sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Enquanto Temer escapava de novo, 'liberais' tentavam cancelar palestra

Enquanto Temer escapava de novo, 'liberais' tentavam cancelar palestra - 03/11/2017 - Vladimir Safatle - Colunistas - Folha de S.Paulo



Enquanto Temer escapava de novo, 'liberais' tentavam cancelar palestra













Nos próximos dias 7, 8 e 9 de novembro, o Sesc Pompeia abrigará um simpósio internacional intitulado "Os Fins da Democracia: Estratégias Populistas, Ceticismo sobre a Democracia e a Busca pela Soberania Popular".





Resultado de uma associação entre a Universidade da Califórnia -
Berkeley e a Universidade de São Paulo, através de seu Departamento de
Filosofia, o seminário é fruto das ações de um consórcio internacional
composto por acadêmicos dos mais diversos países (EUA, Brasil, Chile,
Turquia, França, Argentina, Alemanha, Itália, entre outros) dispostos a
discutir e pensar temas centrais para a compreensão dos desafios
imanentes a nossas sociedades contemporâneas.





O evento é um exemplo bem sucedido de recusa da universidade em se
acomodar à condição de "gueto de luxo" (e não foi por outra razão que
decidimos levar o simpósio para fora do campus da USP) e de
internacionalização da universidade brasileira.





No entanto, neste exato momento, circula uma petição
para o cancelamento do simpósio, assinada por centenas de milhares de
pessoas (além de vários robôs, como é de praxe). O motivo principal é a
presença de Judith Butler entre os organizadores. Notem que a petição
não conclama a manifestação na porta do Sesc, ela pede o puro e simples
cancelamento do evento.





Entre os signatários e estimuladores estão vários movimentos que se
dizem "liberais". Bem, para um país onde, até pouco tempo, era possível
ser liberal e escravocrata, não é estranho descobrir liberais que não
levam a sério princípios elementares de liberdade de expressão e
pensamento. Mais uma prova de que "liberal brasileiro" é como, segundo
Marx (não Karl, mas Groucho), "inteligência militar": uma contradição em
termos.





Mas por que Judith Butler não deveria falar? Por acaso ela elogiou
torturador, afirmou que só não estuprava uma mulher porque ela não
merecia, justificou terrorismo de Estado ou comparou negros a animais
que se pesam por arroba? Não, até porque nada disso é realmente um
problema para os assinantes de tal petição.





O problema é ela discutir a naturalidade de identidades de gênero,
lembrar —à sua maneira—, que a anatomia não é o destino, auxiliar a
mudança de percepção social em relação àqueles que não encontram lugar
em um binarismo estrito.





Agora, nossas famílias serão destruídas (como se elas não se destruíssem
sozinhas), nossas crianças serão pervertidas (como se as crianças já
não fossem, como lembrava Freud, perversos polimorfos) e teremos que
conviver com pessoas que não temerão afirmar suas formas de gozo
(suprema afronta).





A primeira reação diante de tal disparate foi ver nela uma clássica manobra diversionista.





Todos esses grupos e indivíduos saíram às ruas para "protestar contra a
corrupção" e prometer um país em franco crescimento, reconciliado com os
"mercados" após o impeachment do antigo governo.





E eis que no dia em que Temer, governando sob os escombros da
pauperização social, escapava de seu segundo processo graças à compra de
votos no Congresso Nacional, todos eles se mobilizam novamente para...
pedir o cancelamento de uma palestra de Judith Butler. Fantástico, não?





Ou seja, diante da clara expressão de terem levado o Brasil a um
embuste, de terem zombado do povo brasileiro quando gritavam contra a
corrupção, eles agora procuram se associar à nata do conservadorismo
religioso para jogar uma cortina de fumaça e apontar o dedo contra
intelectuais e artistas.





Mas então veio a segunda reação, pois, mesmo que o diversionismo seja real, ele não explica tudo.





De fato, uma sociedade na qual sujeitos não se submetem mais ao controle
de suas expressões de gozo e de identidade, uma sociedade na qual a
visibilidade dos corpos e do desejo não se dobra mais à culpa tem algo
de intolerável para alguns.





A consciência da contingência de nossas normas sociais e a quebra da
ilusão de que a natureza fundamenta nossas formas de vida: não é este o
início de toda liberdade efetiva?





Nesse sentido, estas pessoas sabem muito bem o que fazem. Pois elas
sabem que a paralisia da força de transformação nos modos de existência é
a chave para a preservação das estruturas macroinstitucionais, mesmo
que estas estejam degradadas.





De toda forma, gostaria de aproveitar essa oportunidade e agradecer a
eles, do fundo do coração. O que mais poderíamos querer como prova da
pertinência de discutir "os fins da democracia" do que uma manifestação,
vinda dos setores mais obscurantistas da sociedade e suas redes
internacionais, contra a própria realização de nosso simpósio?





Aqueles que se compraziam em dizer que a universidade vive de costas
para a sociedade, que ela perdeu toda a relevância e é habitada por
nefelibatas, deveriam nuançar suas avaliações.



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