Inspirado nos EUA, Bolsonaro adota tática de troll: testar limites para ganhar visibilidade, diz filósofo
Inspirados pela extrema direita americana, o presidente Jair Bolsonaro e seu entorno adotam estratégia de comunicação dos trolls,
os provocadores da internet, afirma Rodrigo Nunes, professor de
Filosofia Moderna e Contemporânea na Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Em entrevista à BBC News Brasil, ele diz que foi justamente assim que o político chegou aonde chegou. "Você perguntava para as pessoas qual era o atrativo dele e a conversa era sempre 'Ah, ele fala o que todo mundo pensa'. Aí você apontava para alguma coisa que ele tinha dito, dizia que era grave, e recebia como resposta: 'Ah não, mas ele está só brincando'", afirma. "Ou seja, é a figura que ao mesmo tempo fala o que todo mundo está pensando e está só brincando, a figura do troll, justamente, que está sempre nesse jogo dúbio, entre o que é brincadeira e o que é sério."
"Ele está sempre introduzindo temas que são 'polêmicos' — que na verdade são comentários racistas, homofóbicos ou machistas etc. —, e a reação [de indignação] provocada atrai atenção para ele, lhe dá visibilidade", avalia.
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O processo, porém, se aprofunda no período de transição entre a campanha presidencial e sua ascensão ao cargo. "Você tem um grupo de pessoas que a gente poderia descrever como sendo o núcleo ideológico do bolsonarismo, os formuladores da tentativa de dar uma identidade própria ao que seria o bolsonarismo, que a partir de um determinado momento começam a adotar um linguajar, uma série de pontos discursivos e de traços que são claramente tomados da alt-right americana."
Nesta semana, Bolsonaro ofendeu a jornalista Patrícia Campos Mello, do jornal Folha de S.Paulo, ao dizer que a repórter "queria dar o furo a qualquer preço contra mim".
O ataque foi feito após um ex-funcionário de uma agência de disparos de mensagens em massa por WhatsApp dizer, sem apresentar qualquer prova, que a jornalista teria tentado "se insinuar" sexualmente para ele em busca de informações. A declaração ocorreu na semana passada, durante depoimento do ex-funcionário à CPMI das Fake News no Congresso, e foi endossada na ocasião também pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente.
Autor do livro Organisation of the Organisationless: Collective Action after Networks ("Organização dos sem organização, ação coletiva após as redes", em tradução livre), Nunes rebate, em parte, a teoria de que declarações controversas de membros do governo sejam tentativa de criar uma "cortina de fumaça" para ocultar ações do Planalto.
"É possível identificar no timing de algumas declarações, de pronunciamentos, um interesse em desviar o rumo da conversa. No conteúdo, por outro lado, para você dizer que a declaração da ministra [da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] Damares Alves, por exemplo, de meninos vestirem azul e meninas, rosa, é uma cortina de fumaça para disfarçar a reforma da Previdência, você precisa acreditar que esse conservadorismo de valores seria uma característica acidental, secundária, do bolsonarismo. E eu acho que não é."
Segundo ele, é exatamente esse tipo de declaração o que mantém o núcleo duro do bolsonarismo fidelizados. "De certa maneira, se a gente entende o bolsonarismo como a tentativa de consolidar esse eleitorado conservador como sendo uma força política, um capital político de monopólio da família Bolsonaro, a gente pode dizer inclusive que é a reforma da Previdência que é inteiramente acidental para eles. Na verdade, eles não ligam muito para a economia."
Seu novo livro, Beyond the Horizontal - Rethinking the Question of Organisation ("Além do horizontal - repensando a questão da organização", em tradução livre), será publicado neste ano pela editora britânica Verso. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Em que se baseia a estratégia de comunicação do governo Jair Bolsonaro?
Rodrigo Nunes - Essa estratégia já não é de hoje, acompanhou toda a campanha do Bolsonaro à Presidência e caracterizava a atuação dele como parlamentar, que no final das contas era justamente uma atuação muito mais midiática do que propriamente parlamentar — a gente sabe que, como legislador dentro do Congresso, a participação dele sempre foi pífia.
Ela se assemelha bastante às estratégias comunicativas da extrema direita americana, da chamada alt-right, uma constelação de grupos que ficaram mais visíveis durante a campanha de Donald Trump à Presidência. E tem essa característica muito marcante de explorar a tática que, na linguagem da internet, se chama edgelord ["o senhor do limite", em tradução livre], a figura que está sempre forçando o limite daquilo que pode ser dito numa situação qualquer.
Ele está sempre introduzindo temas que são "polêmicos" — que na verdade são comentários racistas, homofóbicos ou machistas etc. —, e a reação [de indignação] provocada atrai atenção para ele, lhe dá visibilidade. Eventualmente, se a reação [às declarações] for muito negativa, ele sempre pode dar um passo atrás e dizer: "Eu estava brincando, as pessoas não sabem mais brincar, a gente vive numa cultura que cerceia a liberdade de expressão".
Se você olhar a performance midiática do Bolsonaro ao longo de toda a carreira dele, verá que é sempre mais ou menos isso. E acho que ela vem de uma compreensão instintiva que ele tinha de sua posição política na época, totalmente periférica — ele era um político completamente sem importância, cuja única visibilidade vinha disso. Mas esse processo se torna muito claro durante o período de transição [da campanha para o governo].
Você tem um grupo de pessoas que a gente poderia descrever como sendo o núcleo ideológico do bolsonarismo, os formuladores da tentativa de dar uma identidade própria ao que seria o bolsonarismo (os filhos do presidente, os amigos dele, o Filipe Martins, que é assessor especial da Presidência, e em alguma medida o Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores), que a partir de um determinado momento começam a adotar um linguajar, uma série de pontos discursivos e de traços que são claramente tomados da alt-right americana.
Dois exemplos muito claros disso, que são meio que ridículos em geral e são particularmente ridículos num país periférico fora da Europa como o Brasil, são a adoção de um imaginário das Cruzadas, que tem o objetivo de instalar no centro do debate político a narrativa de "Nós, os conservadores, a extrema direita, estamos defendendo os valores judaico-cristãos, nós estamos defendendo o Ocidente contra a ameaça religiosa do islamismo e a ameaça cultural do feminismo, da população LGBT, do antirracismo etc."; e dentro dessa recuperação você tem esse slogan "Deus Vult", assim quis Deus — que, na verdade, é um latim meio capenga.
BBC News Brasil - O jeito como Bolsonaro se comunica, primeiro como parlamentar, depois como candidato e presidente evolui, então, junto com a sua principal referência, a alt-right americana?
Nunes - Eu acho que sim. Não é que ele tenha se tornado uma figura da alt-right, até porque ela tem alguns traços característicos que são difíceis de traduzir para outros contextos (talvez o mais importante deles seja o etnonacionalismo, a ideia de criar Estados monoétnicos, uma nação para cada etnia), mas certamente o entorno dele está aprendendo com aquilo que a alt-right vem fazendo.
Isso acontece em boa parte porque é preciso dar um pouco mais de consistência ao que seria ideologicamente o bolsonarismo — até então, ele era, e ainda é, uma coisa muito presa à figura do Bolsonaro. O bolsonarismo é aquilo que ele diz em qualquer momento, as preferências dele, aquilo que ele pensa em uma hora qualquer. E eles entendem que é necessário tentar criar alguma coisa mais consistente, mais completa.
Você pode dizer que, em termos de perfil político, as medidas, ou o tipo de medida autoritária, que eles vão considerar têm muito mais a ver, por exemplo, com uma figura como o [premiê] Viktor Orbán, na Hungria. Para a comunicação, no entanto, o modelo que eles vão buscar é o da alt-right. E a gente entende por que: é um modelo mais jovem, mais descolado, mais irônico que usa muito bem essa linguagem da internet, o assumir essa posição do troll [provocador], da pessoa que está falando a verdade, mas falando a verdade para tirar sarro de todo mundo.
Essa foi justamente a maneira como Bolsonaro chegou aonde chegou. Você perguntava para as pessoas qual era o atrativo dele e a conversa era sempre "Ah, ele fala o que todo mundo pensa". Aí você apontava para alguma coisa que ele tinha dito, dizia que era grave, e recebia como resposta: "Ah não, mas ele está só brincando". Ou seja, é a figura que ao mesmo tempo fala o que todo mundo está pensando e está só brincando, a figura do troll, justamente, que está sempre nesse jogo dúbio, entre o que é brincadeira e o que é sério.
BBC News Brasil - Por que essa estratégia de comunicação começou a ser mais eficaz ou mais utilizada nos últimos anos? O que mudou, na última década, para que ela passasse a ser tão bem-sucedida?
Nunes - Eu acho que tem duas coisas principais. Uma é a transformação do ambiente informacional em que a gente se move hoje em dia. Com a internet, você tem uma revolução do ponto de vista editorial, porque os custos de publicar qualquer coisa caem drasticamente, qualquer um pode escrever e publicar qualquer coisa na internet a custo praticamente zero. Isso é radicalizado ainda mais pelo advento das redes sociais. Você entra ali para manter contato com os seus parentes que estão longe, e agora você tem à sua disposição um espaço para expor suas opiniões sobre qualquer coisa.
Aí você soma a isso o fato de que essas plataformas, que são monopólios mundiais como Facebook e Twitter, começam a canalizar cada vez mais as verbas de publicidade na internet, e o jornalismo passa a ser feito para funcionar nas redes sociais. Ora, para funcionar nas redes sociais, o que você precisa é de manchetes de impacto, que provoquem engajamento, e a melhor maneira de fazer isso vai ser sempre com declarações polêmicas, entrevistas com figuras "polêmicas" — que na verdade são figuras extremas e cada vez mais extremas.
Então você cria praticamente uma necessidade, com essa transformação da economia da informação, que faz com que agora, para uma matéria ser bem-sucedida e render dinheiro para a empresa de comunicação, ela precisa atrair cliques. Isso cria uma economia que favorece ou depende do sensacionalismo. E, se você está respondendo cada vez mais a um tipo de conteúdo, os algoritmos dessas plataformas (que querem aumentar o seu engajamento) vão mandar cada vez mais esse tipo de conteúdo.
Por cima disso tudo, temos o fato de que a grande maioria da humanidade não tem uma educação básica em como funciona a internet, para saber distinguir fontes confiáveis e não confiáveis. O William James, um filósofo americano, compara o conhecimento a um sistema de crédito: a gente não verificou pessoalmente todas as informações que acredita que sejam verdadeiras, mas acredita que outras pessoas checaram. O que temos hoje em dia é um sistema de crédito que está cheio de moeda falsa circulando, e ninguém sabe mais direito no que pode acreditar ou não. A internet produziu isso.
Então você tem essa transformação na economia da informação e soma a isso uma crise de legitimidade que se abre com a crise financeira de 2008. O que acontece na resposta da maioria dos governos do mundo à crise? Todo mundo sabe onde ela começou, que foi provocada por uma bolha especulativa no mercado financeiro, causada por uma desregulamentação progressiva que começa na década de 1980 e se acentua na década de 1990. O que aconteceu depois dessa crise? O sistema responsável por ela não foi modificado. Os Estados assumem dívidas privadas como se fossem dívidas soberanas e transferem isso para os cidadãos na forma de cortes de serviços sociais etc. — são as chamadas políticas de austeridade.
O conjunto de respostas à crise de 2008 deixa absolutamente claro que a imensa maioria dos governos do mundo está completamente no bolso do mercado financeiro e de interesses corporativos. Isso abre uma crise de legitimidade muito grande em todas as grandes democracias do mundo. As pessoas começam a pensar: "Bom, já que o centro do espectro se demonstrou uma falácia, o que está fora desse espectro?".
No início da década, o vento parecia soprar na direção contrária, você tem a Primavera Árabe, o Indignados [na Espanha], o Occupy [nos EUA], os protestos no Brasil, demandas por democratização e igualdade econômica. Elas não avançam por diversos motivos e, a partir da segunda metade da década, o vento muda de direção. Vamos ver, então, o que a extrema direita tem a nos oferecer.
BBC News Brasil - Você enxerga o esgotamento desse estilo de comunicação no curto prazo?
Nunes - Eu temo que não. Eu acho que algo que certamente está mudando, mas ainda muito devagar, é que as pessoas, especialmente na esquerda, estão se tornando mais atentas e sensíveis ao mecanismo desse tipo de comunicação. E quando você entende o mecanismo, você fica um pouco mais vacinado. Mas é uma transformação muito lenta ainda, e dificilmente vai atingir os nossos pais, os nossos tios tão cedo.
Uma coisa que pode fazer uma diferença no Brasil no médio prazo é simplesmente a desilusão com o governo Bolsonaro e seu entorno. Não entre o eleitorado que pode descrito como bolsonarista — cerca de 15% da população —, mas entre o eleitor que é mais pragmático, que no fim das contas está preocupado não em saber se menino vai vestir azul e menina, rosa, mas se o governo vai resolver os seus problemas, melhorar a sua vida. E a tendência no médio prazo é uma desilusão com a figura do Bolsonaro.
Se essa desilusão vai vacinar as pessoas contra outras figuras como o Bolsonaro, aí é uma outra questão. O eleitor brasileiro é essa figura singular cuja cabeça basicamente oscila entre dois juízos que são incompatíveis entre si: "eles são todos iguais" e "esse aqui é diferente". Então é bem possível que nas próximas eleições esteja todo mundo desiludido com o Bolsonaro e dizendo "eles são todos iguais", e aí apareça alguém e boa parte do eleitorado diga "mas esse é diferente" e vote nele.
BBC News Brasil - A cada nova declaração polêmica do presidente da República ou algum dos integrantes do governo, parte dos cientistas políticos e comentaristas levanta a possibilidade de uma 'cortina de fumaça', uma estratégia de tirar a atenção de determinados assuntos 'mais sérios' por meio de controvérsias. Como você avalia isso? O governo pratica, de fato, essa estratégia?
Nunes - Sim e não. Eu acho que, sim, é possível identificar no timing de algumas declarações, de pronunciamentos, um interesse em desviar o rumo da conversa. No conteúdo, por outro lado, para você dizer que a declaração da ministra [da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] Damares Alves, por exemplo, de meninos vestirem azul e meninas, rosa, é uma cortina de fumaça para disfarçar a reforma da Previdência, você precisa acreditar que esse conservadorismo de valores seria uma característica acidental, secundária, do bolsonarismo. E eu acho que não é.
Pelo contrário, esse tipo de declaração, que pode parecer meio absurda, meio ridícula, é exatamente o que mantém esses 15% do núcleo duro do bolsonarismo fidelizados. Eles querem justamente um presidente e ministros que estejam dando declarações desse tipo, que estejam fazendo piadas homofóbicas, dando declarações sexistas etc. Isso faz parte da identificação deles e não é absolutamente acidental — a identidade do bolsonarismo se constrói aí.
De certa maneira, se a gente entende o bolsonarismo como a tentativa de consolidar esse eleitorado conservador como sendo uma força política, um capital político de monopólio da família Bolsonaro, a gente pode dizer inclusive que é a reforma da Previdência que é inteiramente acidental para eles. Na verdade, eles não ligam muito para a economia. Eles ligam para a economia na medida em que eles precisam manter o mercado, a Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] etc. felizes para que eles não sejam ameaçados por essas forças. Mas no final das contas, eu acho que a economia pra família Bolsonaro tanto faz como tanto fez.
O que interessa para eles é consolidar o seu capital político, e a maneira como eles consolidam o seu capital político é no campo dito dos costumes, das ditas guerras culturais. O capital político deles foi construído. E é, sobretudo, aí que eles vão disputar. Então, para eles, isso não é absolutamente cortina de fumaça, isso é parte do projeto.
BBC News Brasil - Como acredita que a oposição (ou a esquerda) vem fazendo frente a essa estratégia? A oposição a Bolsonaro tem uma estratégia de comunicação clara?
Nunes - Eu acho sinceramente que não, nem de comunicação, nem de rigorosamente nada, nesse momento, acho que a esquerda está completamente perdida. Do ponto de vista da comunicação, eu acho que realmente a esquerda, pensando aqui sobretudo o PT e os petistas, levou muito tempo para entender o jogo — muita gente ainda não entendeu.
O problema da esquerda nesse momento é duplo. Do ponto de vista da comunicação, você tem uma radicalização identitária que vai funcionar para fidelizar uma base que já existe e crescer marginalmente em torno dela, porque você cria essa identidade de "somos nós contra todo mundo lá fora", "ninguém solta a mão de ninguém", "quem está do seu lado na trincheira importa mais que tudo", essas frases que se tornaram populares nos últimos anos. Por outro lado, você perde capacidade de comunicação com grande parte da população, porque, no final das contas, a grande maioria das pessoas não está interessada se você é de esquerda ou de direita, mas sim no que você tem a oferecer, de que maneira pode resolver os seus problemas. Então aí tem um nó que a esquerda deu em si mesma, do qual ela não consegue sair.
E você tem um outro nó que é uma falta completa de clareza programática. O que a esquerda quer, neste momento? A esquerda quer voltar ao poder para tentar reeditar o pacto lulista do início dos anos 2000. Mas é possível fazer isso sem o boom das commodities, depois que o mercado e a Fiesp decidiram que não precisam mais do PT? E quais seriam os custos de tentar fazer isso agora? É isso que a gente não tem nenhuma ideia, porque não há nem sequer uma discussão sobre isso na esquerda. Normalmente, quando as pessoas falam que a esquerda não consegue mais pensar um projeto de Brasil, não tem mais uma visão de futuro, dizem que é porque a esquerda hoje está perdida em pautas minoritárias — ela fala no direito das mulheres, no direito dos negros, dos indígenas, dos gays, das lésbicas, das pessoas trans, mas não fala mais do universal, do trabalhador.
Eu acho, na verdade, que essa explicação deixa a coisa muito barata para a esquerda, que as pessoas estão invertendo a ordem da doença e do sintoma. A esquerda hoje só consegue falar dessas pautas ditas minoritárias, dessas questões de setores particulares da sociedade, porque ela não tem nada a dizer sobre a sociedade como um todo. E a maneira que ela tem de seguir falando alguma coisa, enquanto se mantém absolutamente quieta sobre qual efetivamente é o seu projeto de país, é falar dessas pautas. Mas ela está falando só dessas pautas para fugir de um assunto que se tornou completamente desconfortável, que é: se a esquerda voltasse ao poder amanhã, o que ela faria, o que teria para oferecer?
BBC News Brasil - Parte dessa dificuldade parece estar associada ao fato de que as demandas do eleitorado não se encaixam mais no eixo tradicional de esquerda e direita, e a nova direita parece mais preparada para responder a suas aflições. Como lidar com isso?
Nunes - É muito complicado esse quadro que você descreve, justamente por causa disso, porque isso dá a medida do quanto a esquerda hoje está jogando em um território que já é da direita. A primeira coisa que não se pode fazer é descrever isso como uma coisa que aconteceu, simplesmente. Temos que pensar em quais foram as condições para essa transformação.
Em primeiro lugar, a condição de fundo é justamente o fato de que a globalização neoliberal produziu os seus maiores perdedores entre a base histórica dos grandes partidos social-democratas, sobretudo aquilo que no exterior se chama, de maneira ao mesmo tempo redundante e suspeita, de "classe trabalhadora branca". Foram esses os grupos que, na Europa e nos EUA, foram os mais prejudicados por ela. O fundo dessa transformação cultural é uma transformação econômica, que gera pobreza, penúria, desemprego, e essa sensação de ter sido deixado para trás pelas transformações que ocorrem nas décadas de 1990 e 2000.
Isso foi acompanhado pela ascensão, na década de 1990, por aquilo que a Nancy Fraser, filósofa americana, descreveu recentemente como neoliberalismo progressista, que foi aquilo que na época se chamou de terceira via, que é um neoliberalismo que é neoliberal na sua política distributiva (então, em termos gerais, ele tira dos pobres para dar para os ricos), mas do ponto de vista da política de reconhecimento ele é progressista, quer aproveitar esses processos de transformação que estão ocorrendo nos anos 1990 e 2000 para aumentar o reconhecimento, a inclusão, das mulheres, dos negros, dos gays e lésbicas etc. Aí você já tem, só nessa combinação histórica, um prato cheio para a extrema direita. Porque o argumento da extrema direita é sempre "você está perdendo porque eles estão ganhando". E o que vai mudar é quem são eles: as mulheres, os negros, os imigrantes, os gays. O discurso da extrema direita sempre desloca a explicação que seria estrutural para fulanizar a responsabilidade.
O que eu acho que a esquerda pode fazer é, em primeiro lugar, reconhecer a legitimidade do anseio ou das preocupações que se manifestam nessas pautas. A preocupação com os imigrantes é uma preocupação com a instabilidade econômica, com o choque de culturas no dia a dia. Você não pode tratar isso como se fosse simplesmente uma coisa de gente ignorante, ou como "uma coisa que vai ser superada". É preciso reconhecer que há uma série de preocupações legítimas.
O que se expressa no discurso de defesa da família, por exemplo? É um desejo de acolhimento, de proteção, de segurança. Você tem que dizer para as pessoas: "Olha, a gente quer que as pessoas estejam mais protegidas, mais seguras, mais acolhidas. Por isso, inclusive, que a gente quer garantir que o filho da sua vizinha, que é gay, ou que é trans, não apanhe. Porque a gente quer garantir a proteção da família para ele também, ou para duas pessoas do mesmo sexo que se amam".
É preciso encontrar quais são os pontos de contato do seu discurso com o discurso dessas pessoas e, a partir desse terreno comum, tentar construir uma coisa diferente, tentar mostrar para a pessoa: isso que você acha que é solução para esse problema, a gente acha que não é, na verdade isso só vai agravar o problema. E fazendo dessa outra maneira, a gente resolve o problema de uma maneira muito mais eficiente e para muito mais gente.
BBC News Brasil - A solução, então, é ouvir essas demandas, em vez de descartá-las?
Nunes - A reação frequente da esquerda quando se depara com pessoas que são sensíveis a esses temas — que são contra a imigração, ou o casamento gay, ou o aborto — é pegar um traço desses qualquer e dizer: "Taí um fascista, um conservador". Qual é o erro que a esquerda comete? Tem um erro epistemológico, digamos, e um erro prático, com consequências óbvias.
O erro epistemológico é: a esquerda está julgando o outro segundo a sua própria regra. É apenas para pessoas que têm identidades políticas muito definidas que a consistência dessas identidades importa. Uma pessoa de esquerda normalmente tem um pacote completo: é a favor de mais intervenção do Estado na economia, de taxar os mais ricos, e é a favor do aborto, do casamento gay, contra a transfobia etc. Claro que tem variações aí no meio, mas uma pessoa de esquerda tende a ser um pacote fechado, assim como uma pessoa de direita, conservadora.
Para a grande maioria das pessoas, porém, a própria identidade política não é uma questão tão importante. E, do ponto de vista de quem tem a identidade política definida, a forma como essas pessoas se posiciona é contraditória. Por exemplo, alguém que é totalmente a favor dos direitos LGBT e também do Estado mínimo; a favor da pena de morte, mas também da educação pública. Há coisas que parecem contraditórias para a gente, que julga a identidade das pessoas segundo a nossa regra, mas tem outras que são realmente contraditórias: eu sou a favor do Estado mínimo e sou a favor de educação e saúde públicas e de qualidade. A maioria das pessoas quer tudo. O ideal para a gente seria ter um Estado maravilhoso e não pagar imposto, mas infelizmente não dá. Só que, para uma pessoa que não parou para pensar sobre esses temas, se chegar alguém prometendo isso para ela, ela vai adorar.
O problema da esquerda está em, ao medir as pessoas segundo a sua própria régua, pensar que, se a pessoa acredita nisso, ou tem determinado elemento dentro do seu perfil político, ela está completamente do outro lado. E aí vem o problema prático. Com isso, evidentemente, a tendência é que você rechace essa pessoa completamente, corte completamente o diálogo com alguém com quem você não só teria condições de diálogo, porque haveria outros pontos de contato, mas também com quem você deveria conversar. Porque, infelizmente, a gente não tem fábricas de pessoas que nos permitam produzir os eleitores que gostaria que existissem, a gente tem que lidar com os eleitores que existem. E, enquanto você está dizendo "Aqui não tem lugar para você, vai procurar a sua turma", a direita, ou extrema direita, está lá do outro lado dizendo: "A gente acolhe você. Venha".
BBC News Brasil - Diante da polarização atual da política, há uma corrente que defende uma volta ao centro, ao realismo. Essa volta é possível, considerando o eleitorado atual? Qual é a solução: radicalizar ou voltar ao centro?
Nunes - Bom, a primeira coisa é: no mundo inteiro, as pessoas estão se tornando mais abertas a ideias, propostas, figuras, partidos, que até pouco tempo atrás seriam considerados como pertencendo aos extremos do espectro político — e a gente vê isso tanto à direita quanto à esquerda, embora a direita esteja sendo mais bem-sucedida nesse processo. Por que isso está acontecendo? Mesmo que a gente considere esse movimento em direção aos extremos irracional, ele possui causas que devem ser racionalmente identificáveis. As pessoas não enlouqueceram de uma hora para outra, elas começaram a procurar respostas nos extremos do espectro político porque o centro, que era aquele centro desenhado pela "oposição" entre neoliberalismo progressista e neoliberalismo conservador, entrou em uma crise de legitimidade muito grande após a crise de 2008.
Aqui no Brasil, isso se dá menos em termos econômicos e mais em termos políticos. Existe um modo de fazer política característico do presidencialismo de coalizão, do sistema partidário da Nova República, que sai do escândalo da Petrobras completamente desmoralizado. Você descobre que, no final das contas, não importava que PT e PSDB fossem inimigos figadais, na verdade estava todo mundo com a mão no cofre do Estado brasileiro.
Então o primeiro ponto é esse: é preciso ter muito cuidado ao falar em voltar ao centro, porque tem várias coisas que isso pode significar que simplesmente não são mais plausíveis. A gente não tem nenhuma perspectiva no horizonte de um novo ciclo de expansão capitalista — pelo contrário, a gente vê o próprio (jornal britânico) Financial Times dizer que tem um problema sério com o capitalismo hoje, que é um capitalismo cada vez mais de baixa produtividade, baseado apenas na extração de renda. Ou seja, há uma série de problemas, alguns novos, outros velhos, que não podem ser respondidos dentro daquele consenso político que existia nos anos 1990 e 2000.
O que a esquerda precisa fazer é radicalizar. Não radicalizar na identidade de esquerda — muito mais camisetas do Che Guevara, muito mais sandálias de couro, ninguém quer saber disso — nem tornar a identidade de esquerda cada vez mais exigente — "Você tem que usar os pronomes certos, ou falar as palavras certas, se não você vai ser cancelado imediatamente". O ponto em que a esquerda pode radicalizar hoje, o espaço político que sobrou para explorar, é a radicalização da pauta econômica, que é exatamente o que a gente vê com as duas experiências de esquerda mais bem-sucedidas nos últimos tempos — que foram, apesar da derrota nas eleições, o [Jeremy] Corbyn e agora o [Bernie] Sanders.
O Partido Trabalhista foi derrotado no Reino Unido no terreno do Brexit, em que talvez ele não tivesse como ganhar, mesmo. Mas a direção do partido vai continuar propondo o que o Corbyn propunha — porque a tendência é que se eleja [para a nova liderança do partido] um nome como o da [deputada] Rebecca Long-Bailey [aliada próxima de Corbyn] ou alguém na mesma linha. Mais importante que isso: não há nenhum Blairista [seguindo a linha do ex-primeiro-ministro e antigo líder da sigla, Tony Blair, de centro] concorrendo à liderança do partido, e isso é muito sintomático de uma mudança de fato.
O que o Corbyn propunha e o Sanders propõe agora são coisas que até a década de 1970, na verdade, não apenas eram propostas social-democratas perfeitamente comuns (não tinham nada de socialistas), como eram consenso inclusive com muita gente da direita, ou que se identificaria como conservador etc. E a resposta que as pessoas têm dado a isso é muito positiva, você pega as pesquisas de medição de popularidade das propostas, do manifesto do Partido Trabalhista britânico, e as pessoas reagem de maneira extremamente positiva às propostas econômicas.
As únicas soluções verdadeiras a essa altura são soluções extremas. E é isso, ou a esquerda assume que as soluções verdadeiras e, no final das contas, plausíveis, são soluções extremas, banca isso — e ao mesmo tempo deixa de ser burra e para de afugentar as pessoas — ou eu não vejo muito qual vai ser o lugar para a esquerda ocupar nesse contexto.
Me parece que a gente está numa encruzilhada histórica em que as opções serão essas: ou uma solução extrema de um lado ou uma solução extrema de outro; e me parece que um lado [a direita] já assumiu isso. Ou a esquerda ocupa o outro lado desse espectro, ou não vejo muito bem o que ela pode fazer. Porque se ela não puxar o cobertor na outra direção, o cobertor vai ficar onde está, e a esquerda vai ficar para o resto da história da humanidade, que tenderá a ser relativamente curto, jogando num terreno que pertence à direita
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