Como fabricar monstros para garantir o poder em 2018 | Opinião | EL PAÍS Brasil
Como fabricar monstros para garantir o poder em 2018
Enquanto o país é tomado por assaltantes do dinheiro público, parte dos brasileiros está ocupada caçando pedófilos em museus
Pense. Preste atenção na sua vida. Olhe bem para seus problemas.
Observe a situação do país. Você acredita mesmo que a grande ameaça para
o Brasil – e para você – são os
pedófilos? Ou os
museus?
Quantos pedófilos você conhece? Quantos museus você visitou nos últimos
anos para saber o que há lá dentro? Não reaja por reflexo. Reflexo até
uma ameba, um indivíduo unicelular, tem. Exija um pouco mais de você.
Pense, nem que seja escondido no banheiro.
Seria fascinante, não fosse trágico. Ou é fascinante. E também é
trágico. No Brasil atual, os brasileiros perdem direitos duramente
conquistados numa velocidade estonteante. A vida fica pior a cada dia. E
na semana em que o presidente mais impopular da história recente
se safou pela segunda vez de uma denúncia criminal,
desta vez por obstrução da justiça e organização criminosa, e se safou
distribuindo dinheiro público para deputados e rifando conquistas
civilizatórias como o
combate ao trabalho escravo, qual é um dos principais assuntos do país?
A pedofilia.
Desde setembro, quando a mostra
QueerMuseu – Cartografia da Diferença na Arte Brasileira foi fechada, em Porto Alegre, pelo Santander Cultural, após
ataques liderados por milícias como o Movimento Brasil Livre (MBL),
arte, artistas e instituições culturais têm sido atacados e acusados de
estimular a pedofilia e/ou de expor as crianças à sexualidade precoce
no Brasil. Resumindo: enquanto os brasileiros têm seus direitos
roubados, uma parte significativa da população está olhando para o outro
lado. Ou, dito de outro modo: sua casa foi tomada por assaltantes de
dinheiro público e ladrões de direitos constitucionais, mas você está
ocupado caçando pedófilos em museus.
Conveniente, não é? E para quem? A resposta é tão óbvia que qualquer um pode chegar a ela sem ajuda.
Uma pergunta simples: por que os movimentos que ergueram a bandeira anticorrupção para derrubar
Dilma Rousseff (PT), uma presidente ruim, mas que a maioria dos brasileiros elegeu, não estão fazendo nenhum movimento para derrubar
Michel Temer
(PMDB), um homem que só se tornou presidente por força de um
impeachment sem base legal, ligado a uma mala de dinheiro e que tem como
um dos principais aliados outro homem, Geddel Vieira Lima (PMDB),
ligado a mais de
51 milhões de reais escondidos num apartamento?
Ou Aécio Neves (PSDB), que em conversa gravada pediu dois milhões de
reais a Joesley Batista, um dos donos da JBS, para pagar os advogados
que o defendem das denúncias da
Operação Lava Jato?
Isso não é corrupção? Isso não merece movimento? Quem mudou? E por quê?
Responda você.
Outra pergunta simples: por que, em vez disso, parte destes
movimentos, que se converteu em milícia, criou um problema que não
existe justamente num momento em que o Brasil tem problemas reais por
todos os lados?
A não ser que você realmente acredite que o problema da sua vida, o
que corrói o seu cotidiano, são pedófilos em museus, sugiro que você
mesmo responda a essa pergunta. Eu vou buscar responder a algumas
outras.
1) Como criar monstros para manipular uma população com medo?
A criação de monstros para manipular uma população assustada não é
nenhuma novidade. Ela se repete ao longo da história, com resultados
tenebrosos, seguidamente sangrentos. Como muitos já lembraram, a
Alemanha nazista
atacou primeiro exposições de arte. Os nazistas criaram o que se chamou
de “arte degenerada” e destruíram uma parte do patrimônio cultural do
mundo. E, mais tarde, assassinaram 6 milhões de judeus, ciganos,
homossexuais e pessoas com algum tipo de deficiência.
Dê um monstro a uma população com medo, para que ela o despedace, e
você está livre para fazer o que quiser. Mas hoje há uma diferença com
relação a outras experiências ocorridas na história: a
internet. A disseminação do medo e do ódio é muito mais rápida e eficiente, assim como a fabricação de monstros para serem destroçados.
Mas a internet é uma novidade também em outro sentido, que está sendo
esquecido pelos linchadores: as imagens nela disseminadas estarão
circulando no mundo para sempre. A história não conheceu a maioria dos
rostos dos cidadãos comuns que tornaram o nazismo e o
holocausto
uma realidade possível, apenas para ficar no mesmo exemplo histórico.
Eles se tornaram, para os registros, o “cidadão comum”, o “alemão médio”
que compactuou com o inominável. Ou mesmo que aderiu a ele.
Aqueles que hoje chamam artistas de “pedófilos”
se esquecem de que sua imagem e suas palavras permanecerão para sempre
nos arquivos do mundo
Hoje, no caso do Brasil e de outros países que vivem situação
parecida, o “cidadão comum” que aponta monstros com o rosto distorcido e
estimula o ódio não é mais anônimo e apagável. Ele está identificado.
Seus netos e bisnetos o reconhecerão nas imagens. Seu esgar de ódio
permanecerá para a posteridade.
Será interessante acompanhar como isso mudará o processo de um povo
lidar com sua memória. E com sua vergonha. Tudo é tão instantâneo e
imediato na internet, tão presente contínuo, que muitos parecem estar se
esquecendo de que estão construindo memória sobre si mesmos. Memória
que ficará para sempre nos arquivos do mundo.
2) Como criar uma base eleitoral para “botar ordem na casa” sem mudar a ordem da casa?
A fabricação de monstros é uma forma de controle de um grupo sobre
todos os outros. A escolha do “monstro” da vez é, portanto, uma escolha
política. O que se cria hoje no Brasil é uma base eleitoral para 2018.
Uma capaz de votar em alguém que controle o descontrole, alguém que
“bote ordem na casa”. Mas que bote ordem na casa sem mudar a ordem da
casa. Este é o ponto.
A escolha do “monstro” da vez é uma escolha política
Primeiro, derrubou-se a presidente eleita com a bandeira
anticorrupção. Mas aqueles com os quais esses movimentos se aliaram eram
corruptos que tornaram a mala de dinheiro uma referência ultrapassada,
ao lançar o apartamento de dinheiro. Personagens desacreditados,
políticos desacreditados, como então manter as oligarquias no poder para
que nada mude mas pareça mudar? Capturando o medo e o ódio da população
mais influenciável e canalizando-os para outro alvo.
A técnica é antiga e segue muito eficiente. Enquanto a turba grita
diante de museus (museus!), às suas costas o butim segue sendo dividido
entre poucos. Rastreia-se qualquer exposição cultural com potencial para
factoides, o que é bem fácil, já que o nu faz parte da arte desde a
pré-história, e alimenta-se o ódio e os odiadores com monstros fictícios
semana após semana. Aos poucos, a sensação de que o presente e o futuro
estão ameaçados infiltra-se no cérebro de cada um.
E é um fato. O presente e o futuro estão ameaçados no Brasil porque há menos dinheiro para saúde e educação, porque
a Amazônia está sendo roubada
e porque direitos profundamente ligados à existência de cada um estão
sendo exterminados por um Congresso formado em grande parte por
corruptos. Mas como isso está deslocado, parece que a ameaça está em
outro lugar. Neste caso, na arte, nos artistas, nos museus. Com o ódio
deslocado para um monstro que não existe, homens que pregam e praticam
monstruosidades aumentam suas chances de serem eleitos e reeleitos e as
monstruosidades históricas seguem se perpetuando.
Com o ódio deslocado para um monstro que não existe, oprimidos votam em opressores acreditando que se libertam
É assim que se cria uma base eleitoral que vota para botar ordem na
casa, mas não para mudar a ordem da casa. É assim que oprimidos votam em
opressores acreditando que se libertam. É assim que se faz uma
democracia sem povo – uma impossibilidade lógica que se realizou no Brasil.
3) Por que o “pedófilo” é o “monstro” perfeito para o momento político?
Por que o “pedófilo” e não outro? Esta é uma pergunta que vale a pena
ser feita. Há muitas respostas possíveis. Já se tentou – e ainda se
tenta – monstrificar muita gente. O aborto foi
a moeda eleitoral da eleição de 2010
e os defensores do direito de as mulheres interromperem uma gestação
indesejada foram chamados de “assassinos de fetos”. Gays, lésbicas,
travestis, transexuais e transgêneros estão sempre na mira, como os
episódios homofóbicos e o assassinato de LGBTs nos últimos anos
mostraram. Feminismo e feministas, em algumas páginas do Facebook,
viraram palavrões.
A tentativa acaba de ser reeditada com os protestos contra a palestra da filósofa americana
Judith Butler no SESC, em São Paulo. Ela participará do ciclo de debates intitulado
Os fins da democracia,
entre 7 e 9 de novembro. Acusam-na, vejam só, de “inventar a ideologia
de gênero”. A vergonha alheia só não é maior porque quem tem um
presidente como
Donald Trump é capaz de entender em profundidade tanto o oportunismo quanto a burrice.
Mas, se as tentativas de monstrificar pessoas são constantes, há
grupos organizados para defender os direitos das mulheres sobre o seu
corpo e para denunciar a homofobia e a transfobia. E estes grupos não
permitem mais a conversão de seus corpos em monstruosidades e de seus
direitos em monstruosidades. Nestes campos, há resistência. E ela é
forte.
Qual é, então, o monstro mais monstro deste momento histórico, o
monstro indefensável? O pedófilo, claro. Quem vai defender um adulto que
abusa de crianças? Ninguém.
Mas há um problema. Os pedófilos não andam por aí nem são uma
categoria. A maioria, aliás, como as estatísticas mostram, está dentro
de casa ou muito perto dela. Ao contrário de muitos que apontam o dedo
diante de museus,
eu já escutei vários pedófilos reais como repórter.
E posso afirmar que são humanos e que a maioria sofre. E posso afirmar
também que uma parte deles foi abusada na infância. Posso afirmar ainda
que nem todos sofrem, mas todos precisam de ajuda. Ajuda que, aliás,
eles (e elas) não têm.
Como então criar uma epidemia de pedofilia sem pedófilos disponíveis? Fabricando pedófilos. Espelhando-se em
Hitler
e criando uma “arte degenerada”. Manipulando todos os temores ligados à
sexualidade humana. E manipulando especialmente uma ideia de criança
pura e de infância ameaçada.
Como criar uma epidemia de pedofilia sem pedófilos disponíveis? Espelhando-se em Hitler e criando uma “arte degenerada”
A infância está, sim, ameaçada. Mas pela
falta de investimento em educação e em saúde,
pela destruição da floresta amazônica e pela corrosão das fontes de
água, pela contaminação dos alimentos, pela destruição dos direitos que
não terão mais quando chegarem à vida adulta. São estas as maiores
ameaças contra as crianças brasileiras de hoje – e não falsos pedófilos
em museus.
As crianças e seu futuro, aliás, estão ameaçados porque há menos
museus do que deveria, menos centros culturais do que deveria e muito
menos acesso aos que ainda existem do que seria necessário. Estas são as
ameaças reais à infância deste momento do Brasil.
Nenhum dos artistas acusados de pedofilia ou de estimular a pedofilia é pedófilo. Mas quando provarem isso na justiça,
caso dos que estão sendo investigados,
sua vida ou uma parte significativa dela já foi destruída. E quem se
responsabilizará pela destruição de uma vida humana? Quem se
responsabilizará pelo ataque à cultura, já tão maltratada neste país?
Você, que grita e aponta o dedo e o celular, fabricando falsificações, precisa se responsabilizar pelas vidas que destrói
Você, que grita e aponta o dedo e a câmera do celular, destruindo
vidas e fabricando falsificações, precisa se responsabilizar pelos seus
atos. Porque vidas humanas estão sendo destruídas de fato. E são as
daqueles que estão sendo acusados injustamente de serem o que a
humanidade definiu como “monstros”. E é a vida de todos nós que teremos
ainda menos acesso à cultura num país em que sobram muros e presídios,
mas faltam escolas, centros culturais e museus.
4) Por que manipular os tabus relacionados à sexualidade é uma forma eficiente de criar uma base eleitoral?
Como fazer para criar uma base eleitoral que vote naqueles que
acabaram de espoliá-la? Apele para a moralidade. Não há maneira mais
eficiente de fazer isso que manipular os temores que envolvem a
sexualidade. Os exemplos históricos são infinitos. Quem controla a
sexualidade controla os corpos. Quem controla os corpos controla as
mentes. Quem controla as mentes leva o voto para onde quiser. E também
arregimenta apoio para projetos autoritários.
De repente, uma parcela de brasileiros, incitada pelas milícias de
ódio, decidiu que a nudez humana é imoral. E fabricaram uma equação
esdrúxula: corpo adulto nu + criança = pedofilia. Pela lógica, se esse
pessoal fosse a Florença, na Itália, tentariam destruir a machadadas o
Davi de Michelangelo, porque ele tem pinto.
Quem controla a sexualidade, controla os corpos. Quem controla os corpo e as mentes, leva o voto para onde quiser
Não há registro de que as milhões de crianças que tiveram o
privilégio de ver a estátua ao vivo, levadas por pais ou por professores
em visitas escolares, tenham se sentido sexualmente abusadas ou tenham
vivido algum trauma. Mas há inúmeros registros de crianças traumatizadas
na infância pela repressão à sexualidade inerente aos humanos.
Crianças têm pênis, crianças têm vagina, crianças têm sexualidade. É
lidando de modo natural com essa dimensão da existência humana que se
forma adultos capazes de respeitar a sexualidade, o desejo e a vida do
outro. É conversando sobre isso e não reprimindo que se forma adultos
capazes de respeitar os limites impostos pelo outro na experiência
sexual compartilhada. É informando e não desinformando sobre essa
dimensão da existência humana que se forma adultos que não se tornarão
abusadores de crianças.
5) Por que a arte e os artistas são os alvos do momento?
A decisão que o
Museu de Arte de São Paulo (MASP) tomou, de proibir a exposição
Histórias da Sexualidade,
aberta em 20 de outubro, para menores de 18 anos, é uma afronta à arte –
e uma afronta à cidadania. É compactuar com o oportunismo das milícias
de ódio. É aceitar que nudez e pornografia são o mesmo. É destruir a
ideia do que é uma exposição de arte. E é, principalmente, abdicar do
dever ético de resistir ao obscurantismo. Do mesmo modo, foi abjeta a
decisão do Santander Cultural de encerrar a exposição
Queermuseu depois dos ataques.
Os oportunistas e seu projeto de poder vencem e o
pior acontece pelas concessões e recuos de instituições que têm a
obrigação de resistir
Que uma turba incitada por milícias de ódio ataque exposições de arte
é lamentável. Mas que as instituições se dobrem a elas é ainda pior. A
resistência é necessária justamente quando é mais difícil resistir. É
pelas fissuras que se abrem, pelas concessões que são feitas, pelos
recuos estratégicos que os oportunistas e seu projeto de poder vencem e o
pior acontece. Também isso a história já mostrou. Não é hora de se
dobrar. É hora de riscar o chão e resistir.
Por que a arte e os artistas? Esta é uma pergunta interessante. Mesmo
que isso não seja óbvio para todos, é a arte que expande a nossa
consciência mais do que qualquer outra experiência, justamente por
deslocar o lugar do real. Ao fazer isso, ela amplia a nossa capacidade
de enxergar além do óbvio – e além do que nos é dado a ver. Não há nada
mais perigoso para a manutenção dos privilégios e do controle de poucos
sobre muitos do que a arte.
A arte é o além do mundo que, depois de nos tirar do lugar, nos
devolve ao lugar além de nós mesmos. Somos, a partir de cada
experiência, nós e além de nós. Esta é uma vivência transgressora e à
prova de manipulações. E esta é uma vivência profundamente humana, como
mostram as pinturas encontradas nas cavernas deixadas por nossos
ancestrais pré-históricos. Por isso não é por acaso que regimes de
opressão começaram com ataques contra a arte e os artistas.
Não há nada mais perigoso para a manutenção dos privilégios e do controle de poucos sobre muitos do que a arte
Ao literalizar a arte, interpretando o que é representação como
realidade factual, assassina-se a arte. Quando Salvador Dalí faz um
relógio derretido em uma paisagem de sonho, ele não está afirmando que
relógios derretidos existem daquela maneira nem paisagens como aquela
podem ser vistas no mundo de fora, mas está invocando outras realidades
que nos habitam e que vão provocar reflexões diferentes em cada pessoa.
Literalizar a arte é uma monstruosidade que tem sido cometida contra
obras e artistas desde que o
cotidiano de exceção se instalou no Brasil.
O outro motivo é mais prosaico. Artistas podem ser muito populares e
influenciadores do momento político. A admiração pela obra seguidamente é
transferida para a pessoa. E por isso essa pessoa, quando fala e opina,
é ouvida. É nesta chave que pode ser compreendida a tentativa de
destruição de
Caetano Veloso, acusando-o de pedofilia por ter tido relações sexuais com sua mulher, Paula Lavigne, quando ela tinha 13 anos.
Essa história é conhecida há décadas, pela voz da própria Paula. Mas
só agora despontou colada a uma acusação de pedofilia. Caetano Veloso é
um dos artistas que mais se posiciona politicamente no Brasil atual.
Recentemente, foi Paula Lavigne que
liderou uma reação dos artistas
a um dos ataques de Temer e da bancada ruralista contra a floresta
amazônica. Minar a influência de ambos, assim como a sua vontade de se
posicionar e manifestar-se por medo de mais ataques, é uma estratégia.
Afinal, quem ouviria a opinião política ou as denúncias feitas por um
“pedófilo”? Por mais que se lute, e poucos têm tantas condições de
resistir como Caetano Veloso e Paula Lavigne, uma acusação deste porte
costuma deixar marcas internas.
6) Quem são os políticos e as religiões que se aliam aos fabricantes de pedófilos com o olhar fincado em 2018?
Quando o momento mais agudo da disputa passar, se passar, haverá
muitos mortos pelo caminho. Em especial os invisíveis, aqueles que terão
medo de tocar nos próprios filhos pelo temor de serem acusados de
pedofilia, os professores que optarão por livros sem menções à
sexualidade para não correrem o risco de serem linchados por pais
enlouquecidos e demitidos por diretores pusilânimes, as pessoas que cada
vez mais têm medo de se contrapor à turba, os artistas que preferirão
não fazer. E os que deixarão o Brasil por não suportar os movimentos
brasileiros livres de inteligência ou temerem por sua vida diante dos
odiadores. As marcas invisíveis, mas que agem sobre as funduras de cada
um, são as piores e as mais difíceis de serem superadas.
Quando a gente via no cinema as turbas enlouquecidas assistindo às
execuções medievais como se fossem uma festa, gritando por mais sangue,
mais sofrimento, mais mortes, era possível pensar que algo assim já não
seria possível depois de tantos séculos. Mas mesmo que as fogueiras
(ainda) não tenham sido acesas, o que se vive hoje no Brasil é muito
semelhante.
Os pedófilos de hoje são as bruxas de ontem. E são tão pedófilos quanto as bruxas eram bruxas
Os pedófilos de hoje são as bruxas de ontem. E são tão pedófilos
quanto as bruxas eram bruxas. E as fogueiras começam na internet, mas se
alastram pela vida. Há muitas formas de destruir pessoas. A crueldade é
sempre criativa. E as milícias já deixaram um rastro de devastação.
Vale tudo para cumprir o propósito de limpar o campo político para 2018.
Para isso, contam menos com a ala conservadora da Igreja Católica e
mais com parte das igrejas pentecostais e neopentecostais, com o
fenômeno que se pode chamar de “fundamentalismo evangélico à brasileira”
e sua crescente influência política e também partidária. Quem acompanha
grupos de
WhatsApp
dos fieis fundamentalistas recebe dia após dia vídeos de pastores
falando contra a arte e a pedofilia. A impressão é que o Brasil virou
Sodoma e Gomorra e que um pedófilo saltará sobre seu filho, neto ou
sobrinho assim que abrir a porta da casa. Grande parte destas pessoas – e
isso não é culpa delas – jamais teve acesso a um museu ou a uma
exposição de arte.
As articulações que estão sendo feitas para 2018 são cada vez mais
fascinantes, não fossem assustadoras. Na apresentação do artista Wagner
Schwartz no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), realizada em 26 de
setembro, o coreógrafo fazia uma interpretação de
Bicho, uma
obra viva de Lygia Clark, constituída por uma série de esculturas com
dobradiças que permite que as pessoas saiam do lugar de espectadoras
passivas e se tornem parte ativa da obra. Nesta leitura de
Bicho,
que resultou em ataques de ódio, o coreógrafo, nu e vulnerável, podia
ser tocado e colocado em qualquer posição pela plateia. Um vídeo
divulgado pela internet mostrando uma criança tocando o performer,
devidamente acompanhada por sua mãe, foi o suficiente para protestos de
ódio. O artista foi chamado de “pedófilo” – e o museu foi acusado de
incentivar a pedofilia.
Observe bem os dois políticos que se alçaram a
protetores das crianças brasileiras ameaçadas pela arte: João Doria
(PSDB) e Jair Bolsonaro (PSC)
Vale a pena observar quem foram os dois candidatos a presidenciáveis
que se manifestaram por meio de vídeos divulgados na internet:
João Doria (PSDB) e
Jair Bolsonaro
(PSC). Doria, que gosta de posar como culto e cidadão do mundo, mostrou
mais uma vez até onde pode chegar em sua luta pelo poder. Classificou a
coreografia como “cena libidinosa”. Afirmou que a performance “fere o
Estatuto da Criança e do Adolescente e, ao ferir, ele está cometendo uma
impropriedade, uma ilegalidade, e deve ser imediatamente retirado, além
de condenado”. E aplicou o bordão: “Tudo tem limites!”.
Doria, o protetor das crianças brasileiras, dias atrás anunciou (e depois das críticas recuou momentaneamente) que incluiria um
“alimento” feito com produtos próximos do vencimento na merenda escolar das crianças de São Paulo.
Jair Bolsonaro, capitão da reserva do Exército e em segundo lugar nas
pesquisas de intenção de voto para 2018, vociferou: “É a pedofilia!”.
E, em seguida: “Canalhas! Mil vez canalhas! A hora de vocês está
chegando!”. Justamente ele, que não se cansa de repetir que o coronel
Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos assassinos da ditadura, é o seu
herói.
Ustra, apenas para lembrar de um episódio, levou os filhos de Amélia
Teles, presa nos porões do regime, para que vissem a mãe torturada.
Amelinha, como é mais conhecida, estava nua, vomitada e urinada. Seus
filhos tinham quatro e cinco anos. A menina perguntou: “Mãe, por que
você está azul?”. A mãe estava azul por causa dos choques elétricos
aplicados em todo o seu corpo e também nos genitais. Este é o farol de
Bolsonaro, o protetor das crianças brasileiras.
7) Como parte do empresariado nacional se articula com os ataques à arte enquanto apoia o retrocesso em nome do lucro?
Nenhuma distopia foi capaz de prever o Brasil atual. Parte da
explicação pode ser encontrada no artigo de Flávio Rocha, presidente do
Riachuelo, um dos principais grupos do setor têxtil do país, e
vice-presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Varejo (IDV),
publicado
na página de Opinião do principal jornal brasileiro,
em 22 de outubro. No texto, intitulado “O comunista está nu”, o
empresário ressuscita a ameaça do comunismo, discurso tão presente nos
dias que antecederam o golpe civil-militar de 1964, que mergulhou o
Brasil numa ditadura que durou 21 anos. O empresário escreveu este
texto, vale lembrar, num Brasil tão à direita que até a esquerda foi
deslocada para o centro. Diz este expoente da indústria nacional:
“O movimento comunista vem construindo um caminho que, embora
sinuoso, leva ao mesmo destino: a ditadura do proletariado exaltada pelo
marxismo. (...) Nas últimas semanas assistimos a mais um capítulo dessa
revolução tão dissimulada e subliminar quanto insidiosa. Duas
exposições de arte estiveram no centro das atenções da mídia ao
promoverem o contato de crianças com quadros eróticos e a exibição de um
corpo nu, tudo inadequado para a faixa etária. (...) São todos tópicos
da mesma cartilha, que visa à hegemonia cultural como meio de chegar ao
comunismo. Ante tal estratégia, Lênin e companhia parecem um tanto
ingênuos. À imensa maioria dos brasileiros que não compactua com
ditaduras de qualquer cor, resta zelar pelos valores de nossa
sociedade”.
A indigência intelectual de uma parcela significativa da elite econômica brasileira só não é maior do que o seu oportunismo
A indigência intelectual de uma parcela significativa da elite
econômica brasileira só não é maior do que o seu oportunismo. É também
parte da explicação da face mais atrasada do Brasil. É ainda um
constrangimento, talvez uma falha cognitiva. Mas certo tipo de
empresário está aí, pontificando em arena nobre. Sem esquecer jamais que
a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) de Paulo Skaf
apoiou diretamente os movimentos que lideraram as manifestações pelo
impeachment de Dilma Rousseff , tornando-se uma das principais
responsáveis pela atual configuração do governo corrupto que está no
poder.
Há algo interessante sobre Flávio Rocha, esse personagem amigo de João Doria e, como o prefeito de São Paulo, apoiado pelo MBL.
Como mostrou reportagem da Repórter Brasil,
uma das fontes sobre trabalho escravo mais respeitadas do país, o grupo
Riachuelo tem sido acusado nos últimos anos por abusos físicos e
psicológicos de trabalhadores. Flávio Rocha, como já demonstrou, é um
dos interessados em “flexibilizar” a legislação e a fiscalização. Para
isso, conta com o apoio do MBL, que chegou a convocar um protesto contra
o Ministério Público do Trabalho em Natal, no Rio Grande do Norte.
Em 16 de outubro, o governo Temer publicou uma portaria, claramente
inconstitucional, que reduz os casos que podem ser enquadrados em
trabalho escravo. O problema é gravíssimo no Brasil, que ainda convive
com situações de escravidão contemporânea. Hoje,
a portaria está temporariamente cassada por liminar concedida pela ministra Rosa Weber,
do Supremo Tribunal Federal, a pedido do partido Rede Sustentabilidade.
Restringir o combate à escravidão foi parte do pagamento de Michel
Temer aos deputados que o absolveram na semana passada e às oligarquias
que representam. Estes “liberais” querem voltar a escravizar livremente.
E estão conseguindo.
Mas, claro, o problema do Brasil são os pedófilos em museus. E, como o
presidente do grupo Riachuelo tem a gentileza de nos alertar, a volta
dos comunistas que comem criancinhas.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista