do Supremo a pressões e ameaças externas e elenca dez princípios para que a corte preserve a coerência decisória e a imparcialidade.
As constituições democráticas do pós-Guerra reservaram às cortes um lugar imponente. Desconfiada, com boas razões, dos excessos suicidas das maiorias, essa filosofia institucional ampliou o poder de juízes e lhes pediu coragem política, integridade moral e energia intelectual para proteger as liberdades. Um anteparo do liberalismo para salvar a própria democracia e conter a tentação autoritária.
Se cortes não dispõem do pedigree eleitoral para se afirmar, teriam, em compensação, julgadores imparciais com uma declaração de direitos no bolso e um bom argumento na mão. A partir da Constituição brasileira de 1988, o Supremo Tribunal Federal vestiu a ideia sem modéstia retórica. Vendeu-nos essa apólice de seguro político e prometeu postar-se nas trincheiras em nosso nome.
Por trás da filosofia majestosa, há história. Esta costuma trair expectativas messiânicas. Na história universal da infâmia judicial, muitas cortes, diante da onda autoritária, renderam-se à tentação colaboracionista sem perder a ternura legalista. Em vez de enfrentar o arbítrio e a repressão das liberdades, ou de tentar prevenir o colapso democrático, trilharam o caminho mais confortável da capitulação e adesão.
Há muitos exemplos. Os casos mais célebres incluem os juízes norte-americanos que, antes da Guerra Civil, aplicavam a “lei do escravo fugido”; juízes alemães que aplicavam mecanicamente a legislação nazista; juízes sul-africanos que atestavam a legitimidade das leis segregacionistas do apartheid. Durante a ditadura militar em seu país, juízes chilenos, educados numa tradição democrática que se destacava no continente, endossaram a brutalidade estatal e não hesitaram em embarcar, de mãos dadas aos militares de Pinochet, na “guerra contra o marxismo”.
Entre o idealismo e a infâmia, a história do STF teve momentos de passividade e complacência mesclados a atos de heroísmo individual. O uso arrojado da ação de habeas corpus para impedir abusos de autoridade durante a Primeira República, sob provocação advocatícia de Rui Barbosa e liderança judicial de Pedro Lessa, marcou época.
Conta-se também o episódio em que o ministro Ribeiro da Costa, presidente do STF em 1964, teria prometido fechar o tribunal e mandar as chaves para o general Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura militar, caso este tentasse interferir e domesticar a corte. De 1964 a 1968, ministros ousaram mobilizar o habeas corpus para proteção das liberdades contra os interesses da ditadura. Até que o AI-5 acabou com a festa e aposentou três ministros irresignáveis —Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva.
Um ano atrás, publiquei na Ilustríssima um texto que esboçou a identidade do STF no presente. Revigorado pela Constituição de 1988, o tribunal atuou por mais de 20 anos com certa autonomia e controle de rédeas, expandindo gradualmente seus tentáculos na política do país. Se não foi um voo em céu de brigadeiro, não se pode dizer que as trepidações ocasionais tenham afetado a autoridade e credibilidade da corte.
As patologias já eram visíveis, e o tribunal se afogava no oceano de casos e na ingovernabilidade de procedimentos. O poder monocrático de ministros passou a ser tão ou mais decisivo que o plenário. As deformações da “supremocracia”, como diz Oscar Vilhena, causavam pouco dano reputacional à corte. Eram visíveis, mas pouco percebidas pelo público geral.
O caso do mensalão e, pouco depois, a Lava Jato, o processo deimpeachment e as investigações da alta delinquência política viraram a maré contra o STF. Nesse caldeirão explosivo, monitorado por um país assanhado no grito anticorrupção, os holofotes se voltaram para a corte, e suas feridas ficaram expostas demais. A exposição, somada à falta de decoro judicial de ministros, feriu a imagem do tribunal.
O STF tornou-se “vanguarda ilusionista” —e como tal chegou ao aniversário de 30 anos da Constituição. Pratica o ilusionismo no procedimento e no argumento: um ministro sozinho tem poder total de obstrução, decide o que quer, quando quer, e interfere na agenda constitucional do país a seu gosto. A ideia de precedente e de jurisprudência se esvaziou e virou licença poética.
Cada caso é um caso e suas circunstâncias. O que se decidiu ontem importa pouco. Um tribunal imprevisível no seu tempo e no mérito das decisões. Na fachada de um poder moderador esconde-se um poder tensionador. Não é só traquinagem de “togados da breca”, na ironia de Christian Lynch. Instalou-se a “ministrocracia”, no neologismo de Diego Werneck e Leandro Molhano, e se corroeu de vez a institucionalidade da corte.
A expressão “vanguarda ilusionista” fez trocadilho com uma das hipérboles mais ousadas da imaginação política brasileira —a “vanguarda iluminista que empurra a história na direção do progresso civilizatório”, cunhada pelo ministro Luís Roberto Barroso.
O próprio Barroso, semanas depois, neste mesmo espaço, respondeu ao artigo. É notável que um ministro se disponha a dialogar publicamente, não apenas para ser ouvido ou cortejado pelo auditório, mas para reagir a críticas; e lamentável que seja conduta tão incomum.
O texto de Barroso se traiu na largada. Seu título, “Nós, o Supremo”, invocou a primeira pessoa do plural para um tribunal que conjuga apenas a primeira pessoa do singular (multiplicada por 11). No plural majestático, o “eu” particular esconde-se atrás de um “nós” difuso. Tentou despersonalizar artificialmente um tribunal personalista.
Para Barroso, minha desaprovação à balbúrdia procedimental indicava problemas reais, cujas soluções estariam a caminho. A crítica à diluição da jurisprudência pecava por não perceber que, em nosso sistema jurídico, não fomos treinados a respeitar precedentes, tal como se faz nos sistemas jurídicos da tradição anglo-saxã.
Por fim, fez uma extensa lista de decisões valiosas que eu ignoraria. “Na vida, a gente deve saber comemorar as vitórias”, disse. Nessa relação, enumerou os casos em que o STF contribuiu no avanço dos direitos das mulheres, de LGBTs, da população negra e indígena; ressaltou o combate à cultura da impunidade e os ajustes do processo democrático.
Descrever o cânone de decisões acertadas é uma forma tradicional e legítima de defender o trabalho das cortes, desde que se tome o cuidado de não se apropriar por completo do mérito pela vitória e reconheça a pluralidade de fatores sociais e políticos que a tornaram possível —sem presumir que, na ausência da corte, nenhum desses avanços teria ocorrido (a lista, inclusive, citou casos em que o STF apenas chancelou o legislador).
Reconstruir o cânone, contudo, não basta. Primeiro, porque muitos desses acertos vieram acompanhados de uma cacofonia argumentativa que dificulta a costura de uma jurisprudência e fragiliza a vitória; segundo, porque desconversa sobre o anticânone, a lista de desacertos em que o tribunal feriu a Constituição (como a sujeição de civis à Justiça Militar em caso de crimes militares, ou a invenção do “marco temporal” para demarcação de terras indígenas); terceiro, porque ignora casos em que o tribunal persiste no silêncio eloquente e nada decide.
Semanas atrás, Barroso publicou sua retrospectiva de 2018, intitulada “Atravessando a tempestade em direção à nova ordem”. Afirmou que o STF está próximo de extinguir a “monocracia”, medida crucial. No ano passado, aliás, o STF bateu recorde em decisões monocráticas nas ações constitucionais: foram 650, contra 565 em 2016 e 323 em 2016.
Selecionou também as dez decisões emblemáticas do ano. No campo dos direitos, merecem elogios a concessão de habeas corpus coletivo a mães e gestantes presas, a autorização para mudança de nome de transexuais, a garantia de liberdade de manifestação em universidades. Ficamos sem conhecer, de novo, as omissões do STF.
Para pinçar dois exemplos trágicos: o Supremo continua em silêncio sobre a distinção entre porte de drogas e tráfico, enquanto cresce o encarceramento; e segue empurrando com a barriga o caso que avalia a proibição, pelo Conselho Federal de Psicologia, da “cura gay”, enquanto a prática vai sendo autorizada por juízes de primeira instância. Já perdemos de vista o que guardam as gavetas do STF.
Barroso chamou a atenção dos “críticos severos do Supremo”, que deveriam “ter em conta que o país atravessa uma tempestade política, econômica e ética”. Nesse “tempo que nos tocou viver”, o STF “tem sido chamado para arbitrar crises que são gestadas nos outros vértices da Praça dos Três Poderes”.
Dias Toffoli, atual presidente da corte, acompanhou-o ao declarar que a “realidade nos obrigou a isso, e acho que não faltamos à sociedade” e concluir que o “Supremo foi o fio condutor da estabilidade”. Nessa leitura de conjuntura, o STF é vítima de crises externas, não um de seus artífices. O problema, aparentemente, está da porta para fora.
O cacoete da autocomplacência não ajudará o tribunal a neutralizar os ataques em curso, nem a se preparar para o que vem pela frente. Seu senso de urgência e gravidade não está sintonizado com o do país.
No primeiro mês de trabalho, o novo governo aproveitou o recesso do Congresso e do Judiciário para disparar uma “blitzkrieg desconstituinte”. Velocidade e volume são as marcas da blitzkrieg, estratégia de guerra que pode ser aplicada à separação de Poderes. O conteúdo das medidas, em seu conjunto, desafia a espinha dorsal da Constituição.
A pretensão desconstituinte está disfarçada em decretos, medidas provisórias e projetos de lei até aqui vindos a público. Cumprir a tarefa por emenda constitucional não seria boa estratégia, pois faria barulho. Melhor manter a letra da Constituição intacta e jogar o ônus nas costas do STF.
O bolsonarismo se lança em múltiplas arenas. As normas jurídicas já editadas ou esboçadas nestas primeiras semanas de 2019 dão amostra do projeto. Aos que duvidam da entrada do país no clube dos regimes autoritários emergentes no mundo, à esquerda e à direita, e veem “risco zero” à democracia, o conteúdo antiliberal dos projetos deveria despertar dúvida e apreensão.
Se democracia significa mais que eleições periódicas, há algo de errado nessas investidas: medida provisória que estabelece o monitoramento discricionário de entidades da sociedade civil; decreto que amplia poderes de classificação do sigilo de documentos públicos, reduz transparência e boicota o combate à corrupção; flexibilização de leis ambientais e, sobretudo, a atribuição da competência de demarcação de terras indígenas a grupos que têm interesse na supressão das mesmas; insistência na repressão da liberdade pedagógica sob o pretexto da doutrinação ideológica, além do projeto paralelo do ensino domiciliar, proibido pela Constituição, pela lei e pelo STF; por fim, no campo da segurança, decreto que facilita a posse de armas de fogo e pacote legislativo multitemático desprovidos de solidez empírica e da demonstração causal dos efeitos pretendidos.
A blitzkrieg do governo conta com um STF colaboracionista. Não se trata de uma aposta no escuro, pois o tribunal tem emitido sinais abundantes nessa direção.
Os sintomas são muitos. Poderíamos voltar mais no tempo para identificar as viradas da corte à luz de pressões e ameaças externas —como a recusa da ministra Cármen Lúcia, enquanto presidente da corte, em pautar as ações sobre execução provisória da pena, e o apelo da ministra Rosa Weber, contra a sua própria opinião, a uma colegialidade que só ela praticou para formar uma maioria que dependia dela. Fiquemos nos episódios mais recentes.
Toffoli e Luiz Fux, presidente e vice da corte, são os atuais patronos do colaboracionismo. Começo pelo episódio que inaugura o estilo Toffoli de governar. Em 28 de setembro, Ricardo Lewandowski autorizou a Folha a entrevistar Lula na prisão, revogando decisão que negava esse pedido, tomada pela Justiça Federal em Curitiba. Mais tarde, Fux, que não estava em Brasília, tomou uma decisão em nome da presidência da corte.
A justificativa foi que Toffoli também não se encontrava na capital federal. Não se explicou bem esse truque procedimental. Fux entendeu que a entrevista poderia causar “desinformação na véspera do sufrágio, considerando a proximidade do primeiro turno das eleições presidenciais” —em fevereiro de 2019, a entrevista ainda não foi autorizada.
Em 1º de outubro de 2018, Toffoli esteve na Faculdade de Direito da USP e proferiu uma palestra sobre os 30 anos da Constituição. Lançou ali sua tese revisionista: em 1964 não houve golpe nem revolução, mas “movimento”. Cruzou nos corredores da faculdade com Lewandowski, professor da casa. Conta-se que a interação não foi amistosa.
Horas depois, Lewandowski solta outra liminar, cassando a decisão de Fux, pois esta teria sido “arquitetada com o propósito de obstar, com motivações cujo caráter subalterno salta aos olhos, a liberdade de imprensa”. Aproveitou para avisar que o presidente da corte não pode ser “revisor das medidas liminares” dos demais ministros, pois entre eles não haveria hierarquia.
O aviso não surtiu efeito, e mais tarde Toffoli revogou novamente a liminar. Estava criado, pelo presidente da corte, o poder de cassação de liminares monocráticas, poder que voltou a ser utilizado semanas depois para revogar liminares do ministro Marco Aurélio. Com esse dispositivo, Toffoli tem a corte em suas mãos: controla não só a pauta, mas também as liminares dos colegas.
O ministério de Bolsonaro tem 9 de seus 22 ministros envolvidos em graves investigações na Justiça. O STF entendeu, em 2016, que nomeações assim são nulas. A regra não existia antes, mas valeu para anular a nomeação de Lula e de Cristiane Brasil para ministérios. Não valeu, curiosamente, para Moreira Franco. Não vai valer, menos curiosamente, para o ministério de Bolsonaro.
Quando Fux suspendeu as investigações sobre Flávio Bolsonaro, contrariando a posição firmada pelo STF a respeito do foro especial, sabia que sua decisão era precária. Marco Aurélio já a revogou, mas o problema não é esse. Politicamente, Fux deu a Flávio o tempo precioso para tomar posse e articular-se na mesa do Senado.
O colaboracionismo não está só em decisões ou omissões. Está também nos sinais emitidos pelo presidente do STF. Toffoli resolveu hospedar em seu gabinete um general para suavizar a relação com os militares, que vinham ameaçando a corte via Twitter. O novo governo chamou o general para o ministério, e Toffoli o substituiu por outro militar. Começa a criar uma perigosa convenção interna, uma cadeira cativa para as Forças Armadas.
Toffoli anunciou o projeto de “resgatar a clássica separação de Poderes”, nesse momento em que, na sua opinião, o Judiciário “deve se recolher”. Não formulou bem a ideia, não disse de onde ela vem, qual pensador o inspirou, tampouco em qual período histórico ou regime ela existiu. Não prestou contas sequer a Montesquieu. Mas suas ações dizem mais que suas palavras.
Quando perguntado acerca do decreto que facilita posse de armas, Toffoli antecipou, gratuitamente, seu juízo de constitucionalidade. De bate-pronto, disse que não via problemas. Esqueceu que o contraditório deve preceder a palavra do juiz.
No discurso de abertura do ano judicial, enfeitado com duas citações de Sarney e uma de Rui Barbosa, Toffoli fez um apelo à colegialidade e à unidade. Mais inusitado, convocou um pacto entre os Poderes para as reformas previdenciária e tributária. Cabe ao Judiciário manifestar-se quando reformas chegarem à sua mesa, não prestar consultoria preventiva. De todo modo, Toffoli já conversou com os ministros Paulo Guedes e Sergio Moro. Dá continuidade à inovadora prática de “negociação de constitucionalidade”.
Ministros do STF costumam estar satisfeitos com a dinâmica decisória do tribunal, como relata pesquisa de Virgílio Afonso da Silva. Já passou da hora, contudo, de reconhecerem problemas. Grandes reformas estruturais são importantes, mas antes poderíamos sugerir alguns pactos, para usar a linguagem de Toffoli. Eu sugeriria dez mais afinados com a função judicial, que dependem só deles. Em resumo, princípios elementares de ética judicial.
1) Pacto pelo autorrespeito e preservação da dignidade judicial, traduzido no decoro e nos rituais de imparcialidade;
2) Pacto pelo respeito ao plenário, pois a colegialidade começa pela valorização da instituição acima dos ministros;
3) Pacto pela autocrítica, pois o STF não é apenas vítima da conjuntura e da má vontade dos observadores;
4) Pacto pela discrição judicial e pela compostura fora dos autos, pois a liberdade de expressão de juízes está sujeita a restrições especiais em nome da instituição;
5) Pacto por práticas republicanas contra o patrimonialismo judicial. Não custa reconhecer conflitos de interesse dos juízes, como Toffoli julgar José Dirceu, Gilmar Mendes julgar clientes do escritório de sua esposa, ou Gilmar Mendes ser sócio de empresa educacional que negocia patrocínios com empresas e entes públicos. Não custa evitar lobby em tribunais para nomeação de suas filhas como desembargadoras, como fizeram Fux e Marco Aurélio;
6) Pacto por coerência decisória e respeito a precedentes;
7) Pacto por menos teatralidade, afetação literária e maior clareza argumentativa;
8) Pacto pela democratização do Judiciário traduzido no combate aos privilégios da magistocracia;
9) Pacto pelo controle judicial de políticas públicas baseado em evidências, contra o impressionismo judicial;
10) Pacto de combate ao PIBB, o Produto Interno da Brutalidade Brasileira, nossa cota de incivilidade traduzida em homicídios, crimes de ódio, encarceramento e violência estatal.
Essa é a urgência do país. A urgência de sempre. Está aí um plano ambicioso para o STF.
Conrado Hübner Mendes, doutor em direito pela Universidade de Edimburgo e doutor em ciência política pela USP, é professor de direito constitucional da USP.
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