segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Inspirado nos EUA, Bolsonaro adota tática de troll: testar limites para ganhar visibilidade, diz filósofo


Inspirado nos EUA, Bolsonaro adota tática de troll: testar limites para ganhar visibilidade, diz filósofo


Inspirados pela extrema direita americana, o presidente Jair Bolsonaro e seu entorno adotam estratégia de comunicação dos trolls, os provocadores da internet, afirma Rodrigo Nunes, professor de Filosofia Moderna e Contemporânea na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Em entrevista à BBC News Brasil, ele diz que foi justamente assim que o político chegou aonde chegou.
"Você perguntava para as pessoas qual era o atrativo dele e a conversa era sempre 'Ah, ele fala o que todo mundo pensa'. Aí você apontava para alguma coisa que ele tinha dito, dizia que era grave, e recebia como resposta: 'Ah não, mas ele está só brincando'", afirma. "Ou seja, é a figura que ao mesmo tempo fala o que todo mundo está pensando e está só brincando, a figura do troll, justamente, que está sempre nesse jogo dúbio, entre o que é brincadeira e o que é sério."
"Ele está sempre introduzindo temas que são 'polêmicos' — que na verdade são comentários racistas, homofóbicos ou machistas etc. —, e a reação [de indignação] provocada atrai atenção para ele, lhe dá visibilidade", avalia.
Para ele, antes mesmo da consagração da chamada alt-right americana, Bolsonaro já adotava a tática em sua carreira como parlamentar, baseado em uma "compreensão instintiva que ele tinha de sua posição política na época, totalmente periférica — ele era um político completamente sem importância, cuja única visibilidade vinha disso."
O processo, porém, se aprofunda no período de transição entre a campanha presidencial e sua ascensão ao cargo. "Você tem um grupo de pessoas que a gente poderia descrever como sendo o núcleo ideológico do bolsonarismo, os formuladores da tentativa de dar uma identidade própria ao que seria o bolsonarismo, que a partir de um determinado momento começam a adotar um linguajar, uma série de pontos discursivos e de traços que são claramente tomados da alt-right americana."
Nesta semana, Bolsonaro ofendeu a jornalista Patrícia Campos Mello, do jornal Folha de S.Paulo, ao dizer que a repórter "queria dar o furo a qualquer preço contra mim".
O ataque foi feito após um ex-funcionário de uma agência de disparos de mensagens em massa por WhatsApp dizer, sem apresentar qualquer prova, que a jornalista teria tentado "se insinuar" sexualmente para ele em busca de informações. A declaração ocorreu na semana passada, durante depoimento do ex-funcionário à CPMI das Fake News no Congresso, e foi endossada na ocasião também pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente.
Autor do livro Organisation of the Organisationless: Collective Action after Networks ("Organização dos sem organização, ação coletiva após as redes", em tradução livre), Nunes rebate, em parte, a teoria de que declarações controversas de membros do governo sejam tentativa de criar uma "cortina de fumaça" para ocultar ações do Planalto.
"É possível identificar no timing de algumas declarações, de pronunciamentos, um interesse em desviar o rumo da conversa. No conteúdo, por outro lado, para você dizer que a declaração da ministra [da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] Damares Alves, por exemplo, de meninos vestirem azul e meninas, rosa, é uma cortina de fumaça para disfarçar a reforma da Previdência, você precisa acreditar que esse conservadorismo de valores seria uma característica acidental, secundária, do bolsonarismo. E eu acho que não é."
Segundo ele, é exatamente esse tipo de declaração o que mantém o núcleo duro do bolsonarismo fidelizados. "De certa maneira, se a gente entende o bolsonarismo como a tentativa de consolidar esse eleitorado conservador como sendo uma força política, um capital político de monopólio da família Bolsonaro, a gente pode dizer inclusive que é a reforma da Previdência que é inteiramente acidental para eles. Na verdade, eles não ligam muito para a economia."
Seu novo livro, Beyond the Horizontal - Rethinking the Question of Organisation ("Além do horizontal - repensando a questão da organização", em tradução livre), será publicado neste ano pela editora britânica Verso. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Em que se baseia a estratégia de comunicação do governo Jair Bolsonaro?
Rodrigo Nunes - Essa estratégia já não é de hoje, acompanhou toda a campanha do Bolsonaro à Presidência e caracterizava a atuação dele como parlamentar, que no final das contas era justamente uma atuação muito mais midiática do que propriamente parlamentar — a gente sabe que, como legislador dentro do Congresso, a participação dele sempre foi pífia.
Ela se assemelha bastante às estratégias comunicativas da extrema direita americana, da chamada alt-right, uma constelação de grupos que ficaram mais visíveis durante a campanha de Donald Trump à Presidência. E tem essa característica muito marcante de explorar a tática que, na linguagem da internet, se chama edgelord ["o senhor do limite", em tradução livre], a figura que está sempre forçando o limite daquilo que pode ser dito numa situação qualquer.
Ele está sempre introduzindo temas que são "polêmicos" — que na verdade são comentários racistas, homofóbicos ou machistas etc. —, e a reação [de indignação] provocada atrai atenção para ele, lhe dá visibilidade. Eventualmente, se a reação [às declarações] for muito negativa, ele sempre pode dar um passo atrás e dizer: "Eu estava brincando, as pessoas não sabem mais brincar, a gente vive numa cultura que cerceia a liberdade de expressão".
Se você olhar a performance midiática do Bolsonaro ao longo de toda a carreira dele, verá que é sempre mais ou menos isso. E acho que ela vem de uma compreensão instintiva que ele tinha de sua posição política na época, totalmente periférica — ele era um político completamente sem importância, cuja única visibilidade vinha disso. Mas esse processo se torna muito claro durante o período de transição [da campanha para o governo].
Você tem um grupo de pessoas que a gente poderia descrever como sendo o núcleo ideológico do bolsonarismo, os formuladores da tentativa de dar uma identidade própria ao que seria o bolsonarismo (os filhos do presidente, os amigos dele, o Filipe Martins, que é assessor especial da Presidência, e em alguma medida o Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores), que a partir de um determinado momento começam a adotar um linguajar, uma série de pontos discursivos e de traços que são claramente tomados da alt-right americana.
Dois exemplos muito claros disso, que são meio que ridículos em geral e são particularmente ridículos num país periférico fora da Europa como o Brasil, são a adoção de um imaginário das Cruzadas, que tem o objetivo de instalar no centro do debate político a narrativa de "Nós, os conservadores, a extrema direita, estamos defendendo os valores judaico-cristãos, nós estamos defendendo o Ocidente contra a ameaça religiosa do islamismo e a ameaça cultural do feminismo, da população LGBT, do antirracismo etc."; e dentro dessa recuperação você tem esse slogan "Deus Vult", assim quis Deus — que, na verdade, é um latim meio capenga.

BBC News Brasil - O jeito como Bolsonaro se comunica, primeiro como parlamentar, depois como candidato e presidente evolui, então, junto com a sua principal referência, a alt-right americana?
Nunes - Eu acho que sim. Não é que ele tenha se tornado uma figura da alt-right, até porque ela tem alguns traços característicos que são difíceis de traduzir para outros contextos (talvez o mais importante deles seja o etnonacionalismo, a ideia de criar Estados monoétnicos, uma nação para cada etnia), mas certamente o entorno dele está aprendendo com aquilo que a alt-right vem fazendo.
Isso acontece em boa parte porque é preciso dar um pouco mais de consistência ao que seria ideologicamente o bolsonarismo — até então, ele era, e ainda é, uma coisa muito presa à figura do Bolsonaro. O bolsonarismo é aquilo que ele diz em qualquer momento, as preferências dele, aquilo que ele pensa em uma hora qualquer. E eles entendem que é necessário tentar criar alguma coisa mais consistente, mais completa.
Você pode dizer que, em termos de perfil político, as medidas, ou o tipo de medida autoritária, que eles vão considerar têm muito mais a ver, por exemplo, com uma figura como o [premiê] Viktor Orbán, na Hungria. Para a comunicação, no entanto, o modelo que eles vão buscar é o da alt-right. E a gente entende por que: é um modelo mais jovem, mais descolado, mais irônico que usa muito bem essa linguagem da internet, o assumir essa posição do troll [provocador], da pessoa que está falando a verdade, mas falando a verdade para tirar sarro de todo mundo.
Essa foi justamente a maneira como Bolsonaro chegou aonde chegou. Você perguntava para as pessoas qual era o atrativo dele e a conversa era sempre "Ah, ele fala o que todo mundo pensa". Aí você apontava para alguma coisa que ele tinha dito, dizia que era grave, e recebia como resposta: "Ah não, mas ele está só brincando". Ou seja, é a figura que ao mesmo tempo fala o que todo mundo está pensando e está só brincando, a figura do troll, justamente, que está sempre nesse jogo dúbio, entre o que é brincadeira e o que é sério.
BBC News Brasil - Por que essa estratégia de comunicação começou a ser mais eficaz ou mais utilizada nos últimos anos? O que mudou, na última década, para que ela passasse a ser tão bem-sucedida?
Nunes - Eu acho que tem duas coisas principais. Uma é a transformação do ambiente informacional em que a gente se move hoje em dia. Com a internet, você tem uma revolução do ponto de vista editorial, porque os custos de publicar qualquer coisa caem drasticamente, qualquer um pode escrever e publicar qualquer coisa na internet a custo praticamente zero. Isso é radicalizado ainda mais pelo advento das redes sociais. Você entra ali para manter contato com os seus parentes que estão longe, e agora você tem à sua disposição um espaço para expor suas opiniões sobre qualquer coisa.
Aí você soma a isso o fato de que essas plataformas, que são monopólios mundiais como Facebook e Twitter, começam a canalizar cada vez mais as verbas de publicidade na internet, e o jornalismo passa a ser feito para funcionar nas redes sociais. Ora, para funcionar nas redes sociais, o que você precisa é de manchetes de impacto, que provoquem engajamento, e a melhor maneira de fazer isso vai ser sempre com declarações polêmicas, entrevistas com figuras "polêmicas" — que na verdade são figuras extremas e cada vez mais extremas.
Então você cria praticamente uma necessidade, com essa transformação da economia da informação, que faz com que agora, para uma matéria ser bem-sucedida e render dinheiro para a empresa de comunicação, ela precisa atrair cliques. Isso cria uma economia que favorece ou depende do sensacionalismo. E, se você está respondendo cada vez mais a um tipo de conteúdo, os algoritmos dessas plataformas (que querem aumentar o seu engajamento) vão mandar cada vez mais esse tipo de conteúdo.
Por cima disso tudo, temos o fato de que a grande maioria da humanidade não tem uma educação básica em como funciona a internet, para saber distinguir fontes confiáveis e não confiáveis. O William James, um filósofo americano, compara o conhecimento a um sistema de crédito: a gente não verificou pessoalmente todas as informações que acredita que sejam verdadeiras, mas acredita que outras pessoas checaram. O que temos hoje em dia é um sistema de crédito que está cheio de moeda falsa circulando, e ninguém sabe mais direito no que pode acreditar ou não. A internet produziu isso.
Então você tem essa transformação na economia da informação e soma a isso uma crise de legitimidade que se abre com a crise financeira de 2008. O que acontece na resposta da maioria dos governos do mundo à crise? Todo mundo sabe onde ela começou, que foi provocada por uma bolha especulativa no mercado financeiro, causada por uma desregulamentação progressiva que começa na década de 1980 e se acentua na década de 1990. O que aconteceu depois dessa crise? O sistema responsável por ela não foi modificado. Os Estados assumem dívidas privadas como se fossem dívidas soberanas e transferem isso para os cidadãos na forma de cortes de serviços sociais etc. — são as chamadas políticas de austeridade.
O conjunto de respostas à crise de 2008 deixa absolutamente claro que a imensa maioria dos governos do mundo está completamente no bolso do mercado financeiro e de interesses corporativos. Isso abre uma crise de legitimidade muito grande em todas as grandes democracias do mundo. As pessoas começam a pensar: "Bom, já que o centro do espectro se demonstrou uma falácia, o que está fora desse espectro?".
No início da década, o vento parecia soprar na direção contrária, você tem a Primavera Árabe, o Indignados [na Espanha], o Occupy [nos EUA], os protestos no Brasil, demandas por democratização e igualdade econômica. Elas não avançam por diversos motivos e, a partir da segunda metade da década, o vento muda de direção. Vamos ver, então, o que a extrema direita tem a nos oferecer.

BBC News Brasil - Você enxerga o esgotamento desse estilo de comunicação no curto prazo?
Nunes - Eu temo que não. Eu acho que algo que certamente está mudando, mas ainda muito devagar, é que as pessoas, especialmente na esquerda, estão se tornando mais atentas e sensíveis ao mecanismo desse tipo de comunicação. E quando você entende o mecanismo, você fica um pouco mais vacinado. Mas é uma transformação muito lenta ainda, e dificilmente vai atingir os nossos pais, os nossos tios tão cedo.
Uma coisa que pode fazer uma diferença no Brasil no médio prazo é simplesmente a desilusão com o governo Bolsonaro e seu entorno. Não entre o eleitorado que pode descrito como bolsonarista — cerca de 15% da população —, mas entre o eleitor que é mais pragmático, que no fim das contas está preocupado não em saber se menino vai vestir azul e menina, rosa, mas se o governo vai resolver os seus problemas, melhorar a sua vida. E a tendência no médio prazo é uma desilusão com a figura do Bolsonaro.
Se essa desilusão vai vacinar as pessoas contra outras figuras como o Bolsonaro, aí é uma outra questão. O eleitor brasileiro é essa figura singular cuja cabeça basicamente oscila entre dois juízos que são incompatíveis entre si: "eles são todos iguais" e "esse aqui é diferente". Então é bem possível que nas próximas eleições esteja todo mundo desiludido com o Bolsonaro e dizendo "eles são todos iguais", e aí apareça alguém e boa parte do eleitorado diga "mas esse é diferente" e vote nele.
BBC News Brasil - A cada nova declaração polêmica do presidente da República ou algum dos integrantes do governo, parte dos cientistas políticos e comentaristas levanta a possibilidade de uma 'cortina de fumaça', uma estratégia de tirar a atenção de determinados assuntos 'mais sérios' por meio de controvérsias. Como você avalia isso? O governo pratica, de fato, essa estratégia?
Nunes - Sim e não. Eu acho que, sim, é possível identificar no timing de algumas declarações, de pronunciamentos, um interesse em desviar o rumo da conversa. No conteúdo, por outro lado, para você dizer que a declaração da ministra [da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] Damares Alves, por exemplo, de meninos vestirem azul e meninas, rosa, é uma cortina de fumaça para disfarçar a reforma da Previdência, você precisa acreditar que esse conservadorismo de valores seria uma característica acidental, secundária, do bolsonarismo. E eu acho que não é.
Pelo contrário, esse tipo de declaração, que pode parecer meio absurda, meio ridícula, é exatamente o que mantém esses 15% do núcleo duro do bolsonarismo fidelizados. Eles querem justamente um presidente e ministros que estejam dando declarações desse tipo, que estejam fazendo piadas homofóbicas, dando declarações sexistas etc. Isso faz parte da identificação deles e não é absolutamente acidental — a identidade do bolsonarismo se constrói aí.
De certa maneira, se a gente entende o bolsonarismo como a tentativa de consolidar esse eleitorado conservador como sendo uma força política, um capital político de monopólio da família Bolsonaro, a gente pode dizer inclusive que é a reforma da Previdência que é inteiramente acidental para eles. Na verdade, eles não ligam muito para a economia. Eles ligam para a economia na medida em que eles precisam manter o mercado, a Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] etc. felizes para que eles não sejam ameaçados por essas forças. Mas no final das contas, eu acho que a economia pra família Bolsonaro tanto faz como tanto fez.
O que interessa para eles é consolidar o seu capital político, e a maneira como eles consolidam o seu capital político é no campo dito dos costumes, das ditas guerras culturais. O capital político deles foi construído. E é, sobretudo, aí que eles vão disputar. Então, para eles, isso não é absolutamente cortina de fumaça, isso é parte do projeto.
BBC News Brasil - Como acredita que a oposição (ou a esquerda) vem fazendo frente a essa estratégia? A oposição a Bolsonaro tem uma estratégia de comunicação clara?
Nunes - Eu acho sinceramente que não, nem de comunicação, nem de rigorosamente nada, nesse momento, acho que a esquerda está completamente perdida. Do ponto de vista da comunicação, eu acho que realmente a esquerda, pensando aqui sobretudo o PT e os petistas, levou muito tempo para entender o jogo — muita gente ainda não entendeu.
O problema da esquerda nesse momento é duplo. Do ponto de vista da comunicação, você tem uma radicalização identitária que vai funcionar para fidelizar uma base que já existe e crescer marginalmente em torno dela, porque você cria essa identidade de "somos nós contra todo mundo lá fora", "ninguém solta a mão de ninguém", "quem está do seu lado na trincheira importa mais que tudo", essas frases que se tornaram populares nos últimos anos. Por outro lado, você perde capacidade de comunicação com grande parte da população, porque, no final das contas, a grande maioria das pessoas não está interessada se você é de esquerda ou de direita, mas sim no que você tem a oferecer, de que maneira pode resolver os seus problemas. Então aí tem um nó que a esquerda deu em si mesma, do qual ela não consegue sair.
E você tem um outro nó que é uma falta completa de clareza programática. O que a esquerda quer, neste momento? A esquerda quer voltar ao poder para tentar reeditar o pacto lulista do início dos anos 2000. Mas é possível fazer isso sem o boom das commodities, depois que o mercado e a Fiesp decidiram que não precisam mais do PT? E quais seriam os custos de tentar fazer isso agora? É isso que a gente não tem nenhuma ideia, porque não há nem sequer uma discussão sobre isso na esquerda. Normalmente, quando as pessoas falam que a esquerda não consegue mais pensar um projeto de Brasil, não tem mais uma visão de futuro, dizem que é porque a esquerda hoje está perdida em pautas minoritárias — ela fala no direito das mulheres, no direito dos negros, dos indígenas, dos gays, das lésbicas, das pessoas trans, mas não fala mais do universal, do trabalhador.
Eu acho, na verdade, que essa explicação deixa a coisa muito barata para a esquerda, que as pessoas estão invertendo a ordem da doença e do sintoma. A esquerda hoje só consegue falar dessas pautas ditas minoritárias, dessas questões de setores particulares da sociedade, porque ela não tem nada a dizer sobre a sociedade como um todo. E a maneira que ela tem de seguir falando alguma coisa, enquanto se mantém absolutamente quieta sobre qual efetivamente é o seu projeto de país, é falar dessas pautas. Mas ela está falando só dessas pautas para fugir de um assunto que se tornou completamente desconfortável, que é: se a esquerda voltasse ao poder amanhã, o que ela faria, o que teria para oferecer?

BBC News Brasil - Parte dessa dificuldade parece estar associada ao fato de que as demandas do eleitorado não se encaixam mais no eixo tradicional de esquerda e direita, e a nova direita parece mais preparada para responder a suas aflições. Como lidar com isso?
Nunes - É muito complicado esse quadro que você descreve, justamente por causa disso, porque isso dá a medida do quanto a esquerda hoje está jogando em um território que já é da direita. A primeira coisa que não se pode fazer é descrever isso como uma coisa que aconteceu, simplesmente. Temos que pensar em quais foram as condições para essa transformação.
Em primeiro lugar, a condição de fundo é justamente o fato de que a globalização neoliberal produziu os seus maiores perdedores entre a base histórica dos grandes partidos social-democratas, sobretudo aquilo que no exterior se chama, de maneira ao mesmo tempo redundante e suspeita, de "classe trabalhadora branca". Foram esses os grupos que, na Europa e nos EUA, foram os mais prejudicados por ela. O fundo dessa transformação cultural é uma transformação econômica, que gera pobreza, penúria, desemprego, e essa sensação de ter sido deixado para trás pelas transformações que ocorrem nas décadas de 1990 e 2000.
Isso foi acompanhado pela ascensão, na década de 1990, por aquilo que a Nancy Fraser, filósofa americana, descreveu recentemente como neoliberalismo progressista, que foi aquilo que na época se chamou de terceira via, que é um neoliberalismo que é neoliberal na sua política distributiva (então, em termos gerais, ele tira dos pobres para dar para os ricos), mas do ponto de vista da política de reconhecimento ele é progressista, quer aproveitar esses processos de transformação que estão ocorrendo nos anos 1990 e 2000 para aumentar o reconhecimento, a inclusão, das mulheres, dos negros, dos gays e lésbicas etc. Aí você já tem, só nessa combinação histórica, um prato cheio para a extrema direita. Porque o argumento da extrema direita é sempre "você está perdendo porque eles estão ganhando". E o que vai mudar é quem são eles: as mulheres, os negros, os imigrantes, os gays. O discurso da extrema direita sempre desloca a explicação que seria estrutural para fulanizar a responsabilidade.
O que eu acho que a esquerda pode fazer é, em primeiro lugar, reconhecer a legitimidade do anseio ou das preocupações que se manifestam nessas pautas. A preocupação com os imigrantes é uma preocupação com a instabilidade econômica, com o choque de culturas no dia a dia. Você não pode tratar isso como se fosse simplesmente uma coisa de gente ignorante, ou como "uma coisa que vai ser superada". É preciso reconhecer que há uma série de preocupações legítimas.
O que se expressa no discurso de defesa da família, por exemplo? É um desejo de acolhimento, de proteção, de segurança. Você tem que dizer para as pessoas: "Olha, a gente quer que as pessoas estejam mais protegidas, mais seguras, mais acolhidas. Por isso, inclusive, que a gente quer garantir que o filho da sua vizinha, que é gay, ou que é trans, não apanhe. Porque a gente quer garantir a proteção da família para ele também, ou para duas pessoas do mesmo sexo que se amam".
É preciso encontrar quais são os pontos de contato do seu discurso com o discurso dessas pessoas e, a partir desse terreno comum, tentar construir uma coisa diferente, tentar mostrar para a pessoa: isso que você acha que é solução para esse problema, a gente acha que não é, na verdade isso só vai agravar o problema. E fazendo dessa outra maneira, a gente resolve o problema de uma maneira muito mais eficiente e para muito mais gente.
BBC News Brasil - A solução, então, é ouvir essas demandas, em vez de descartá-las?
Nunes - A reação frequente da esquerda quando se depara com pessoas que são sensíveis a esses temas — que são contra a imigração, ou o casamento gay, ou o aborto — é pegar um traço desses qualquer e dizer: "Taí um fascista, um conservador". Qual é o erro que a esquerda comete? Tem um erro epistemológico, digamos, e um erro prático, com consequências óbvias.
O erro epistemológico é: a esquerda está julgando o outro segundo a sua própria regra. É apenas para pessoas que têm identidades políticas muito definidas que a consistência dessas identidades importa. Uma pessoa de esquerda normalmente tem um pacote completo: é a favor de mais intervenção do Estado na economia, de taxar os mais ricos, e é a favor do aborto, do casamento gay, contra a transfobia etc. Claro que tem variações aí no meio, mas uma pessoa de esquerda tende a ser um pacote fechado, assim como uma pessoa de direita, conservadora.
Para a grande maioria das pessoas, porém, a própria identidade política não é uma questão tão importante. E, do ponto de vista de quem tem a identidade política definida, a forma como essas pessoas se posiciona é contraditória. Por exemplo, alguém que é totalmente a favor dos direitos LGBT e também do Estado mínimo; a favor da pena de morte, mas também da educação pública. Há coisas que parecem contraditórias para a gente, que julga a identidade das pessoas segundo a nossa regra, mas tem outras que são realmente contraditórias: eu sou a favor do Estado mínimo e sou a favor de educação e saúde públicas e de qualidade. A maioria das pessoas quer tudo. O ideal para a gente seria ter um Estado maravilhoso e não pagar imposto, mas infelizmente não dá. Só que, para uma pessoa que não parou para pensar sobre esses temas, se chegar alguém prometendo isso para ela, ela vai adorar.
O problema da esquerda está em, ao medir as pessoas segundo a sua própria régua, pensar que, se a pessoa acredita nisso, ou tem determinado elemento dentro do seu perfil político, ela está completamente do outro lado. E aí vem o problema prático. Com isso, evidentemente, a tendência é que você rechace essa pessoa completamente, corte completamente o diálogo com alguém com quem você não só teria condições de diálogo, porque haveria outros pontos de contato, mas também com quem você deveria conversar. Porque, infelizmente, a gente não tem fábricas de pessoas que nos permitam produzir os eleitores que gostaria que existissem, a gente tem que lidar com os eleitores que existem. E, enquanto você está dizendo "Aqui não tem lugar para você, vai procurar a sua turma", a direita, ou extrema direita, está lá do outro lado dizendo: "A gente acolhe você. Venha".

BBC News Brasil - Diante da polarização atual da política, há uma corrente que defende uma volta ao centro, ao realismo. Essa volta é possível, considerando o eleitorado atual? Qual é a solução: radicalizar ou voltar ao centro?
Nunes - Bom, a primeira coisa é: no mundo inteiro, as pessoas estão se tornando mais abertas a ideias, propostas, figuras, partidos, que até pouco tempo atrás seriam considerados como pertencendo aos extremos do espectro político — e a gente vê isso tanto à direita quanto à esquerda, embora a direita esteja sendo mais bem-sucedida nesse processo. Por que isso está acontecendo? Mesmo que a gente considere esse movimento em direção aos extremos irracional, ele possui causas que devem ser racionalmente identificáveis. As pessoas não enlouqueceram de uma hora para outra, elas começaram a procurar respostas nos extremos do espectro político porque o centro, que era aquele centro desenhado pela "oposição" entre neoliberalismo progressista e neoliberalismo conservador, entrou em uma crise de legitimidade muito grande após a crise de 2008.
Aqui no Brasil, isso se dá menos em termos econômicos e mais em termos políticos. Existe um modo de fazer política característico do presidencialismo de coalizão, do sistema partidário da Nova República, que sai do escândalo da Petrobras completamente desmoralizado. Você descobre que, no final das contas, não importava que PT e PSDB fossem inimigos figadais, na verdade estava todo mundo com a mão no cofre do Estado brasileiro.
Então o primeiro ponto é esse: é preciso ter muito cuidado ao falar em voltar ao centro, porque tem várias coisas que isso pode significar que simplesmente não são mais plausíveis. A gente não tem nenhuma perspectiva no horizonte de um novo ciclo de expansão capitalista — pelo contrário, a gente vê o próprio (jornal britânico) Financial Times dizer que tem um problema sério com o capitalismo hoje, que é um capitalismo cada vez mais de baixa produtividade, baseado apenas na extração de renda. Ou seja, há uma série de problemas, alguns novos, outros velhos, que não podem ser respondidos dentro daquele consenso político que existia nos anos 1990 e 2000.
O que a esquerda precisa fazer é radicalizar. Não radicalizar na identidade de esquerda — muito mais camisetas do Che Guevara, muito mais sandálias de couro, ninguém quer saber disso — nem tornar a identidade de esquerda cada vez mais exigente — "Você tem que usar os pronomes certos, ou falar as palavras certas, se não você vai ser cancelado imediatamente". O ponto em que a esquerda pode radicalizar hoje, o espaço político que sobrou para explorar, é a radicalização da pauta econômica, que é exatamente o que a gente vê com as duas experiências de esquerda mais bem-sucedidas nos últimos tempos — que foram, apesar da derrota nas eleições, o [Jeremy] Corbyn e agora o [Bernie] Sanders.
O Partido Trabalhista foi derrotado no Reino Unido no terreno do Brexit, em que talvez ele não tivesse como ganhar, mesmo. Mas a direção do partido vai continuar propondo o que o Corbyn propunha — porque a tendência é que se eleja [para a nova liderança do partido] um nome como o da [deputada] Rebecca Long-Bailey [aliada próxima de Corbyn] ou alguém na mesma linha. Mais importante que isso: não há nenhum Blairista [seguindo a linha do ex-primeiro-ministro e antigo líder da sigla, Tony Blair, de centro] concorrendo à liderança do partido, e isso é muito sintomático de uma mudança de fato.
O que o Corbyn propunha e o Sanders propõe agora são coisas que até a década de 1970, na verdade, não apenas eram propostas social-democratas perfeitamente comuns (não tinham nada de socialistas), como eram consenso inclusive com muita gente da direita, ou que se identificaria como conservador etc. E a resposta que as pessoas têm dado a isso é muito positiva, você pega as pesquisas de medição de popularidade das propostas, do manifesto do Partido Trabalhista britânico, e as pessoas reagem de maneira extremamente positiva às propostas econômicas.
As únicas soluções verdadeiras a essa altura são soluções extremas. E é isso, ou a esquerda assume que as soluções verdadeiras e, no final das contas, plausíveis, são soluções extremas, banca isso — e ao mesmo tempo deixa de ser burra e para de afugentar as pessoas — ou eu não vejo muito qual vai ser o lugar para a esquerda ocupar nesse contexto.
Me parece que a gente está numa encruzilhada histórica em que as opções serão essas: ou uma solução extrema de um lado ou uma solução extrema de outro; e me parece que um lado [a direita] já assumiu isso. Ou a esquerda ocupa o outro lado desse espectro, ou não vejo muito bem o que ela pode fazer. Porque se ela não puxar o cobertor na outra direção, o cobertor vai ficar onde está, e a esquerda vai ficar para o resto da história da humanidade, que tenderá a ser relativamente curto, jogando num terreno que pertence à direita

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Alvim errou a mão na trollagem nazi inspirada na direita dos EUA

Alvim errou a mão na trollagem nazi inspirada na direita dos EUA


Estratégia da alta-right é fomentar extremismo com ambiguidade entre verdade e ironia

Rodrigo Nunes, Folha de São Paulo (21/01/2020)

Autor considera que o ex-secretário de Cultura Roberto Alvim foi pego em flagrante fazendo um jogo de provocação que o núcleo ideológico do bolsonarismo aprendeu com a alt-right americana. Impedir que a extrema direita continue ganhando terreno exige parar de tratar os “excessos” como casos isolados e se recusar a permitir que ela continue jogando.

Há quem ainda se refira a Jair Bolsonaro e o núcleo ideológico que o cerca com palavras-Pilatos como “polêmico” e “controverso”. A ascensão e queda de Roberto Alvim indica, porém, que mesmo a classificação mais apropriada de “extrema direita” é imprecisa.
Desde suas técnicas de comunicação até cacoetes como a obsessão pelas Cruzadas e os gritinhos de “Deus vult!”, o modelo dos ideólogos bolsonaristas é a franja radical conhecida nos Estados Unidos como alt-right.
Uma constelação heterogênea de grupos e figuras públicas traficando um coquetel insalubre de supremacismo branco, misoginia e, sim, flertes com o nazismo, a alt-right ficou conhecida internacionalmente por seu engajamento na campanha presidencial de Donald Trump —em quem viu, mais do que um aliado, um veículo para propagar suas ideias.
Além das crenças extremas, a diferença da alt-right para o conservadorismo mainstream está em seu domínio instintivo da comunicação em tempos de redes sociais, clickbait e economia da atenção.
Como tantos outros, eles perceberam as possibilidades oferecidas por um ecossistema informacional em que qualquer um pode publicar qualquer coisa a quase nenhum custo, e fontes suspeitas são difíceis de distinguir das confiáveis; em que a caça por cliques privilegia manchetes sensacionalistas e frequentemente falsas; em que a busca dos algoritmos por engajamento favorece conteúdos extremos; e em que uma interpretação pusilânime do dever jornalístico de “ouvir os dois lados” contribui para dar valor de verdade a narrativas sem qualquer lastro nos fatos, transformando mentiras em “diferenças de opinião”.
Antes e melhor que muitos, no entanto, foi a alt-right quem descobriu as vantagens de assumir a posição de uma das figuras centrais da cultura contemporânea: o troll.
Embora a etimologia do termo seja duvidosa, o troll é tão ubíquo e fácil de reconhecer que a palavra já migrou para a vida offline. Ele é alguém que busca instigar reações fortes e parece se alimentar da própria capacidade de causar confrontos e expor os outros ao ridículo.

Pela Pátria, pelos Lulz

Embora a etimologia do termo seja duvidosa, o troll é tão ubíquo e fácil de reconhecer que a palavra já migrou para a vida offline. Ele é alguém que busca instigar reações fortes e parece se alimentar da própria capacidade de causar confrontos e expor os outros ao ridículo.
Embora seja hoje instrumentalizada para uma série de fins políticos e comerciais, na origem da trollagem como fenômeno cultural está uma ética que põe um humor iconoclástico e sem limites — lulz, na linguagem da internet — acima de qualquer consideração de bom gosto, moral, utilidade política ou mesmo bem estar alheio.
Este descompromisso com os efeitos possíveis da própria ação é facilitado pela dissociação emocional característica da vida online. Na internet, mesmo quando não estamos interagindo anonimamente, a mediação tecnológica nos desinibe para agir diferentemente do que faríamos offline, e frequentemente nos faz esquecer que há pessoas de carne e osso do outro lado.
Como uma camada extra de dissociação, aquilo que a pesquisadora Whitney Phillips chamou de “máscara da trollagem” cria uma barreira afetiva que permite ao troll minimizar as consequências do que faz e sustentar a inocência de suas intenções — que não pretendem causar mal algum, são “apenas diversão”.
Por trás deste mecanismo está uma assimetria que Phillips explica a partir da teoria do jogo de Gregory Bateson. Se uma brincadeira supõe o entendimento tácito entre os participantes que as ações que ali ocorrem devem ser interpretadas como brincadeira e não literalmente, o troll é aquele que privadamente tem consciência de estar brincando, mas o sucesso de seu jogo depende que o outro o leve a sério.
Não há reciprocidade: ele não brinca com, mas às custas do outro, para diversão sua e de um público capaz de entender e apreciar o espetáculo. Sua comunicação é, portanto, sempre dupla. Aquilo que outros trolls sabem ser brincadeira deve ser levado a sério pelos normies (os “normais”, isto é, os não-trolls); por outro lado, quanto mais longe um troll consegue levar a brincadeira e confundir os normies, mais ele será levado a sério por seus pares.
Aí está a chave para entender a estratégia da alt-right e, por extensão, do bolsonarismo. A dupla comunicação, e o fato de que é o troll quem decide quando está brincando e quando está falando sério, são a base da técnica característica da alt-right de introduzir ideias “polêmicas” e “controversas” no debate público de maneira irônica, humorística ou com certo distanciamento crítico, mantendo sempre a dúvida sobre o quanto ali é brincadeira ou para valer.
Assim, enquanto o público “interno” reconhece o falante como “um dos seus” e entende a mensagem como séria, mas sua veiculação como uma grande piada às custa dos normies, o agitador de extrema direita vai testando os limites do público “externo”, sem nunca deixar de ter uma rota de fuga.
Se em algum momento julgar-se que passou dos limites, ele sempre poderá dar um passo atrás e dizer que foi mal interpretado, que tratava-se de uma brincadeira, e virar a mesa, transformando o episódio num caso de perseguição ou numa defesa da livre expressão e um ataque a uma cultura em que “ninguém mais sabe brincar”.
É o que fazem os humoristas que construíram carreiras como críticos do “politicamente correto”; é também o que fizeram Eduardo Bolsonaro e Paulo Guedes com suas ameaças veladas de AI-5.
Às vezes o agitador será apanhado com uma provocação tão grande que não conseguirá recuar. Nestes casos, como Roberto Alvim e Milo Yiannopoulos (foto), ele será expulso do debate e acabará rejeitado pelos pares porque, com sua inabilidade, ele acabou expondo a mão de seus colegas de jogo. De um jeito ou de outro, porém, ele terá conseguido o que queria, que era mandar sinais a seus asseclas e introduzir ideias extremistas no mainstream.
É por isso que internet deu a este tipo específico de troll o nome de “edgelord”: aquele que usa a ousadia (edginess) para forçar o limite (edge) do aceitável. E se alguém duvida da eficácia dessa tática, basta lembrar que nosso atual presidente foi durante anos troll de estimação de programas de rádio e TV — e o quanto a frase “mas ele só estava brincando” contribuiu para normalizar sua candidatura.

Você trabalha para eles

O jogo da alt-right também é muito eficiente em explorar a indignação de seus adversários para seus próprios fins. Primeiro porque, na economia das redes, engajamento é tudo, não importa se bom ou ruim.
Cada trollagem bem-sucedida produz uma onda de ultraje que leva milhares de pessoas a divulgar o material “polêmico” e sua fonte, aumentando sua circulação, visibilidade e viabilidade financeira ou eleitoral. (Um antídoto para isso é comentar sem citar nomes e compartilhar apenas privadamente.)
Segundo, porque as reações indignadas podem então ser usadas para retratar os adversários como uma versão ainda mais caricata daquilo que se criticava; como otários que caíram na armadilha; como patrulhadores, inimigos da liberdade de pensamento, elitistas; ou ainda como moralistas, sem senso de humor, emocionalmente descontrolados.
Foi assim que a nova extrema direita logrou explorar tanto o rechaço ao “politicamente correto” quanto os pânicos morais característicos do conservadorismo tradicional, e posicionar-se como a voz dos desejos antissistêmicos ao mesmo tempo em que associava a esquerda — que, verdade seja dita, pouco fez para se ajudar — ao establishment, a uma cultura “uncool” e ultrapassada, ao controle de pensamento.
Quando houve a polêmica envolvendo a exposição Queermuseu, já se chamava atenção para o fato que a extrema direita aprendera a utilizar a seu favor a tendência das plataformas digitais a produzir polarização (ou cismogênese, citando Bateson novamente). A pergunta que ficava no ar então era: se as provocações já são feitas prevendo as reações contrárias e sabendo revertê-las em seu favor, e se deixá-las sem réplica também não é uma opção, que tipos de resposta poderiam ser efetivos?
Uma possibilidade que me ocorria naquela época era a operação artística conhecida como superidentificação, que consiste basicamente em, ao invés de antagonizar uma coisa diretamente, tomá-la mais ao pé da letra que seus próprios defensores e levá-la a suas últimas consequências, expondo assim o que ela tem de obsceno, indesejável e abjeto.

Gesamtkunstwerk de Alvim

Um exemplo famoso dessa técnica foi o movimento artístico dos anos 1980 chamado NSK (Neue Slowenische Kunst, ou nova arte eslovena), do qual o grupo de rock industrial Laibach foi a parte mais conhecida. Em vez de assumir a posição familiar de críticos do regime iugoslavo, o NSK performava uma adesão ao Estado e à ideia de nação tão exagerada que tornava visível o que era problemático em ambos de maneira mais desconfortável que qualquer dissidente.
Com o tempo, a mesma tática seria usada contra o bom-mocismo liberal do “Ocidente”. Na versão do Laibach para uma canção do Queen, o ar marcial da música dava às platitudes bem-intencionadas da letra (“uma só carne, uma religião verdadeira”) conotações alarmantemente fascistas.
Usar a superidentificação no Brasil hoje seria, portanto, pegar aquilo que os edgelords bolsonaristas dizem nas entrelinhas e trazê-lo às claras, rompendo com a indefinição “é sério/é brincadeira” própria de seu jogo.
O risco, óbvio, é que haja tantos absurdos circulando no debate público que a caricatura dos mesmos não só já não cause repulsa, mas acabe angariando apoios. Em todo caso, esta discussão foi antecipada nos últimos dias pelo “polêmico” vídeo de Alvim.
Sejamos claros. O secretário não caiu por “ser” nazista; é perfeitamente provável que o nazismo seja para ele uma máscara como qualquer outra. Também não caiu por citar ou se inspirar no nazismo; outros membros do governo fizeram isso e saíram prestigiados. Tampouco caiu porque foi pego; a citação era uma trollagem e, como tal, estava lá para despertar risos nos amigos e fúria nos adversários.
Roberto Alvim caiu porque faltou-lhe a arte de seus colegas de governo para testar os limites sem perder a mão.
Na ânsia de agradar os novos patrões, ele carregou tanto na dose que, como um “idiot savant”, acabou produzindo uma obra-prima acidental da superidentificação: um discurso que juntava alguns dos elementos mais sinistros no ideário bolsonarista e os comparava explicitamente — e em termos positivos! — ao nazismo. Poucas críticas ao governo foram, até aqui, tão demolidoras quanto essa.
Há anos, o jogo do edgelord tem sido o cavalo de Troia da alt-right para penetrar no debate público e fazer o que a chama de “guerra cultural”. Mas o jogo não depende apenas da soberania que o troll tem sobre o próprio discurso, sua capacidade de operar numa zona de indistinção entre seriedade e brincadeira. Ele também depende de uma classe política, imprensa, operadores do mercado etc. dispostos a permitir ou mesmo incentivar que os agitadores sigam jogando.
Tratar Roberto Alvim como “exceção”, caso de “foro privado”, ou mesmo a prova de que o governo não é extremista e as instituições o estão moderando, é fazer-se de desentendido quanto à natureza do que ele foi pego fazendo e fingir que não há vários outros jogando o mesmo jogo todos os dias nas redes, na mídia e no discurso oficial.
É também normalizar o fato que, para além do “exagero” das referências cifradas ao nazismo, o conteúdo de sua fala e o dirigismo de seu Prêmio Nacional das Artes bastam para mostrar que a extrema direita está avançando.
É bom que quem faz isso em nome das reformas, da economia, do carreirismo ou da expediência política tenha bem claro que está contribuindo para trazer o extremismo cada vez mais para o centro da arena. Qualquer hora dessas, pode ser tarde demais para pôr as barbas de molho.

Rodrigo Nunes é professor de filosofia moderna e contemporânea na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autor de “Organisation of the Organisationless: Collective Action after Networks”. Seu novo livro, “Beyond the Horizontal – Rethinking the Question of Organisation”, sairá em breve pela editora britânica Verso.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

O MODO FOLHA DE CANALHICE


"O modo Folha de Canalhice”

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Fachada do prédio em que funciona a redação da Folha no centro de São Paulo (Imagem: Reprodução/Wikimedia Commo Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor

POR MARIO MARONA
O MODO FOLHA DE CANALHICE
À Folha não basta ser regularmente canalha, como toda a mídia comercial brasileira.
Precisa mostrar-se radicalmente canalha, de vez em quando, para manter sua liderança no ranking da canalhice.
É o que faz na edição de hoje, ao fabricar uma reportagem para acusar Lula de mentir ou distorcer fatos nas entrevistas e nos discursos que fez desde que foi solto.
O truque da Folha quando precisa mostrar que acanalhou-se muito mais do que seus concorrentes é relativamente simples: chamar o inimigo de mentiroso por dizer mais ou menos o que a própria jornal já noticiou, sem considerar que, por ser quem é – um político lutando por sua liberdade e pelo poder – o alvo da Folha utiliza ênfase e retórica diferentes das adotadas no jornalismo.
Alguns exemplos?
A Folha noticiou, com chamada de primeira página, que para apressar o julgamento de Lula no caso do triplex o TRF-4 passou o seu caso na frente de 76% dos processos que estavam à espera de decisão. Lula denunciou este fato como uma injustiça, e a Folha, na matéria de hoje, o acusa de ter distorcido a verdade. Verdade que o próprio jornal revelara!
Lula criticou a Lava Jato por acusá-lo “sem provas” e “com convicções” e a Folha, hoje, diz que ele mente, mas informa, no mesmo parágrafo, logo em seguida, que, de fato, os procuradores da operação, na famosa entrevista do power point, disseram que não tinham provas cabais, mas tinham convicções.
Em retórica deliberadamente forte, Lula diz ter passado 580 dias numa solitária. A Folha diz que é mentira. Talvez considerasse verdade se Lula tivesse ficado preso numa masmorra ao lado do Conde de Monte Cristo. Mas a verdade é que Lula passou, sim, 580 dias numa cela adaptada em que não tinha contato algum com ninguém além de seus advogados e, uma vez por semana, alguns parentes. A isto se chama imposição da solidão, por sinal não prevista na sentença.
A Folha também diz que Lula mente ao acusar a Globo de ignorar as denúncias contra a Lava Jato pelo Intercept. De fato, a Globo não ignorou o assunto, mas praticamente, com raras exceções, limitou-se a noticiar apenas as acusações contra o Intercept por ter publicado informações obtidas por hackers. Até a Folha deu muito mais espaço à Vaza Jato.
Alguém esqueceu que, desmascarada por ter divulgado uma ficha falsa do Dops como se fosse de Dilma, a Folha, depois de longa resistência, afirmou que, de fato, a ficha era falsa, mas bem que poderia ter sido verdadeira?
Ou seja: “nossa notícia é mentirosa, mas poderia não ser”.
É o modo Folha de canalhice e manipulação.

Quando vi pela 1ª vez João de Deus, disse a minha mulher: é bandido



Quando vi pela 1ª vez João de Deus, disse a minha mulher: é bandido

por Drauzio Varella

Em pleno século 21, como podem crer em curas mirabolantes e em personagens tão bizarros quanto esse senhor?
Se aprendi alguma coisa em 30 anos frequentando cadeias, foi a reconhecer marginais. Podem disfarçar os modos, o jeito de andar, o palavreado, os gestos, mas o olhar os trai.
Anos atrás, quando vi pela primeira vez na TV o cidadão que se intitulava João de Deus, não hesitei em dizer para minha mulher, ao lado: é bandido.
A televisão tem o dom de entregar os olhos do personagem e, como diz o povo, eles espelham a alma. É por isso que, mesmo sem saber por quê, o espectador percebe quando o entrevistado mente, por mais razoáveis que pareçam os argumentos evocados por ele.
O tal João que apregoava incorporar o espírito de um médico do além-túmulo, que lhe trazia a capacidade de curar enfermos, tinha o olhar em desencontro com a expressão piedosa que a fisionomia se esforçava para transmitir, fugidio, arisco, incapaz de se fixar nos olhos da repórter que o entrevistava.
Nessa época, o homem que eu julgava safado já atraía multidões. Caravanas de crédulos do país inteiro e do exterior viajavam para Abadiânia, no interior de Goiás, em busca das proezas circenses que corriam de boca em boca, reforçadas por reportagens sensacionalistas que exaltavam seus vínculos extraterrenos.
O prestidigitador que dizia curar doenças malignas com passes de mágica, que raspava córneas com o lado cego da lâmina do mesmo bisturi usado nos simulacros de cirurgias, transmitiu por décadas os vírus das hepatites B e C e sabe lá quantas infecções para os incautos, sem que a Vigilância Sanitária se dignasse a molestá-lo.
Acreditaram que suas habilidades mediúnicas se estendiam aos vírus e às bactérias?
No auge da fama, o número de visitantes chegou a 2.000 por dia. A cidadezinha prosperou —tinha 80 pousadas que cobravam diárias de até R$ 200, restaurantes, lanchonetes, lojas que vendiam roupas brancas para os fiéis, imagens religiosas e suvenires bentos pelo santo que me passava a convicção de ser bandido.
Oncologista a vida inteira, vi surgirem vários tipos como esse, curandeiros que apregoavam trazer a saúde de volta aos desenganados, graças à intervenção de entidades extraterrenas que reencarnavam em seus corpos bem aventurados. Com a esperteza para enganar tanta gente por tanto tempo como esse tal João, entretanto, não soube de outro.
Não faço ideia de quantos de meus pacientes caíram nesse engodo. Entendo que não se sentissem à vontade para contar ao médico descrente.
Dos que admitiam ter ido boa parte se dizia decepcionada pela evidência dos interesses comerciais envolvidos no atendimento, enquanto outros se consideravam beneficiados pela paz emanada nas bênçãos e pela névoa de espiritualidade que acreditavam envolver o ambiente.
O argumento de que personalidades estrangeiras, artistas de renome, intelectuais, políticos, juristas e até médicos também consultavam o benzedor travestido de médium ajudou a consolidar a fama e dar credibilidade ao golpista.
Como é inevitável na carreira dos meliantes, no entanto, um dia a casa caiu. O jornalista Pedro Bial entrevistou mulheres que afirmavam ter sido molestadas pelo espertalhão.
A essas delações se juntaram centenas de outras. O ex-emissário de Deus não passava de um homem desprezível que se valia de sua posição para atacar mulheres fragilizadas por tragédias pessoais e dramas familiares.
A credulidade, entretanto, é tão irracional que ainda há quem defenda separar o joio do trigo: de um lado, o homem e as fraquezas da carne, de outro, os poderes transcendentais das entidades que ele garantia encarnar.
Depois de condenado a mais de 50 anos de cadeia por pequena parte de seus crimes, há devotas que teimam em visitar a hoje decadente Abadiânia, na esperança de captar eflúvios energéticos remanescentes nas instalações em que o vigarista as abençoava.
Não me choco com a boa-fé das pessoas simplórias ludibriadas por vigaristas desse tipo, mas com os crédulos que desfrutaram o privilégio de estudar em boas escolas.
Em pleno século 21, como podem crer em milagres, em curas mirabolantes e em personagens tão bizarros quanto esse senhor?
O presidiário João Teixeira, já condenado por uma fração dos estupros cometidos, ainda é tratado pela imprensa como o “médium João de Deus”.
Médium? De Deus? Como assim? De onde vem tanta complacência com os que se aproveitam da religiosidade do povo para explorá-lo em nome de Deus?
*Publicado na Folha de S.Paulo

Folha distorce, falseia e defende a censura da Globo, apontam assessores de Lula


Folha distorce, falseia e defende a censura da Globo, apontam assessores de Lula

"A Terra é redonda, a Petrobrás foi espionada pelos Estados Unidos, a Globo censura a Vaza Jato: esses são os fatos que Lula aponta e incomodam tanto", escrevem José Chrispiniano e Ricardo Amaral, em resposta ao ataque rasteiro da Folha

Lula 
Por José Chrispiniano e Ricardo Amaral
 (em resposta ao ataque da Folha a Lula neste domingo) –

 A Folha de S. Paulo deveria informar-se melhor, lendo suas próprias reportagens, antes de advogar a censura praticada pela Rede Globo, como fez na manchete falsificada deste primeiro fim-de-semana de fevereiro de 2020. Não há outra palavra para definir a cobertura da Globo sobre a Vaza Jato como um todo, e não apenas no breve período que a emissora selecionou para disfarçar sua parcialidade e que a Folha empurrou aos leitores, sem checar, defendendo quem a censurou.
A Folha publicou 25 reportagens em parceria com o The Intercept Brasil, editado pelo jornalista Glenn Greenwald, e o site UOL produziu outras 8. De 9 de junho até 24 de julho de 2019, período selecionado pela defesa da Globo, foram 5 reportagens da Folha, mas só uma foi reproduzida pela TV e não tratava da parcialidade de Sergio Moro e da Lava Jato no caso Lula. O tema é tabu na Globo, como foram as Diretas na década de 1980 e como a liberdade de imprensa era tabu para o nazismo. Por isso censuraram todas as provas de que Moro agiu para prender Lula e eleger Bolsonaro.
Se a Folha tivesse lido a Folha antes de defender a Globo (e difamar Lula), registraria que o Jornal Nacional censurou a matéria “Lava Jato desconfiou de empreiteiro pivô da prisão de Lula, indicam mensagens” (30/06/19). Nela se comprova que o ex-presidente da OAS, Léo Pinheiro, quando preso, mudou seu depoimento e criou um enredo sobre Lula para ter sua delação aceita pelos procuradores. Contou uma história sem provas, da qual até os procuradores desconfiaram, para sair da cadeia e condenarem Lula.
A Globo censurou “Conversas de Lula mantidas sob sigilo pela Lava Jato enfraquecem tese de Moro” (8/9/19). A Folha mostrou, e a Globo não, que Moro e a força-tarefa esconderam, do STF e do país, conversas nas quais Lula explicava a razão de assumir a Casa Civil de Dilma Rousseff, em março de 2016 – e não era para buscar foro privilegiado, mas para salvar o governo e consertar a economia. Moro voltaria a mentir sobre o assunto no Roda Viva, semanas atrás, quando disse ter enviado ao STF “todos os áudios” grampeados de Lula ao STF. A Folha revelou que a Lava Jato grampeou os advogados de Lula e fez relatórios para Moro. A Globo censurou a notícia.
O JN fez alarde da delação mentirosa de Antonio Palocci vazada pelo ex-juiz a uma semana do primeiro turno de 2018, mas não noticiou “Moro achava fraca delação de Palocci que divulgou às vésperas de eleição, sugerem mensagens” (Folha 29/07/19). A Lava Jato espionou Lula e seus familiares ilegalmente, porque ele era o alvo. Mas a Globo censurou “Lava Jato driblou lei para ter acesso a dados da Receita, mostram mensagens” (Folha, 18/08/19).
A nota da Globo que a Folha reproduziu em editorial terça-feira e na manchete de hoje é uma empulhação. Se é fato que o JN e o Fantástico deram 103 minutos de reportagens sobre a Vaza Jato nos primeiros 46 dias, não é menos fato que 66 minutos foram dedicados à defesa de Moro e ao esforço de criminalizar a série desde o nascedouro. E que em apenas 5 dias, de 24 a 28 de julho, JN e Fantástico bombardearam o país com 68 minutos sobre a Operação Spoofing, que associa a Vaza Jato a pessoas acusadas de crime cibernético, incluindo notícias falsas que tentavam envolver o PT.
O editorial da Folha em defesa do mau jornalismo da Globo soou como um ato de contrição do jornal pela entrevista de Lula ao portal UOL. O texto é axiomático: “governantes não gostam de imprensa livre”. Livre do contraditório? Livre da obrigação de checar o que publica? A Folha deu-se a liberdade de publicar mentiras como a de que, no governo, “Lula flertou com dispositivos para controlar a mídia”, sem dizer quais, pois nunca existiram. Que seu governo “deu preferência, inclusive financeira (…) a veículos em torno do petismo”, sem dizer quais, como e qìuanto, pois essa é outra mentira repetida à moda Goebbels.
A Folha quer igualar Lula a Bolsonaro porque o ex-presidente diz que o atual tem razão em algumas queixas sobre a imprensa. É um reducionismo desonesto. Lula não ameaçou cassar concessões, não fez retaliação econômica. Denunciou o mau jornalismo do qual todos podem ser vítimas. A mesma imprensa que critica Bolsonaro (por várias razões) defende a desconstrução do estado, a desnacionalização do país e a revogação de direitos que ele impõe. Jamais farão com seu governo o que fizeram com Lula, Dilma e o projeto de desenvolvimento com inclusão. Iguais são Folha, Globo, Veja, Estadão, todos alinhados com o projeto de Paulo Guedes, mesmo que o preço seja conviver com Bolsonaro.
O fato é que essa “imprensa livre” muitas vezes fabrica manchetes para amparar sua opinião. É perfeitamente legítimo externar estranheza e associar, como fez Lula, o roubo de informações sigilosas da Petrobrás num container da Halliburton, em 2008, à espionagem da NSA na estatal e nos telefones de Dilma Rousseff, noticiada no mundo inteiro em 2013 com farta documentação provida por Edward Snowden. Não é teoria, é fato que o golpe do impeachment, a prisão de Lula, a destruição da indústria brasileira de óleo e gás e a desnacionalização da Petrobrás e do pré-sal atendem a interesses geopolíticos e econômicos dos Estados Unidos. Como é fato que Moro e a Lava Jato atuaram em fina sintonia – e fora da lei – com agentes daquele país.
Procuradores do Brasil fizeram a Petrobrás pagar 3,8 bilhões de dólares em multas e acordos judiciais nos Estados Unidos. É muita vezes mais do que a Lava Jato teria recuperado no Brasil, mas isso nem a Folha consegue ver na Globo. Tampouco se vê a terra arrasada em que Moro transformou o pais, como acusa Lula, pois a Folha está ocupada em esclarecer o terraplanismo alheio.
É simplesmente ocioso checar, como faz a Folha, se um picareta como Olavo de Carvalho acredita mesmo que a terra é plana ou tem apenas dúvidas a respeito. Fato relevante é a destruição do ensino público, do meio ambiente e da soberania nacional por obra dos pupilos que ele nomeou no desgoverno de Bolsonaro. Lula distorceu Olavo? Olavo distorce a inteligência. E a Folha distorce o conceito de checagem de dados – que seria importante contribuição do jornalismo frente à pandemia de mentiras – porque precisa desqualificar Lula.
A Folha pode negar que Lula tenha ficado numa solitária, como o ex-presidente se referiu à prisão num dos discursos checados pela reportagem. Lula ficava sozinho 22 horas por dia, com exceção das quintas-feiras, quando tinha visita de amigos e familiares, e dos fins de semana, quando ficava sozinho 24 horas por dia. Tecnicamente não se chama solitária o regime prisional a que ele foi submetido por Sergio Moro, até o Supremo Tribunal Federal restabelecer, para todos, o princípio constitucional da presunção de inocência que havia sido negado a Lula. Mas não há como checar, tecnicamente, o sentimento de uma pessoa de quem tomaram uma eleição como favorito à presidência da República, a honra pessoal e 580 dias de existência, num processo farsesco, uma condenação injusta e uma prisão inconstitucional. A dor da gente não sai no jornal. Nem na Globo.
  • José Chrispiniano e Ricardo Amaral são jornalistas e assessores do ex-presidente Lula

A FOLHA FALSIFICA OS FATOS


A FOLHA FALSIFICA OS FATOS

Em matéria feita para atacar Lula, o jornal também distorce a verdade sobre o golpe de estado que me destituiu sob o disfarce de impeachment

02/02/2020 11:34
  DILMA ROUSSEFF

 A ex-presidente Dilma Rousseff publica em seu blog artigo criticando severamente a reportagem deste domingo da Folha de S.Paulo, que desfere ataques ao ex-presidente Lula e confessa cumplicidade com o golpe do impeachment. 
Leia a íntegra:

A Folha publica hoje uma reportagem cujo objetivo é atacar Luiz Inácio Lula da Silva. Baseia essa matéria em manipulações e falsificação de fatos.
A certa altura, o jornal diz que Lula distorce a verdade ao reclamar que até hoje o meu recurso contra o impeachment ilegal não foi julgado no STF. Lula tem razão e o que disse é a mais pura verdade.
O jornal afirma que, em 2015, “Dilma atrasou repasses a bancos estatais para o pagamento de programas como o Bolsa Família e subsídios agrícolas, manobra conhecida como pedalada fiscal. O artifício, que permitiu ao governo gastar mais do que poderia com seus próprios recursos, é um crime de responsabilidade. Desde 2016, ano de seu impeachment, a ex-presidente move um processo no STF para anular o seu afastamento.”
O que a Folha publica é uma monstruosa falsidade. Confessa sua cumplicidade com o golpe de estado de 2016. Vamos à verdade: impeachment sem crime de responsabilidade é golpe.
As alegações que embasaram meu julgamento no Senado carecem de base jurídica e administrativa. Possivelmente, essa é uma das razões para o STF não ter dado sequência a meu julgamento. Importante ponto, solenemente ignorado pela Folha, e destacado por Lula, é que o processo persiste sem ter sido analisado e, portanto, não há veredito jurídico para o caso, e a Folha não pode se arvorar a emiti-lo, se erigindo em 4ª instância do judiciário.
Quanto às alegações que embasam o suposto crime de responsabilidade, repito o que temos dito desde que este inconsistente e manipulado processo golpista foi iniciado:
1 – Os decretos de crédito no meu Governo seguiram procedimentos adotados desde a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2001. Somados, estes decretos não implicaram, como provado nos autos, em nenhum centavo de gastos a mais para prejudicar a meta fiscal. O meu governo agiu como todos os governos antes dele, inclusive o meu, no primeiro mandato. Mais importante, ao final do ano fiscal, que é a referência correta para julgar o desempenho fiscal, todas as contas, inclusive os créditos, haviam sido autorizados pelo Congresso Nacional.
2 – O alegado atraso nos pagamentos das subvenções econômicas devidas ao Banco do Brasil, no âmbito da execução do programa de crédito rural Plano Safra, não equivalia a uma “operação de crédito”, o que estaria vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Isto não procede porque a execução do Plano Safra era regida por uma lei de 1992, que atribui ao Ministério da Fazenda a competência de sua normatização, inclusive em relação à atuação do Banco do Brasil. A Presidência da República não pratica nenhum ato em relação à execução do Plano Safra. Ou seja, eu não poderia ser acusada e condenada por um ato que não cometi.
3 – A controvérsia quanto à existência de operação de crédito surgiu de uma mudança de interpretação do TCU, cuja decisão definitiva foi emitida em dezembro de 2015, meses depois de as operações terem sido realizadas. Ou seja: depois dos fatos analisados. Houve, assim, uma tentativa de me atribuir, e ao meu governo, um crime antes da definição de que o ato praticado seria um crime. O Ministério Público Federal já havia arquivado inquérito sobre esta questão, afirmando não caber falar em ofensa à lei de responsabilidade fiscal, porque eventuais atrasos de pagamento em contratos de prestação de serviços entre a União e instituições financeiras públicas não se constituem em operações de crédito.
4 – Vale destacar que, diante da mudança de interpretação do TCU, agi de forma preventiva e, ainda antes do pronunciamento final do Ministério Público, solicitei ao Congresso Nacional a autorização para pagamento dos passivos, e defini em decreto prazos de pagamento para as subvenções devidas. Em dezembro de 2015, após a decisão definitiva do TCU, e com a autorização do Congresso, saldamos todos os débitos existentes.
Fui julgada e condenada sem crime, verdadeiro lawfare. Daí porque, repito, este processo deve ser caracterizado como um golpe, pois impeachment sem crime de responsabilidade é golpe. É que objetivo era tirar uma presidenta eleita com 54 milhões e meio de votos, colocando em seu lugar um títere ilegítimo, para “estancar a sangria” e executar uma agenda de pseudo reformas anti-populares e contra a soberania nacional, e que jamais seriam aprovadas na vigência do Estado Democrático de Direito."


DILMA ROUSSEFF

Escala F

Escala F

Vladimir Safatle 

Na década de 50, o filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969) uniu-se a um grupo de psicólogos sociais norte-americanos para desenvolver um estudo pioneiro sobre o potencial autoritário inerente a sociedades de democracia liberal, como os Estados Unidos.
O resultado foi, entre outras coisas, um conjunto de testes que permitiam produzir uma escala (conhecida como Escala F, de "fascismo") que visava medir as tendências autoritárias da personalidade individual.
Por mais que certas questões de método possam atualmente ser revistas, o projeto do qual Adorno fazia parte tinha o mérito de mostrar como vários traços do indivíduo liberal tinham profundo potencial autoritário.
O que explicava porque tais sociedades entravam periodicamente em ondas de histeria coletiva xenófoba, securitária e em perseguições contra minorias.
O que Adorno percebeu na sociedade norte-americana vale também para o Brasil. Na semana passada, esta Folha divulgou pesquisa mostrando como a grande maioria dos entrevistados apoia ações truculentas como a internação forçada para dependentes de drogas e intervenções policiais espetaculares como as que vimos na cracolândia.
Se houvesse pesquisa sobre o acolhimento de imigrantes haitianos e sobre a posição da população em relação à ditadura militar, certamente veríamos alguns resultados vergonhosos.
Tais pesquisas demonstram como a idealização da força é uma fantasia fundamental que parece guiar populações marcadas por uma cultura contínua do medo.
É preferível acreditar que há uma força capaz de "colocar tudo em ordem", mesmo que por meio da violência cega, do que admitir que a vida social não comporta paraísos de condomínio fechado.
Sobre qual atitude tomar diante de tais dados, talvez valha a pena lembrar de uma posição do antigo presidente francês François Mitterrand (1916-1996).
Quando foi eleito pela primeira vez, em 1981, Mitterrand prometera abolir a pena de morte na França. Todas as pesquisas de opinião demonstravam, no entanto, que a grande maioria dos franceses era contrária à abolição.
Mitterrand ignorou as pesquisas. Como se dissesse que, muitas vezes, o governo deve levar a sociedade a ir lá aonde ela não quer ir, lá aonde ela ainda não é capaz de ir. Hoje, a pena de morte é rejeitada pela maioria absoluta da população francesa.
Tal exemplo demonstra como o bom governo é aquele capaz de reconhecer a existência de um potencial autoritário nas sociedades de democracia liberal e a necessidade de não se deixar aprisionar por tal potencial.
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