sábado, 25 de julho de 2020

Qualquer confusão entre acusação e julgamento é prejudicial à imparcialidade, diz 'pai' do garantismo penal


Qualquer confusão entre acusação e julgamento é prejudicial à imparcialidade, diz 'pai' do garantismo penal

Para italiano Luigi Ferrajoli, Operação Mãos Limpas teve excessos, mas parece modelo perto da Lava Jato


David Lucena
São Paulo
Considerado o “pai” do garantismo penal, o jurista italiano Luigi Ferrajoli, 79, diz que deve haver uma separação radical entre o órgão que acusa e o que julga o réu.
A indevida confusão entre as duas esferas tem sido alvo de críticas, no Brasil, tanto no inquérito das fake news, que mira bolsonaristas, quanto nas ações da Lava Jato, que levaram à condenação de políticos como o ex-presidente Lula.
No caso das fake news, especialistas dizem que, como o inquérito foi instaurado, de ofício, pelo próprio STF (Supremo Tribunal Federal), isto é, o órgão julgador, a separação entre o órgão que investiga e o que julga estaria comprometida.
Já na Lava Jato, mensagens vazadas pelo site The Intercept Brasil sugerem que havia colaboração entre os procuradores da força-tarefa —a acusação, portanto— e o então juiz Sergio Moro.
Ferrajoli, aliás, critica os julgamentos conduzidos por Moro e diz que, em qualquer outro país, o comportamento do magistrado justificaria sua suspeição.
retrato de Luigi Ferrajoli
Luigi Ferrajoli é um jurista italiano e um dos principais teóricos do Garantismo - Diario La República
O jurista reconhece que a Mãos Limpas –operação deflagrada em 1992, na Itália, que revelou um grande esquema de corrupção e é frequentemente comparada à Lava Jato– teve “excessos anti-garantistas”, mas diz que ela parece um modelo de garantismo se comparada com os processos que resultaram na condenação de Lula.
O garantismo é uma corrente jurídica que prega o respeito máximo às garantias processuais, a fim de coibir arbitrariedades judiciais e, desta forma, proteger os réus —que são considerados inocentes até o trânsito em julgado da sentença condenatória.
É a principal teoria por trás de diversas discussões jurídicas travadas no Brasil recentemente. Desde a prisão após a condenação em segunda instância até quebras de sigilos, passando por conduções coercitivas do réu e prisões preventivas, tudo isso tem o garantismo (ou a falta dele) como base teórica.
O conceito foi explorado por Ferrajoli na obra “Direito e Razão - Teoria do Garantismo Penal”. No prefácio da primeira edição italiana, publicada em 1989, o filósofo Norberto Bobbio diz que o “garantismo é um modelo ideal, do qual nós podemos mais ou menos aproximar”.
Em entrevista à Folha por email, Ferrajoli rebate as críticas de que o garantismo pode ser um obstáculo à condenação de culpados.
“É um obstáculo à condenação de bodes expiatórios inocentes, certamente capazes de satisfazer a demagogia populista, mas certamente não é um obstáculo à responsabilização penal daqueles que realmente cometeram crimes”.
Na entrevista, Ferrajoli fala ainda sobre temas como abuso de autoridade, prisão após condenação em segunda instância, tribunal do júri e endurecimento das penas.
O Brasil aprovou uma lei para frear o abuso de autoridade. A lei pune juízes com multas e até prisão por violarem alguns direitos dos réus, como a determinação injustificada de prisão preventiva. Considera que castigar penalmente juízes e promotores é uma forma adequada de prevenir violações aos direitos fundamentais do réu? O abuso de autoridade é obviamente um ilícito que merece ser punido. Muito mais importantes que a repressão aos abusos, no entanto, são as garantias penais, processuais e legais —começando com a separação entre juiz e acusação- que tornam os abusos impossíveis.
Mensagens publicadas pelo The Intercept Brasil revelam que houve uma colaboração entre o Ministério Público e o juiz responsável pela Operação Lava Jato. Essa ação conjunta da Promotoria com o juiz, em um sistema acusatório, é prejudicial ao Estado de Direito? Qualquer confusão entre acusação e julgamento, repito, é prejudicial à imparcialidade e, portanto, à credibilidade do julgamento. Por causa dessa confusão, o juiz, como escreveu Cesare Beccaria, deixa de ser "um imparcial investigador da verdade" e "se torna um inimigo do réu" e "não busca a verdade do fato, mas busca no prisioneiro o delito, prepara-lhe armadilhas, considerando-se perdedor se não consegue apanhá-lo”.
No caso específico do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, você considera que houve uma violação das garantias individuais do acusado? No caso da condenação do ex-presidente Lula, as violações das garantias do devido processo legal foram, desde o início, massivas. Em qualquer outro país, o comportamento do juiz Moro justificaria sua suspeição, por sua explícita falta de imparcialidade e pelas repetidas antecipações de julgamento.
A Operação Lava Jato no Brasil é muitas vezes comparada à italiana Mãos Limpas. Os críticos de Lava Jato dizem que houve excessos por parte das autoridades. Na Mãos Limpas, houve algum tipo de excesso? Em caso afirmativo, o sistema jurídico penal italiano mudou após a operação? Nos julgamentos italianos do início dos anos 1990, conhecidos como "Mãos Limpas", houve indubitavelmente excessos antigarantistas, como o abuso de prisão preventiva e o excessivo papel desempenhado pelo delator.
No entanto, comparados ao julgamento contra Lula, esses julgamentos parecem um modelo de garantismo. Neles nunca houve confusão entre juiz e acusação: as limitações da liberdade na fase de instrução e, obviamente, as sentenças sempre foram decididas por juízes independentes que, muitas vezes, rejeitavam os pedidos da acusação por considerar que eles não eram fundados em provas suficientes.
Como o sr. vê o fato de os réus cumprirem suas sentenças após a condenação em segunda instância e, portanto, antes do julgamento de possíveis recursos nos tribunais superiores? A execução da condenação se justifica somente depois que a relativa sentença se tornou definitiva porque transitou em julgado. O encarceramento antes da condenação final é uma penalidade sem julgamento que contradiz todos os princípios do garantismo penal.
O mesmo entendimento deve ser aplicado para crimes violentos, como homicídio? Obviamente, sim.
O tribunal do júri é um método justo para se processar os acusados de crimes graves, como homicídio Não. A jurisdição é uma instituição anti-majoritária. Sua legitimidade não reside no caráter popular do juiz, mas no cumprimento de todas as garantias criminais e processuais necessárias para minimizar a possibilidade de condenação de pessoas inocentes.
Por que o sr. afirma que o garantismo pode ser entendido como sinônimo de Estado de Direito? Porque consiste principalmente na sujeição à lei dos juízes e promotores, que é precisamente a substância do "Estado de Direito" e, portanto, na exclusão de qualquer arbitrariedade judicial e na proteção máxima dos inocentes.
É possível ter um excesso de garantismo? Em caso afirmativo, esse excesso não poderia ser prejudicial ao Estado de Direito? A expressão "excesso de garantismo" não faz sentido. "Garantismo" não significa formalismo vazio na aplicação da lei. Consiste em respeitar as garantias penais e processuais, que são, muito mais e muito antes que garantias de liberdade, garantias de verdade.
Como o sr. responde às críticas de que o garantismo é um obstáculo à responsabilização penal e, portanto, um obstáculo à redução da criminalidade? É um obstáculo à condenação de bodes expiatórios inocentes, certamente capazes de satisfazer a demagogia populista, mas certamente não é um obstáculo à responsabilização penal daqueles que realmente cometeram crimes.
Como o sr. avalia o surgimento de governos que propõem o endurecimento das penas como política de combate à criminalidade? Como um sinal de fraqueza e irracionalidade. Como escreveu Beccaria, "um dos maiores freios aos delitos não é a crueldade das penas, mas sua infalibilidade".

Como enfrentar a criminalidade em países com altos níveis de violência como o Brasil sem cair em uma espécie de estado autoritário? A primeira medida elementar deve ser a proibição radical de armas, que são os principais instrumentos de violência e morte. Os dados estatísticos são impressionantes: o número de assassinatos na Itália em 2018 foi de 345, dos quais 142 consistiam em feminicídios; no Brasil, por outro lado, foi de 57.341.
A razão dessa enorme diferença está no fato de que na Itália ninguém sai armado, enquanto no Brasil, como de fato nos Estados Unidos e no México, todos se armam de medo. A segunda medida capaz de combater o crime consiste em ativar políticas sociais voltadas à redução da pobreza, que obviamente é o principal fator do crime de rua e de subsistência.
Mas, evidentemente, o populismo criminoso prefere obter um consenso fácil recorrendo ao endurecimento das penas, como se essa fosse uma varinha mágica capaz de remover as causas sociais e culturais da criminalidade.
Para reduzir o número de ações judiciais e tornar a justiça mais ágil, o governo brasileiro chegou a propor a criação de uma espécie de “plea bargain” semelhante à existente nos Estados Unidos. Na sua opinião, este instituto apresenta riscos para as garantias individuais dos cidadãos? É a negação da justiça e todas as suas garantias. O “plea bargain”, que nos Estados Unidos corresponde a 97% dos casos julgados pela Justiça Federal e 94% dos julgados pelas jurisdições estaduais e é responsável por mais de 2 milhões de prisioneiros nas penitenciárias americanas, não é de fato um processo alternativo, mas uma própria e verdadeira alternativa ao devido processo legal.
Consiste, na verdade, na extorsão inquisitorial da confissão, com base na troca desigual proposta pelo promotor ao suspeito, [que tem que escolher] entre a admissão de culpa e a redução da pena que ele sofreria --geralmente não podendo pagar defesas caras-- ou se submeter ao julgamento.
LUIGI FERRAJOLI, 79
Professor emérito de filosofia do direito da Universidade Roma Tre, é ex-juiz e membro da associação Magistratura Democratica e autor de “Direito e Razão - Teoria do Garantismo Penal”​

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