Este ódio não lhe pertence - Uma breve história da manipulação midiática e nas redes sociais
Valéria Dallegrave
A imprensa, em seus primórdios, assumiu um papel importantíssimo na crítica sobre a organização social e política. Porém, este papel foi prejudicado à medida que as empresas jornalísticas passaram a perseguir o aumento do lucro, em detrimento da ética e da preocupação com a função social. Anunciantes e empresas apoiadoras passaram a ter mais e mais influência na notícia veiculada. A informação tornou-se mercadoria e os meios de comunicação de massa, engrenagens importantes do sistema, engajados em “moldar” a opinião pública. Costuma-se dizer que a liberdade de imprensa tornou-se “liberdade de empresa”.
No Brasil, a mídia conservadora, submetida aos interesses dos grandes empresários-anunciantes, impediu de forma eficaz que os partidos de esquerda chegassem ao governo por muitos anos. Contribuiu para isso, principalmente, ao disseminar a convicção de corrupção generalizada na política e de que “partidos” não seriam algo importante. Outros fatores também influenciaram no processo, como a existência de “currais eleitorais”, a compra de votos através de dinheiro ou favores pessoais (são corruptos apenas os políticos?). E também é preciso destacar, ainda, a maneira como se estrutura a propaganda política no país (estetizada, direcionada a vender candidatos como “produtos”, ou seja, só pela aparência e não pelo conteúdo), que torna muito mais fácil a manipulação do público. Eleitores sem esclarecimento, tempo ou condições de buscar informações factuais, o histórico e o desempenho passado de cada um dos candidatos, são facilmente impressionáveis por “convicções”. E as informações factuais, que deviam ser a principal ferramenta para a decisão do voto, deixam de ser consideradas. Quanto aos partidos, não são nada mais do que a “cola” que mantém juntos determinados políticos. Se o grupo não tiver convicções em comum (uma ideologia?), não passará de um aglomerado de oportunistas.
Sob a influência da grande mídia, por muitos anos a desilusão com a política e com os políticos fez com que as classes média e baixa participassem de forma precária do processo democrático. Os políticos que poderiam fazer a diferença encontravam um público condicionado, pronto a ver todos como “farinha do mesmo saco”. A revolta apática de votos nulos e brancos é muito conveniente para manter as coisas como estão, e totalmente inútil para questionar o sistema, pois o vencedor necessita de mais de cinquenta por cento DOS VOTOS ÚTEIS. Assim sendo, embora algumas fake news digam o contrário, votos em branco e nulos são INÚTEIS em qualquer sentido...
No campo específico do jornalismo político, o que temos é uma imprensa adaptada à apatia do público. Os jornais assumem a incapacidade de despertar interesse nos leitores sobre o assunto. Em vez de criar matérias que contribuam para um maior discernimento, por exemplo, distinguir o que é de responsabilidade do município, do estado ou da união; opta-se pelo espetáculo, a indústria de escândalos de corrupção (alguns até fabricados - como o caso Ibsen Pinheiro, que afastou-se da política depois de ser alvo de fake news publicada pela Veja).
À despeito de tudo isso, a esquerda chega à Presidência, com a força e o carisma de Luiz Inácio Lula da Silva. Principal líder dos trabalhadores, fundador do PT, ele decide ser candidato a Presidente e, como verdadeira pedra no sapato da direita, persiste até conseguir. Perde três eleições, a primeira em 89 para Collor – que teve apoio total da Globo, com manipulação escancarada e já confessa do debate entre candidatos – e outras duas, em 1994 e 1998, para FHC, que não teve escrúpulos em comprar escancaradamente os votos dos parlamentares para conseguir ao direito a reeleição - e, é preciso destacar, isso nunca mereceu qualquer arremedo de CPI. Em 2002, finalmente, Lula consegue ser eleito Presidente do Brasil com o maior número de votos obtido por um político (mais de 52,4 milhões de votos). Relege-se em 2006 e, ao deixar a presidência, em 2010, com 87% de aprovação, elege sua sucessora, Dilma Roussef. Nenhum político no Brasil, quiçá no mundo, teve tanta aprovação no final do mandato. Ao que podemos concluir, Lula foi quem mais uniu o povo brasileiro. Se estamos “divididos”, é pelo ódio semeado, sem medir consequências, contra o PT.
Com a eleição de Dilma, consolida-se uma realidade difícil para os donos do poder: a grande imprensa já não decide eleições. Reitera-se o que foi descoberto na eleição de Lula, que conquistou mentes e corações dos brasileiros apesar do bombardeio midiático, cruel e difamatório, que depois se acirra com o show do julgamento do “mensalão”. Muito mais um fenômeno criado pela mídia (e pelo judiciário pouco comprometido com a verdade) do que um verdadeiro escândalo, visto sequer tratar de desvio de dinheiro público.
Neste meio tempo, em 2006, o facebook, um experimento entre universidades, é aberto ao público e torna-se um completo sucesso. Para ter uma ideia de seu crescimento exponencial, em dezembro de 2005 contava com 5,5 milhões de membros e, em 2010, com 500 milhões de pessoas conectadas. Em 2012, alcança um bilhão de usuários! Em 2014, Mark Zuckerberg compra o aplicativo whatsapp por 19 bilhões de dólares. Com todo este dinheiro envolvido, já dá para imaginar quais passam a ser as novas ferramentas de manipulação do público, não!?
O jornalismo impresso afunda na crise, a grande mídia perde mais e mais público para as redes sociais. Segundo estudo realizado pela agência Advice Comunicação Corporativa em novembro de 2016, por meio do aplicativo BonusQuest, 78% dos brasileiros se informam pelas redes sociais. Destes, 42% admitem já ter compartilhado notícias falsas e só 39% checam com frequência as notícias antes de difundi-las.
O caldo da desinformação está preparado. As fake news e os perfis falsos vão tomando conta. Em reportagem da BBCde dezembro de 2017, um dos contratados para alimentar perfis falsos conta que estes foram largamente usados durante as eleições de 2014. Conforme a matéria, “ uma espécie de exército virtual de fakes foi usado por uma empresa com base no Rio de Janeiro para manipular a opinião pública, principalmente, no pleito de 2014”. O mesmo em que foi registrada a incredulidade de Aécio Neves, quando descobriu que não havia ganho as eleições. Coincidência!?
A reportagem da BBC compara a estratégia de manipulação da opinião pública nas redes sociais no Brasil com a usada na eleição de Trump, sob a batuta de Steve Bannon. Segundo pesquisadores do programa Computational Propaganda Project, da Universidade de Oxford, o atual Presidente dos EUA utilizou um exército de robôs e contas administradas por humanos, com atividades automatizadas, para manipular os assuntos no debate público, colocando em pauta fake news contra Hillary Clinton, como o absurdo “pizza gate”. Segue ainda o escândalo da Cambrydge Analítica, empresa que capturou dados de 50 milhões de usuários no facebook, com o intuito de criar modelos de análise que pudessem direcionar ações de cunho político. Este tipo de estratégia, conforme os entrevistados pela BBC, já existiria no Brasil ao menos desde 2012.Ou seja, dois anos antes do início da Lava-Jato...
Como funciona a estratégia? Baseados na coleta de dados, os perfis falsos alimentam determinados temas, atacam adversários políticos e criam boatos, no caso das eleições, geram um clima de “já ganhou” ou “já perdeu”. Exploram o “comportamento de manada”: Conquistam a opinião pública por ser maioria, ou pela sua capacidade de influenciar pessoas reais a comprar determinado ponto de vista.
O robô virtual, chamado de BOT, um software, é criado para realizar automaticamente diversas tarefas específicas que parecem ser feitas por pessoas. Seu nível de sofisticação já é avançado: alguns conseguem reproduzir o comportamento de usuários reais, incluindo a linguagem e os horários de atuação. Há, ainda, robôs políticos, que são “materializados” em perfis de usuários que parecem reais, mas na verdade são programados para atuar nesses ambientes para replicar notícias falsas ou tornar algum tema em específico relevante entre os “usuários reais”. Segundo estudo da FGV/DAPP, cerca de 20% das discussões envolvendo política nas redes sociais são motivadas por robôs...
Houve diversas denúncias quanto ao uso pouco ético das redes sociais na eleição brasileira, como a reportagem publicada pela Folha de São Paulo em 18 de outubro, que foram rapidamente esquecidas. A jornalista Patrícia Campos Mello denunciou o uso de disparos massivos via whatsapp contra o PT, patrocinados por grandes empresários afim de eleger o candidato do PSL. A justiça não tomou providência alguma, e os jornais em breve “esqueceram” o assunto.
Os algoritmos (critérios que o facebook utiliza para decidir quais mensagens compartilhar entre os usuários) também são utilizados como parte da estratégia. A RFI (Rádio Francesa de Notícias), entrevistou o matemático belga Paul-Olivier Delaye, especialista na proteção de dados, consultado como expert na CPI aberta pelo Parlamento britânico em março de 2018, que explica: na construção dos algoritmos, é possível caracterizar as pessoas usando dados. “Por exemplo, se percebemos que alguém está próximo de um perfil com necessidade de afeto, estamos diante de uma pessoa que pode facilmente ser influenciada pela emoção, sem nenhuma, ou pouca reflexão. Desta forma, se compartilharmos com esse indivíduo um conteúdo político emotivo, isso irá motivá-lo a compartilhar sem pensar a respeito”.
Quanto às emoções ativadas na competição presidencial no Brasil, Maria José Braga, presidente da FENAJ (Federação Nacional dos Jornalistas), declarou, em nota: “Existe um candidato que faz apologia da violência. Isso está fazendo com que parte da sociedade encare a violência como forma de ação política. […] O jornalismo tem como função social exatamente levar a informação de interesse público para a sociedade, mas quem se sente de alguma forma prejudicado acha que pode usar da violência para impedir que a sociedade tenha conhecimento dos fatos. Isso é muito grave e está exacerbado nessa eleição”.
Acontece que o clima de violência se impôs à medida em que a própria mídia o tratou com excessiva tolerância. As atitudes grosseiras ou agressivas por parte do tal candidato, ou de seus seguidores, sofreram pouca ou nenhuma crítica nos jornais. Até mesmo sua ausência nos debates foi considerada banal. Foram poucas as reclamações de que o direito dos eleitores de comparar propostas ficou prejudicado sem o embate direto, e apenas a PROPAGANDA política determinou o pleito (com a ajuda das fake news). A Rede Globo cancelou o debate do segundo turno, devido a supostos problemas de saúde do candidato e sequer ofereceu a Haddad um espaço para apresentar suas propostas (já que ele tinha plenas condições físicas e intelectuais para isso).
O outro candidato, por outro lado, foi vendido com uma eficiente máquina de marketing como um produto novo, educado, capaz de assumir o governo de uma nação, pessoalmente comprometido com o combate a corrupção, de comportamento ético exemplar. Só quem buscasse informação em sites e informativos considerados “de esquerda” é que receberia o registro claro de atitudes grosseiras, das falas preconceituosas, do acúmulo suspeito de capital na correspondente família e da total ausência de um programa de governo. Por onde andou a crítica da grande mídia enquanto tudo isso se passava? Não se sabe. É como se um grande buraco negro tivesse se instalado, com o único propósito de evitar a eleição do PT.
Com Lula retirado (de forma totalmente avessa aos direitos democráticos) da eleição, Haddad, pouco conhecido do público, foi alvo fácil das fake news. O TSE, por sua vez, agiu de forma retardada e ineficaz quanto à denúncia da disseminação massiva de notícias falsas. É bom que se ressalte que as fake news continuam agindo ainda agora, sempre de forma a exaltar o candidato eleito e não só desmoralizar a esquerda, em especial o PT e seus líderes, como para semear o ódio a estes e a qualquer um que os defenda. O que, sendo repetido por tempo suficiente, pode criar um clima parecido com o da Alemanha nazista, em que um grupo no poder passa a ser autorizado pela grande maioria silenciosa da população a usar de qualquer tipo de violência contra os alvos do ódio.
As redes sociais, aliás, são parte importante na construção deste ódio. Você talvez já tenha conhecido, como eu, alguma pessoa extremamente meiga e gentil e, ao adicioná-la no facebook, tenha descoberto que esta mesma pessoa compartilha posts completamente enquadrados no ódio ao PT e à esquerda. Esta experiência chocante me fez procurar informações sobre o quanto as redes sociais podem influenciar as emoções. Encontrei algo bem interessante em um artigo (no site Megajurídico): o Facebook teria conduzido um experimento psicológico massivo com mais de 689 mil usuários, manipulando os “feeds de notícias” a fim de gerar efeitos nas emoções dos mesmos.
O que foi observado é que a maior quantidade de postagens negativas ou positivas, vindas de outros usuários, determinaria a predominância das mesmas nas postagens compartilhadas pelo indivíduo. Até as linhas do tempo de usuários que não foram submetidos ao experimento foram afetadas, conforme o número de amigos de cada usuário. O resultado sugeriu que nossas emoções são influenciadas pelas emoções expressadas por “amigos” na rede, e foi considerado uma evidência do contágio de emoções em escala massiva. Além do mais, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), distúrbios psiquiátricos podem estar sendo causados em jovens que usam em excesso as mídias sociais. Ou seja: o aumento de atividades nas redes sociais pode ser associado a diminuição futura na saúde mental.
Hoje, a grande mídia é utilizada de forma paralela às redes sociais. Destaca-se ainda, em matérias jornalísticas, qualquer tipo de acusação contra políticos de esquerda, mesmo que frágeis e infundadas. A repetição da suposta relação dos mesmos com a corrupção é ressaltada em comentários que disseminam ódio nas redes sociais. Toda e qualquer pessoa que tenha algum pensamento de esquerda passa a ser alvo de acusações e agressões, e pode receber a etiqueta de “petralha”, “defensor de bandidos”, “corrupto” ou “ladrão”. Até mesmo a família de Chico Buarque!
Na Alemanha nazista, os judeus tiveram sua moral destruída pela máquina midiática nazista, sendo considerados “sujos”, o que favoreceu a gerar uma maioria silenciosa da população frente ao genocídio nas câmaras de gás. Atribui-se, ainda, a Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, a afirmação: “basta repetir uma mentira para que ela se torne verdade”. No Brasil, estamos sendo alvo de diversas mentiras, as “fake news”, que ainda alimentam o ódio, sem que a justiça ou a polícia tomem qualquer atitude. Até onde vai esta situação? Ou, ainda, a pergunta mais urgente: Até onde vamos deixar que o ódio nos leve!?
Valéria Dallegrave, Graduada em jornalismo pela UFRGS, Mestre em Letras pela UFC, escritora e dramaturga com curso de roteiro pela EICTV (Cuba)
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