domingo, 15 de março de 2020

Liberalismo primitivo de Guedes não leva a crescimento, diz Lara Resende

Liberalismo primitivo de Guedes não leva a crescimento, diz Lara Resende

Um dos formuladores do Real, economista sustenta em livro que debate econômico no país está superado


  • Vinicius Torres Freire Marcos Augusto Gonçalves
    [resumo] Em meio a resultados ruins da economia e ao pânico do coronavírus, André Lara Resende lança livro com teses inovadoras, critica a política econômica e afirma que o debate macroeconômico no país está superado.
    Atropelada pela pandemia do novo coronavírus, a recente divulgação do PIB brasileiro de 2019 (1,1%), que selou uma sequência de três anos de crescimento irrisório, após dois de recessão, levantou questões incômodas para os defensores do atual receituário econômico. O fiasco não foi nenhuma surpresa para o economista André Lara Resende: “A atual política econômica baseia-se num liberalismo primitivo, o ‘laissez-faire’ de Milton Friedman dos anos 1960/70”, diz em entrevista à Folha, concedida em São Paulo.
    Com passagem pela vida acadêmica e experiência como diretor do Banco Central, negociador da dívida externa, presidente do BNDES e um dos formuladores do Plano Real, ele considera um erro acreditar que basta retirar o Estado da economia e equilibrar as contas públicas para que a confiança dos investidores privados seja recuperada e a economia volte a crescer.
    “Não há recuperação possível nessas condições”, afirma.
    Se a situação da economia já se mostrava desalentadora, a ameaça do novo coronavírus tornou o cenário dramático. O pânico nos mercados financeiros e a possível recessão mundial suscitam apelos de ação dos governos —proposta que encontra eco nas ideias do economista.

    “Está claro que o coronavírus vai provocar uma parada brusca da economia mundial”, diz Lara Resende, que vê pouco espaço para a ação dos bancos centrais em relação às taxas de juros, mas prescreve atuação “inteligente” do Estado. “O tema do coronavírus ressalta a imperiosa necessidade de aprovar verbas emergenciais para a saúde. Cortar num momento como esse, ‘para compensar as perdas de receitas do petróleo’ [como foi aventado], beira o surto psicótico”, diz.
    Pintado por guardiões do “status quo” econômico como uma caricatura de defensor quase incondicional do gasto público, ele expõe em seu recém-lançado “Consenso e Contrassenso: Por uma Economia não Dogmática” teses que questionam os mitos da austeridade inscritos nas tábuas da teoria hegemônica. Em seus textos, traça uma história crítica do pensamento e de fatos econômicos e explica por que a disciplina precisa ser repensada a fundo. Não são teses inventadas por ele, mas que teriam sido silenciadas e agora retornam ao debate internacional.
    Na visão do autor, Estados que emitem a própria moeda não têm, sob determinadas condições, restrições financeiras. Podem gastar quanto quiserem, por meio de emissão monetária ou por endividamento a uma taxa de juros que têm como controlar. Pergunta-se: em decorrência, não haveria inflação, disparadas de juros e fugas de credores do governo, que deixariam o país ou buscariam outros ativos que não títulos da dívida pública?
    Não, dentro de certos limites, responde o economista, que fez seu doutorado no MIT, na mesma turma de Ben Bernanke, presidente do Fed à época da crise de 2008. O governo —argumenta— poderia gastar até o limite em que consumo e despesas de investimento não pressionassem a capacidade de produção.
    O país também teria de limitar com muita prudência o endividamento externo, pois não poderia emitir para cobrir esse passivo. De resto, o gasto tem de ser eficiente, definido talvez por uma agência independente. “O que desancora a inflação é crise, o Estado se desorganizar, tanto financeira quanto politicamente, o déficit em conta corrente, o aumento populista do salário mínimo, os choques de preço de energia”, diz.

    E os credores, “o mercado”, não cobrariam mais para financiar a parte da despesa coberta por endividamento, com o que a dívida pública cresceria sem limite? Não. O Banco Central tem o poder de definir a taxa de juros abaixo da taxa de crescimento econômico. Com isso, a dívida cresceria menos do que a economia, e os donos do dinheiro não teriam para onde fugir, a bom preço.
    De onde saiu a intuição ou a demonstração para a tese de que não haveria inflação? Da reação dos BCs à quebradeira de 2008. Na sequência do desastre, observou-se uma gigantesca expansão monetária nos EUA e na Europa, quando os bancos centrais, na prática, direta ou indiretamente, financiaram intuições e financistas quebrados e, a seguir, empresas e mesmo seus governos, com emissão de moeda. O resultado de tal política não foi inflacionário.
    Segundo Lara Resende, há um ponto cego na teoria econômica, incapaz, há décadas, de explicar as relações entre moeda e atividade econômica. A sombra se tornou um mito, em parte por interesse, em parte por incompreensão do caráter histórico da teoria econômica. Na verdade, a história mudou faz alguns séculos, com a criação da moeda fiduciária. E os bancos criam moeda ao concederem empréstimos.

    Se haveria tantos ganhos e tão poucos perdedores, porque a resistência à mudança? O establishment da teoria econômica resiste, bem como os emissores de moeda privada, ou seja, o sistema financeiro.
    Lara Resende evita entrar em detalhes sobre como poderia ocorrer na prática a mudança para um tal regime de política econômica, transição que no caso do Brasil teria de superar traumas históricos de endividamento hiperinflacionário, um quase consenso prático e teórico a favor da austeridade e um edifício constitucional e legal em tese erigido para promovê-la, aliás sem muito sucesso, para dizer o menos.
    Um problema seria que o “país vive um estresse pós-traumático com os planos de investimento do período do PT”, diz o economista.
    Acredita, no entanto, que a mudança de visão é inevitável, tanto por pressão da quarta revolução tecnológica quanto pela previsível absorção do debate internacional mais atualizado, “como costuma acontecer em praças colonizadas”.
    Certamente que tal projeto exige tempo e um debate que não interdite a divergência —ele acredita que ocorra hoje um obstáculo para tal, inclusive na mídia, “que subscreve a política em vigor”.
    O economista não se mostra disposto a assumir funções públicas, mas se sabe que tem mantido conversas com lideranças políticas, em especial o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
    Leia trechos da entrevista.
    A atual política econômica preocupa-se com o aspecto fiscal, mas na sua visão está orientada por pressupostos equivocados, como a expectativa de que o crescimento virá como consequência de um ajuste das contas públicas. Formou-se, no entanto, um certo consenso de “liberais” em torno do ministro Paulo Guedes. O que isso nos diz sobre o estágio do debate macroeconômico no Brasil? A política econômica atual baseia-se num liberalismo primitivo, o “laissez-faire” de Milton Friedman dos anos 1960/70, no qual o monetarismo simplório da Teoria Quantitativa da Moeda foi substituído pela tese da “austeridade fiscal expansionista”. Sustenta-se que basta retirar o Estado da economia e equilibrar as contas públicas para que a confiança dos investidores privados seja recuperada, e a economia volte a crescer. Trata-se de um duplo equívoco.
    Primeiro, porque no mundo contemporâneo, mais do que nunca, um Estado competente é condição para o crescimento. Tanto para garantir serviços públicos de qualidade, como para o bom funcionamento da economia competitiva, a ação do Estado é indispensável. Segundo, porque a tentativa de equilibrar as contas públicas, a curto prazo e a qualquer custo, asfixia o setor privado com impostos distorcidos, inviabiliza os investimentos públicos e paralisa serviços básicos. Não há recuperação possível nessas condições.
    O pânico gerado pelo novo coronavírus agrava o cenário. O que esperar? Está claro que o coronavírus vai provocar uma parada brusca da economia mundial. Os bancos centrais não têm mais muito espaço com a taxa básica de juros, mas podem minorar uma nova crise de contração do crédito privado, através de recursos para compra de dívidas privadas.
    Mais uma vez, o que faria diferença seria a ação coordenada das políticas monetária e fiscal. É imperiosa a necessidade de aprovar verbas emergenciais para a saúde. Cortar, num momento como esse, “para compensar as perdas de receitas do petróleo” [como foi aventado], beira o surto psicótico.
    Em sua visão, a reação dos bancos centrais à crise de 2008 demonstrou que as visões macroeconômicas em vigor no Brasil estão ultrapassadas. Por quê? A reação à crise de 2008 deixou patente que não existe uma restrição natural para a emissão de moeda. Ao menos quando há capacidade ociosa e o crédito bancário (isto é, a emissão de moeda privada) está contido, a emissão de base monetária não provoca inflação. Os principais bancos centrais emitiram como nunca, multiplicando a base monetária por fatores superiores a 15 vezes, sem provocar vestígio de inflação. Pelo contrário, mais de uma década depois, as economias avançadas continuam perigosamente próximas da deflação. Não pode haver prova mais cabal de que a emissão de moeda não provoca inevitavelmente inflação. O experimento do chamado “quantitative easing” salvou o sistema financeiro e implodiu a macroeconomia estabelecida.
    A restrição à emissão de moeda pelo Estado sempre foi uma restrição política. Trata-se de uma opção política por restringir os gastos públicos e abrir espaço para os gastos privados. O comércio e a indústria sempre pressionaram pela expansão da liquidez na economia, mas ao mesmo tempo procuraram impor freios aos gastos considerados conspícuos e ilegítimos do Estado.
    Enquanto prevaleceu o padrão-ouro, resolvia-se o problema sem liberar o Estado para emitir sem lastro. Com o fim do padrão-ouro e a desmoralização definitiva da Teoria Quantitativa da Moeda, depois de 2008, uma nova restrição para os gastos públicos precisava ser criada. Os economistas passaram, então, a defender que haveria um limite superior para a relação entre a dívida pública e o PIB.
    O livro de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, “This Time Is Different”, de 2009, sustenta que, a partir de uma dívida equivalente a 70% do PIB, a economia se desorganizaria. Inúmeros países, entre eles o Japão, os EUA, e mesmo o Brasil, já passaram desse limite, sem qualquer sinal de apocalipse econômico.
    Alberto Alessina, da Universidade Harvard, cunhou a expressão “austeridade expansionista” para defender, contra toda a evidência histórica, que o corte das despesas públicas e do aumento dos impostos não seria recessivo, mas ao contrário, estimularia os investimentos e a economia. Agências internacionais, como a Comissão Europeia e o FMI, subscreveram a nova tese e passaram a prescrever os programas de ajustes fiscais como o único caminho para a retomada do crescimento.

    Suas teses parecem não evidenciar um perdedor, embora atinjam o establishment científico da economia e assustem quem teme populismos. Quais os motivos para tamanha resistência? Toda mudança de paradigma enfrenta grandes resistências. Ordenamos o mundo segundo as histórias que contamos e que se tornam de aceitação generalizada. A disrupção, para usar um termo em moda, das narrativas estabelecidas é profundamente perturbadora e ameaça seus titulares e beneficiários. Reconhecer que o governo não tem restrição financeira e que deveria fazer uso dessa faculdade para investir, de forma inteligente e produtiva, quando há desemprego, capacidade ociosa e uma flagrante carência de todo tipo de serviços públicos não é exatamente uma pauta revolucionária. Muito pelo contrário, é a receita keynesiana clássica, que pautou a política econômica do pós-guerra.
    Nova é a consciência de que a taxa de juros básica está sob controle dos bancos centrais e que pode ser fixada abaixo da taxa de crescimento da economia, garantindo assim que a relação dívida/PIB não irá explodir, ainda que haja déficits fiscais a curto prazo. Nova é a evidência de que a dívida interna pode ser emitida com juros muito baixos ou até mesmo negativos.
    Grande parte das teses que sustento tem longa tradição na história do pensamento econômico. Embora intelectualmente superiores, foram politicamente derrotadas e relegadas ao esquecimento. Diferentes concepções do que é a moeda e de como controlar os gastos do Estado estão por trás das duas grandes vertentes da teoria monetária ao longo dos últimos séculos. Schumpeter, em sua história do pensamento econômico, chamou a primeira dessas vertentes de teorias monetárias do crédito e a segunda de teorias creditícias da moeda. Enquanto as primeiras sustentam que a moeda é uma mercadoria com valor intrínseco, as segundas argumentam que é uma unidade abstrata de crédito.
    A vitória política das teorias monetárias do crédito foi uma vitória política da necessidade de impor uma restrição ao financiamento do Estado. Como disse Keynes, no seu clássico “Teoria Geral”, a vitória dos metalistas, liderados por David Ricardo, nas controvérsias monetárias do século 19, conquistou “a Inglaterra tão completamente quanto a Santa Inquisição conquistou a Espanha”. A sua aceitação pelos homens públicos e pela academia suprimiu a controvérsia.
    As teorias alternativas deixaram de ser ensinadas e foram de tal forma esquecidas que, ao serem trazidas de volta à discussão, justamente quando toda moeda é fiduciária e está a caminho de se tornar apenas escritural, parecem revolucionárias.
    Reação tão virulenta é evidência de que o tema é, como sempre foi, politicamente carregado. O espaço para o gasto público e o gasto privado não é ilimitado, está condicionado à capacidade produtiva da economia. Quando há desemprego e capacidade ociosa, o aumento do gasto público não compete com o gasto privado, pelo contrário, pode levar à recuperação do emprego e da renda. Essa é a essência da tese de Keynes na “Teoria Geral”. Nesse caso, não há efetivamente perdedores, todos teriam a ganhar.
    Infelizmente, isso não é verdade quando a economia se aproxima do pleno emprego e o gasto público compete efetivamente com o gasto privado. Além de competir pela capacidade produtiva, o gasto público beneficia setores diferentes da sociedade. É, portanto, uma opção política. Abrir espaço para os gastos privados, pautados pela busca de resultados financeiros, também é uma opção política, mas que a teoria econômica pretende transformar numa opção científica. Como lembra Robert Skidelsky em seu último livro, “Money and Government: The Past and Future of Economics”, nada mais agradável aos homens práticos do que encontrar os seus preconceitos travestidos de ciência. Para deixar claro, os perdedores seriam os emissores privados de moeda, o sistema financeiro.
    Essas ideias pedem um aggiornamento da profissão e da opinião pública tamanho que pode parecer prematuro perguntar sobre os problemas operacionais de uma mudança desse porte. Parece necessário que esse programa venha com um novo governo, com credibilidade e robustez política. Como você vê essa perspectiva? Para o aggiornamento da profissão e da opinião pública, é preciso antes de mais nada que o debate não seja interditado. Diante do questionamento do velho paradigma, a reação da maioria dos economistas tem sido a de desqualificar a priori as críticas. Sem contestá-las racionalmente, esperam que, com o silêncio dos cardeais, as críticas aos dogmas sejam desconsideradas e acabem esquecidas.
    Por isso é tão importante que novas lideranças, tanto acadêmicas quanto políticas, entendam e divulguem a crítica à macroeconomia convencional. A apresentação de um programa coerente de revisão teórica e institucional, baseado no novo paradigma, seria fundamental para dar-lhe visibilidade e credibilidade.
    Quais os requisitos econômicos e institucionais para dar início a um plano tal qual o senhor propõe? A consciência de que o Estado não tem restrição financeira deve vir acompanhada da imperativa necessidade de torná-lo competente. O Estado não precisa, necessariamente, levantar recursos, via impostos ou emissão de dívida, para gastar. Esta é uma decorrência lógica da moeda fiduciária. É ao mesmo tempo liberadora e assustadora.
    Liberadora porque deixa claro que gastos, desde que justificados pelo aumento da produtividade e do bem-estar, podem ser feitos sem a preocupação de equilibrar o Orçamento a curto prazo. Perigosa porque sem a disciplina do Orçamento equilibrado, a vocação patrimonialista do Estado, a tentação populista para gastar de forma irresponsável, corporativista e corrupta, pode se tornar incontrolável.
    Por isso é tão importante estabelecer limites rígidos para o gasto na operação do próprio Estado e critérios racionais para os investimentos públicos. A tecnologia já permite criar um Estado desburocratizado, com um custo de operação muitíssimo mais baixo.
    A plataforma digital nacional, que proponho no meu livro e que já existe na Estônia e na Índia, é o caminho a ser seguido. Deve-se manter, de toda forma, a exigência de que os gastos correntes do Estado sejam sempre cobertos por receitas tributárias, mas abrir exceção para que os investimentos públicos possam ser aprovados fora do Orçamento. Para isso, deveriam ser avaliados e ordenados por uma agência independente, com base em critérios técnicos de retorno. O problema é que o o país vive um estresse pós-traumático com os planos de investimento do período do PT.
    O temor de que a democracia representativa não seja capaz de lidar com o fato de que o Estado não tem restrição financeira é compreensível. Por isso, é preciso adaptar as instituições e rever as regras para a aprovação de gastos públicos.
    BC e Tesouro devem ser mantidos como agências à parte, mas teriam de ser coordenados. Como se resolve essa coordenação na manutenção da estabilidade de preços? O senhor poderia precisar qual seria o papel de uma autoridade monetária nessa nova configuração? Está comprovado que a taxa de juros é menos eficaz do que se imaginava para o controle da inflação. Quando sistematicamente mantida acima da taxa de crescimento da economia, transforma-se num dos principais fatores de desequilíbrio fiscal. Juros mantidos acima do crescimento potencial da economia são um equívoco de graves consequências.
    As políticas monetária e fiscal não são independentes, são intimamente interligadas. Um BC independente que ponha a taxa de juros sistematicamente acima do crescimento potencial da economia sabota o equilíbrio fiscal. O BC é, antes de mais nada, o banqueiro do Tesouro e precisa trabalhar a favor e não contra o Tesouro. Com mercados financeiros líquidos e juros próximos de zero, a distinção entre moeda e dívida pública é menos importante do que parece. Tanto a moeda como a dívida interna são passivos financeiros do Tesouro que requerem uma gestão coordenada.
    O controle da inflação é essencialmente uma questão de coordenação das expectativas. A desancoragem das expectativas é quase sempre decorrência da combinação de grandes desvalorizações cambiais, quando o financiamento externo é bruscamente interrompido, com ajustes populistas de salários e a desorganização recessiva da economia. Também do controle artificial de preços, como os de energia. Déficits fiscais transitórios, ainda que expressivos, não provocam necessariamente inflação.
    O Tesouro poderia gastar, atendidos os pressupostos de eficiência etc., até o limite em que sua despesa não pressione além da conta a capacidade de produção, que não provoque excesso de demanda. Como se verifica esse limite? O principal sinal de que a economia está superaquecida e de que há pressão excessiva da demanda é o desequilíbrio das contas externas. Enquanto houver superávit comercial, há espaço para o crescimento da demanda.
    O senhor observa os riscos do capitalismo de Estado, do corporativismo, do patrimonialismo, da corrupção etc. As agências seriam instrumento suficiente para conter o esbulho da nova política? A experiência demonstra que o Estado é mau empresário, e as empresas estatais, ainda que possam começar bem, sempre envelhecem mal. Por outro lado, acreditar que seja possível ter uma economia capitalista competitiva sem um Estado competente é uma ilusão. Exatamente porque o setor privado procurará sempre capturar o Estado e as agências reguladoras é que o Estado precisa ser competente em todas as suas dimensões. O Estado despreparado, inchado e corporativista é presa fácil dos interesses específicos e dos “rent-seekers”.
    Como diz David Graeber, antropólogo da London School of Economics, em seu “Dívida: Os Primeiros 5.000 Anos”, a ideia do mercado sem o Estado é o mito fundador da teoria econômica. A história da moeda-mercadoria, como uma geração espontânea dos mercados, ensinada nas escolas, não tem fundamento.
    O Estado deve ser voltado para o bem-estar da sociedade, não um criador de benesses para os seus ocupantes e de dificuldades para o cidadão. Esta não é, como se sabe, uma tarefa fácil. O Estado brasileiro, apesar de ainda ter alguns focos de excelência, é inchado, burocrático e patrimonialista. Mas asfixiá-lo não é a solução. Acreditar que o Estado jamais poderá ser competente, que deva ter as suas mãos atadas, é um grave equívoco. Trata-se de uma visão forjada durante os anos da Guerra Fria, hoje flagrantemente anacrônica.
    No Brasil corremos o risco de um processo de “failed state”. Presenciamos uma situação em que o crime se politiza e a política se criminaliza. Podemos caminhar para uma Venezuela.

    Vinicius Torres Freire, mestre em administração pública pela Universidade Harvard e colunista da Folha;
    Marcos Augusto Gonçalves, editor da Ilustríssima e editorialista da Folha

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