domingo, 22 de março de 2020

Ninguém sairá o mesmo desta quarentena


Ninguém sairá o mesmo desta quarentena

Torço para que o coronavírus, a exemplo da peste negra, abrevie o obscurantismo medieval em que nos metemos.

Fernanda Torres

  • Devo a João Ubaldo Ribeiro a indicação do livro “A Distant Mirror”, da historiadora americana Barbara Tuchman, sobre o calamitoso século 14 na Europa. Trata-se do período da peste negra, originada na Ásia central, que dizimou dois terços da população europeia e deu um fim à Idade Média.
    É uma leitura e tanto para a quarentena de agora.
    A Guerra dos Cem Anos, o príncipe negro e a Batalha de Crecy; os dois papados, um romano e um francês empenhadíssimo no ignóbil mercado de indulgências; a corrupção na Igreja e os primeiros cristãos indignados que, décadas depois, influenciariam a reforma protestante de Lutero. Está tudo lá.
    Mas nada, no relato de Tuchman, se compara às procissões de penitentes em meio à peste. “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, do Monty Python, e “O Incrível Exército de Brancaleone”, de Mario Monicelli, têm cenas impagáveis sobre o tema. A diferença é que a autora descreve o caos com realismo e minúcia desoladora.
    Clamando pela proteção do Senhor, os tementes se juntavam às romarias ainda sãos, caíam doentes no decorrer do trajeto e terminavam o périplo em covas rasas. Foi necessário o alarmante milagre da multiplicação de óbitos para que a Igreja suspendesse missas, procissões e aglomerações de fiéis.
    Sete séculos depois, Edir Macedo solta um vídeo na internet afirmando que o medo da Covid-19 é obra de Satanás.
    Não satisfeito, procura fundamentar a tese com o depoimento de um patologista, doutor Beny Schmidt, que deveria ter o registro de CRM cassado.
    “Morrer é o destino humano”, diz o doutor. “A gente morre de hipertensão, de diabetes, de câncer e de hemorragia, mas de coronavírus a gente não morre, porque Deus não quis.”
    Sete séculos depois da disseminação da peste, Jair Bolsonaro desce a rampa do Planalto para trocar gotículas com seus seguidores como se não houvesse amanhã
     
     
    O Posto Ipiranga da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, preferiu não comentar a indiferença do superior à curva exponencial de contágio pela Covid-19. O ministro tem crédito, estaríamos perdidos na mão do Weintraub. E os panelaços falaram por ele.
    Jair governa para o próprio gueto. Se reinasse na Europa do século 14, pregaria o Apocalipse e incitaria o autoflagelo em cortejos suicidas.
    Janaina Paschoal pediu a cabeça do presidente depois do abraça e beija dominical. Arrependida confessa do voto que concedeu ao capitão, a deputada representa uma fatia considerável de eleitores conservadores que começam a perceber que o ódio ao PT não pode servir de justificativa para o apoio a um furioso.
    A aliança entre o ultraliberalismo econômico e o populismo de extrema direita enfrenta seu primeiro desafio com uma crise que mais parece lição divina.
    A iniciativa privada será incapaz de substituir o Estado no atual salve-se quem puder. Todos os países do mundo estão abrindo as torneiras. Paulo Guedes será obrigado a agir na direção contrária de tudo o que aprendeu em Chicago e sonhou e planejou e prometeu. Duro acaso.
    Torço para que o centro ressurja dessa emergência. E que o coronavírus, a exemplo da peste negra na Europa do século 14, venha abreviar o obscurantismo medieval travestido de liberal em que nos metemos.
    É isso ou a procissão do “FODA-SE” dos possuídos do domingo passado, dispostos a se imolar pelo capitão. Na Europa trecentista, pelo menos, morria-se por Deus.
    Há método na loucura de Macedo e de Messias. Quanto mais fatalidades, mais temor ao Altíssimo e mais Altíssimo para confortar. O bispo tem razão, o medo é a arma de Satanás.
    No lado pagão, é preciso reconhecer, nota-se o mesmo estado de negação. Por não se sentirem ameaçados pela doença, os jovens descumprem o resguardo e lotam praias, bares e baladas. O egoísmo também serve de instrumento para o Capeta.
    Ninguém sairá o mesmo desta quarentena. Daqui a quatro meses atingiremos, dizem, a imunidade de rebanho. Enterrados os mortos, espero que voltemos às ruas mais humanos e menos afeitos a fundamentalismos religiosos, políticos e econômicos.
    Talvez esse vírus seja mesmo o recado de Deus. Deus natureza cansado do ódio, da ignorância, da irracionalidade, da brutalidade, da violência e da vileza dos mitos e profetas. Um Deus farto das trevas e ansioso por um Renascimento.
    Aconteceu na Europa, 700 anos atrás.

    Fernanda Torres
    Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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