sábado, 19 de setembro de 2020

Simbiose diabólica

 

 

Simbiose diabólica

Bolsonaro aposta na aliança das bancadas da bala e de Deus

  • Luís Francisco Carvalho Filho

As bancadas policiais e religiosas crescem significativamente no Brasil. Há modalidades de abuso de poder político sem freio institucional.

Não é bom politizar a segurança pública. A revista piauí mostra que o número de parlamentares vinculados às polícias e às forças armadas (28) mais que dobrou em 2018.

Levantamento publicado pelo UOL indica que 336 policiais militares de São Paulo se afastaram da corporação (sem prejuízo dos salários, evidentemente) para disputar as eleições municipais de 2020 —um aumento da 62% em relação a 2016.

Juízes e membros do Ministério Público estão impedidos de ter atividade partidária. O prazo parece exagerado, mas, para evitar o uso político dos cargos, o ministro Dias Toffoli sugere o estabelecimento adicional de um intervalo de inelegibilidade de oito anos, a contar da demissão ou da aposentadoria do candidato.

Não se justifica a ausência de barreira legal rígida para policiais civis e militares. Assim como juízes e promotores, deveriam ser impedidos de se candidatarem enquanto estiverem na ativa. É o mínimo.

O policial anda armado, suspeita, vigia, investiga, intimida, prende, faz e recebe favores, reprime manifestações públicas: a perspectiva de angariar votos conspira contra o profissionalismo e a eficiência que se espera da função policial, transforma quartéis e delegacias em territórios de proselitismo e demagogia, favorece e amplia o poder marginal das milícias.

A questão religiosa é mais complexa. O Tribunal Superior Eleitoral rejeitou recentemente o posicionamento do ministro Edson Fachin, favorável à perda do mandato por abuso de poder religioso.

A Constituição garante liberdade religiosa e mais de 30% da população brasileira se declara evangélica. É natural, portanto, que essa representação tenha reflexo nas casas legislativas. Mas é necessário controlar, por antecipação, o poder da ascendência religiosa no processo político.

 

O Estado é laico e deve zelar para que as religiões não imponham suas crenças, estúpidas ou não.

Igrejas são criadas como padarias. Vigora no país um sistema de imunidade tributária que favorece o enriquecimento ilícito de pastores, a lavagem de dinheiro e o charlatanismo.

As igrejas podem criar braços partidários e planejar a ascensão politica e partidária dos seus pregadores? O voto pode ser objeto de barganha espiritual? Os templos podem se transformar em currais eleitorais, ainda que sorrateiramente?

A Lei Complementar 64/1990, editada durante o governo Collor, tem o propósito de evitar abusos de poder econômico e de poder político nas disputas eleitorais.

Os acréscimos da Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010) estabelecem paradigmas vinculados ao princípio da honestidade do homem público. Além de condenados pelos mais variados crimes e atos de improbidade administrativa, ficam de fora das eleições os cassados e os que tiverem as contas rejeitadas. Não é suficiente.

A movimentação desimpedida de religiosos e policiais cria desigualdades no processo eleitoral.

O crescimento descontrolado das bancadas da bala e de Deus parece inexorável diante do vazio jurídico em vigor. O governo Bolsonaro aposta na simbiose diabólica destas duas forças para instituir mecanismos de intolerância moral e de tolerância ao abuso policial.

Se nada for feito, estaremos irremediavelmente condenados à corrupção das liberdades constitucionais e à falta de inteligência.

Luís Francisco Carvalho Filho

Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (2001-2004).


Liberais se mostram ávidos por normalizar ações autoritárias de Bolsonaro

 

 

Liberais se mostram ávidos por normalizar ações autoritárias de Bolsonaro

Para cientista político, Elena Landau e coautores usam retórica anacrônica e vaga sobre o liberalismo


Jorge Chaloub

Doutor em ciência política pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e professor do Departamento de Ciências Sociais da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora)

[RESUMO] Em comentário a artigo de pesquisadores que atuam como conselheiros do Livres, cientista político afirma que autores usam critérios de pureza para tratar do liberalismo, afastando a doutrina de circunstâncias históricas concretas, e, por meio de falsas equivalências com a esquerda, concebem o governo Bolsonaro como expressão legítima do dissenso na sociedade brasileira.

Elena Landau, Fernando Schüler, Leandro Piquet Carneiro e Samuel Pessôa publicaram na Ilustríssima, em 1º de agosto, resposta ao ensaio de professores da USP sobre a atualização de certa tradição fascista brasileira no bolsonarismo.

Com o título “Desafios de uma sociedade aberta”, o artigo requenta uma série de chavões conhecidos sobre liberalismo, fascismo e comunismo, que pouco contribuem para o debate sobre ideologias políticas. Ele interessa, todavia, por ser representativo de certo discurso influente em nossa conjuntura.

Façamos uma brevíssima análise do seu uso do conceito de liberalismo. Os autores acusam os adversários de anacronismo, mas curiosamente constroem um conceito completamente anacrônico de liberalismo, a partir de uma definição que ignora suas transformações e o toma como sinônimo de democracia e liberdade.


Nesse discurso, o liberalismo é necessariamente virtuoso e seus eventuais limites sempre decorrem de uma "ausência" ou realização parcial. O mundo, ademais, seria ainda mais sombrio e autoritário caso os liberais, verdadeiros defensores da liberdade, não tivessem insistido em suas condutas, que soam como erros apenas para os que ignoram elementos centrais da realidade.

Não faltam bons exemplos de antecedentes desse mesmo padrão narrativo. Um clássico exercício de “retórica da ameaça”, tão bem esmiuçado por Albert Hirschman em "A Retórica da Intransigência", é a defesa dos discursos e ações liberais prévios à crise de 1929 em “Uma História Monetária dos Estados Unidos”, de Milton Friedman e Anna Schwartz. Neste livro, o economista responsabiliza as ações do Federal Reserve Bank pela Grande Depressão, em uma narrativa que ignora fortes evidências historiográficas em sentido contrário, a partir de uma definição normativa do que é a ordem liberal.

Se qualquer tradição intelectual só vier a produzir efeitos em sua forma pura, nunca poderemos avaliar o lugar das ideologias e ideias no mundo, pois a propria existência já viola a pureza dos manuais.

Paulo Guedes, atual ministro da Economia, é fervoroso entusiasta da narrativa de Friedman, que, segundo ele, demonstrou que “uma trágica atuação do Fed, o banco central americano, e não uma falha sistêmica das economias de mercado” foi a grande razão da crise .

A tentativa de definir a tradição liberal ou estabelecer um cânone também é imprecisa, vaga e anacrônica no texto. Ante a profunda influência do pensamento liberal nos últimos séculos e sua ampla variedade interna, as menções amplas ao conceito de liberalismo, sem qualquer adjetivo ou explicação mais precisa, pouco contribuem. Uma lista de autores que vai de Hayek a Rawls, claros adversários no debate público e na politica norte-americana, quer dizer pouco ou quase nada.

Como já dito, o debate sobre o liberalismo realizado pelo artigo não apenas tem pouco de novo, mas não faz jus ao produzido recentemente sobre o tema. O que mais interessa no texto, entretanto, é sua avaliação da conjuntura. Além do fato de que alguns dos autores atuam com frequência como intelectuais públicos, com colunas semanais em jornais de grande circulação, sua opinião merece ainda maior destaque por seus cargos em governos anteriores e vínculos com o grande empresariado.


Uma das teses fundamentais do texto em relação à conjuntura é a legitimidade de Bolsonaro como ator e portador de ideias toleráveis em uma ordem democrática. Contrários ao pluralismo liberal-democrático seriam os seus adversários: "A vitória do capitão reformado é fruto da emergência de novas forças políticas na sociedade e do exercício legítimo da alternância de poder. É nessa dimensão que ele deve ser entendido por aqueles que comungam de uma visão plural da democracia".

De acordo com o argumento do artigo, antidemocráticos são os que questionam e defendem a imediata ação contra um governo que se manifesta publicamente a favor do extermínio de minorias, do aniquilamente da oposição, de destruição das instituições, da negação da ciência e da constituição de milícias armadas.

Todos os movimentos do texto caminham no sentido de normalizar Bolsonaro e suas ideias, seja por meio de falsas equivalências com a esquerda, seja por tratá-lo como expressão de legítimos dissensos da sociedade brasileira perante uma suposta hegemonia da esquerda que, no artigo, atinge até mesmo a grande mídia.

No esforço de compreender as origens do bolsonarismo e as causas da sua eleição, os autores fogem de elucubrações mais sofisticadas e responsabilizam as esquerdas, que, com seu afã pela polarização, produziram o presidente: “Bolsonaro é, antes de qualquer coisa, o resultado de um processo de polarização política da sociedade brasileira muito anterior a sua eleição. A raiz contemporânea desse fenômeno remonta à retórica violenta da esquerda à época imediatamente anterior de sua chegada ao poder, com o 'Fora, FHC' e seu esforço para estigmatizar e deslegitimar um governo de clara orientação social-democrata”.

Em interpretação sócio-histórica absurda, eles sugerem uma relação direta de causalidade entre uma ação política da esquerda de 21 anos atrás, o “Fora, FHC” —no meu entender, aliás, um erro à epoca— e a emergência do bolsonarismo. Não há maior justificativa sobre os critérios da escolha, nem reflexão sobre suas eventuais continuidades.

Gostaria de conhecer melhor os pressupostos que embasam argumento tão pouco usual, ou mesmo a escolha de 1999 como marco inicial. Por que não o “Fora, Collor”, as Diretas Já ou o comício da Central?


A demanda de autocrítica das esquerdas vem, por sua vez, acompanhada de tímidas menções aos erros do PSDB, sem referências ao questionamento dos resultados eleitorais em 2014, por Aécio Neves, ou mesmo à escolha no mínimo "ambígua" de FHC —para utilizar um termo do texto que sera logo debatido— de lutar por um novo mandato em pleno exercício do poder, como quando da aprovação da emenda constitucional da reeleição.

O texto segue com uma longa lista de senões ante as credenciais democráticas do PT, que para o leitor soam mais graves que os do bolsonarismo. A lista vai do questionamento do respeito à liberdade de imprensa ao auxílio a ditadores vizinhos.

Outra vez acaba pouco justificada a seleção dos episódios: “Há igualmente contas que pesam sobre a esquerda brasileira [...]. A primeira delas diz respeito a sua relação ambígua com a democracia e as instituições. Alguns exemplos: o inaceitável suporte político e financeiro, via BNDES, à ditadura castrista e à escalada autoritária na Venezuela; episódios como a 'devolução' dos boxeadores cubanos e a defesa intransigente de um condenado por homicídios na Itália; a permanente retórica de 'regulação da mídia' e o processo sistêmico e amplamente documentado de corrupção do Estado brasileiro”.

A esquerda teria, por esse trecho, uma relação “ambígua” com a democracia e as instituições. Em um texto que pretende analisar o bolsonarismo, o raciocínio não tem outro papel que reforçar o sistema de falsas equivalências e normalizá-lo. Os autores constroem toda sua argumentação a partir de uma sugestão das afinidades entre o petismo e o bolsonarismo, que, em ultima medida, se amparariam nas similaridades entre comunismo e fascismo, ambos inimigos da "sociedade aberta".

A associação direta do PT com o comunismo nem mesmo merece maior reflexão no artigo, mas surge de crenças não ditas, que nesse ponto, aliás, muito se aproximam da retórica de Jair Bolsonaro, que sempre atribuiu aos petistas a intenção de transformar o Brasil em uma ditadura comunista.

Para os autores, os liberais ocupam um lugar neutro, de recusa às práticas antidemocráticas cultivadas por comunistas, ou seja, pelo PT, e por fascistas: “É possível fazer de conta que nada disso é importante, que tudo é justificável à luz do 'embate político' e de uma estranha lógica seletiva sobre boas e más ditaduras. Na visão dos liberais, não. A democracia não comporta esse tipo de seletividade, estejam no poder forças à esquerda ou à direita do espectro político".


Esse apurado senso de justiça permite aos autores concluir que, apesar da gritaria da esquerda, as instituições funcionam: “Dizer que as instituições funcionam não significa concordar com toda e qualquer decisão tomada, seja pelo Congresso, seja pelo STF”.

Segundo os autoproclamados liberais, não se pode confundir o combate ao autoritarismo com a proibição do dissenso. O texto mais uma vez sugere que não apenas Bolsonaro defende pautas autoritárias, mas que a esquerda também o faz. A defesa do “Fora, Bolsonaro” seria uma delas.

“A democracia liberal é avessa à proibição estatal do dissenso. É preocupante assistir à atuação de grupos que defendem pautas autoritárias, em diversas direções. Sua atuação reflete, antes de qualquer coisa, a permanência de cultura despótica na base da sociedade brasileira.”

O texto não define quem deseja proibir o dissenso. Pela argumentação, eu pensaria na esquerda, e talvez até mesmo incluísse o bolsonarismo nesse grupo. Os autores preferem, todavia, recorrer ao termo cultura e classificar Bolsonaro como populista, dois excelentes conceitos para fazer acusações genéricas e definir com pouco rigor o objeto da sua crítica.

Nesse ponto do artigo surge uma possível razão da escolha do “Fora, FHC” como marco inicial do processo que levaria ao bolsonarismo. Nas entrelinhas, o texto sugere que a defesa do impeachment de Bolsonaro é mais uma das manifestações do autoritarismo da esquerda.

Ainda de acordo com os autores, o governo Bolsonaro decorreria de um “conjunto relevante de tendências da vida política brasileira”, como “pensamento conservador”, “uma demanda difusa pela ética na vida pública” e “uma ampla e difusa aliança com o mercado a partir da pauta econômica formulada por Paulo Guedes e sua equipe”.


A naturalização, simplista perante os olhos de qualquer teoria da representação política sofisticada, dos vínculos entre sociedade e governo, interessa pouco. Mais sugestivos são os adjetivos que qualificam a aliança com o mercado: ampla e difusa. Eles se vinculam a outros termos, dessa vez usados para qualificar o lugar da agenda liberal no governo, que seria objeto de um “consenso frágil” e dotada de resultados “bastante tímidos”.

A moderação revela que a ambiguidade em relação à democracia, atribuída à esquerda, talvez seja característica dos autores, ávidos por normalizar as ações autoritárias e o discurso fascista do governo Bolsonaro ante a esperança de “reformas liberais”.

O objetivo é dissociar o governo Bolsonaro da tradição liberal: “Tudo isso reflete o fato de que, apesar de iniciativas e intenções liberais, o governo Bolsonaro não é, em seu conjunto, um governo liberal. Não vai aí uma distinção trivial. O liberalismo supõe compromissos que vão muito além dos temas relativos ao livre mercado, como respeito a instituições, afirmação de direitos, cultivo de valores associados à liberdade. O atual governo anda longe disso”.

De acordo com os critérios de pureza estabelecidos pelos autores para definir o liberalismo, dificilmente o encontraríamos na história. Não creio que seria muito diferente, caso seguidos os mesmo requisitos, os casos do comunismo e do conservadorismo.

O texto ignora a evidência de que, perante grande parte do empresariado, da grande mídia e de outros grupos sociais relevantes, a retórica do liberalismo econômico, em sua versão mais radical, próxima ao anarcocapitalismo, é central para a construção da legitimidade de um governo que adota, para sermos moderados, uma retórica de extração claramente fascista.

Em meio a formulações vagas sobre ideologias políticas e do esforço para equiparar a esquerda ao bolsonarismo, a indicação explícita do texto é: esperemos 2022, pois as instituições e a democracia funcionam. Quem discorda e defende o impeachment do presidente é, segundo os autores, autoritário.


Por que assistimos a uma volta do fascismo à brasileira

 

 

Por que assistimos a uma volta do fascismo à brasileira

Intelectuais da USP comparam bolsonarismo ao movimento integralista da década de 1930



VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)

[RESUMO] Professores da área de humanas da USP argumentam que a extrema direita brasileira atualiza, com particularidades históricas, discursos e estratégias da tradição fascista do país —visíveis no fundamentalismo religioso, na defesa da família patriarcal e no culto à violência—, que remonta ao integralismo liderado por Plínio Salgado.

A proposta presidencial, na reunião ministerial gravada em 22 de abril, de armar a população para a defesa daquilo que Jair Bolsonaro chama de “liberdade”; as agressões físicas e as tentativas de intimidação a jornalistas e a membros do Supremo Tribunal Federal (STF); o acampamento dos 300 do Brasil em Brasília —um grupo armado bolsonarista, segundo o Ministério Público do Distrito Federal; e a propalada ligação do bolsonarismo com as milícias são fatos que deram urgência à pergunta sobre se estamos diante de uma ascensão fascista no país.

Não existe um consenso entre estudiosos sobre a definição de fascismo. Em parte, a dificuldade vem da própria natureza do fenômeno, que escapa a identificações fáceis. O fascismo foi reacionário e revolucionário; buscou a tradição, mas admirava a tecnologia; pregava a ordem por meio da rebelião; apresentava-se contra o sistema, mas tinha fortes ligações com as elites; falava em povo, apesar de ser profundamente autoritário e de sufocar qualquer crítica à liderança.

Como argumenta o historiador Robert Paxton, talvez seja melhor guiar-se pela estrutura das paixões que caracterizaram o fascismo. Algumas delas foram o culto à violência e ao militarismo; a crença de que a salvação da pátria requer a eliminação dos inimigos internos por meio da mobilização permanente; o uso da identidade nacional através de uma concepção imunitária e agressiva de corpo social. Unindo tudo, a obediência ao líder, percebido como uma encarnação da vontade nacional.

Não se pretende enfrentar aqui a complicada e necessária discussão acadêmica sobre o caráter do fascismo em geral, que foge ao escopo de um artigo voltado para os temas urgentes da conjuntura brasileira. Deseja-se, antes, lembrar que o bolsonarismo ressoa discursos e estratégias de uma velha tradição fascista local, cuja atualização, nos parece, ajuda a explicar o que está acontecendo.

A AIB (Ação Integralista Brasileira), liderada por Plínio Salgado, formada em 1932, no contexto dos efeitos da Grande Depressão, constituiu uma importante iniciativa fascista. No seu auge, chegou a ter ao redor de um milhão de aderentes. Em 1938, após um fracassado golpe armado contra o Estado Novo varguista, a AIB se desintegraria, levando Plínio Salgado para o exílio em Portugal.

O líder integralista voltaria ao Brasil em 1946 para assumir a presidência do PRP (Partido de Representação Popular), agremiação que daria roupagem pseudodemocrática ao integralismo no contexto da democracia do pós-guerra. Após o golpe militar de 1964, o PRP seria extinto, dessa vez com a decretação do AI-2 por Castelo Branco.

A filiação de Plínio Salgado e de seus seguidores mais fiéis ao partido pró-ditadura (Arena) acabaria por dispersar os herdeiros da AIB, tendência reforçada pela morte do líder integralista em 1975.

Os integralistas enxergavam a nação como um organismo em estado de profunda crise, ameaçada em sua unidade e ferida de morte pela corrupção oligárquica e por graves conflitos estaduais. Para os seguidores de Plínio Salgado, a nação também sangrava em função do materialismo e da insensibilidade dos liberais. Se ideologias radicais ateias e internacionalistas vingassem, alertavam os membros da AIB, isso representaria a própria morte do corpo social: a escravização do Brasil frente ao movimento comunista planetário.

Para salvar a nação, os integralistas defendiam o desmantelamento da democracia liberal e a construção de um “Estado orgânico”, baseado em representações corporativas (classes e grupos de interesse) e intermediadas por uma liderança incontestável —o “chefe nacional”.


A corrupção oligárquica, o separatismo, o materialismo burguês, a desordem e os conflitos de classe representariam um repúdio profundo aos valores fundamentais e imutáveis da “alma brasileira”, entre os quais “os princípios eternos da religião do povo” e o “sentimento da família e dos deveres para com ela”.

Como se vê, a religião cristã e a família constituíam os pilares do projeto fascista brasileiro nos anos 1930. A partir da família patriarcal se ergueriam as bases da “família brasileira”, imersa nos princípios atemporais do cristianismo. Não à toa, o lema integralista era “Deus, Pátria, Família”. Colocava-se a pátria no meio dos dois sustentáculos da alma nacional —Deus e família— exatamente porque ela constituía, nos termos de Plínio Salgado, a “síntese do Estado e da nação”.

Há paralelismos na retórica de integralistas e bolsonaristas. A retomada da religião cristã —agora em versão neopentecostal—, da família e da pátria parece servir para rearticular um núcleo fascistizante de longa data na sociedade brasileira. É notória a relação existente entre Bolsonaro e parte dos líderes evangélicos. Uma aliança que repercute na popularidade de Bolsonaro entre os fiéis, assim como na adesão da chamada bancada da Bíblia aos projetos do governo federal.

A proximidade de Bolsonaro com um tipo de fundamentalismo religioso permite sublinhar a contraposição, tão cara às milícias virtuais alinhadas ao presidente, entre o “vagabundo” e o “pai de família”. Essa polaridade revela a intenção das hostes bolsonaristas de purificar violentamente a nação de seus “inimigos”.

Tal como o bordão deixa claro (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”), a saída para acabar com a sangria do país, causada pela corrupção, crise na segurança pública e avanço do globalismo comunista, envolve colocar uma suposta homogeneidade nacional acima de quaisquer outras identidades e compromissos, respeitando seu pilar fundamental —a religião cristã—, algo que vai ao encontro das tradições do fascismo à brasileira.

O manifesto da Aliança pelo Brasil, partido em construção por Bolsonaro, afirma que o primeiro e mais importante objetivo da nova agremiação política será o de “respeitar Deus e a religião”, reconhecendo “o lugar de Deus na vida, na história e na alma do povo brasileiro”.

Segundo o manifesto, o brasileiro caracteriza-se por ser um povo “religioso e solidamente educado nas bases do cristianismo”. Mais do que isso: haveria no Brasil um verdadeiro amálgama entre Deus e nação, uma vez que esta última teria sido fundada sob a cruz (“Terra de Santa Cruz”), portanto alfabetizada e educada desde o início segundo o primado da religião cristã.

O mesmo manifesto da Aliança pelo Brasil caracteriza a família como “núcleo natural e fundamental da sociedade”. Trata-se, logicamente, de um tipo particular de família: patriarcal, monogâmica, heteronormativa e baseada em rígidos estereótipos de gênero.

Comportamentos e relações que se afastam desse padrão —de relações homoafetivas a estruturas familiares alternativas ao paradigma nuclear— não constituem meras questões de pluralidade afetiva, mas temas de segurança nacional (“chaga ideológica de nosso país”, diz o manifesto), sobre os quais o Estado, principalmente por meio de políticas educacionais e culturais, deve dedicar especial atenção.

A família também ocupa lugar decisivo no discurso de Bolsonaro, tanto porque se encontraria genericamente em perigo quanto pelo fato de que a sua família constitui um valor tão supremo que se impõe ostensivamente a decisões políticas.

A família cristã é ainda um espaço pretensamente idílico, em que lugares de autoridade não estariam em conflito e divisões sociais de gênero não seriam questionadas. Em meio a uma sociedade antagônica, espera-se que a família cristã imponha a paz de uma ordem natural e, por isso, supostamente inquestionável do ponto de vista moral.

Os deslizes de estilo, as alterações de tom, as inadequações de vocabulário tornam-se, no interior do sistema de linguagem, a prova e a marca de autenticidade de Bolsonaro, criada pela dissolução da fronteira entre público e privado. É a linguagem de um pai que fala com a sua família, tomado pela cólera da impotência, revertida em delírio de perseguição, cujo objeto flutuante vai da imprensa às universidades e aos padrões não heteronormativos, calcado em neologismos como esquerdopata e gaysista.

 

Quanto à pátria, o assunto é mais complicado. O integralismo não só era crítico ao crescente controle da economia pelo “estrangeiro” —subordinador da pátria “às oscilações caprichosas de Londres e depois de Nova York”, nas palavras de Salgado—, como defendia a necessidade de forte intervenção do Estado na economia, coordenando a produção aos objetivos nacionais e protegendo os mais frágeis dos “abusos do capitalismo”.

Como sabemos, o bolsonarismo defende o contrário: se apresenta estranhamente submisso a outro país —no caso, aos Estados Unidos. O ideólogo máximo do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, vê no trumpismo a trincheira final da defesa da nação contra as garras do globalismo comunista —justificando, assim, o apoio de Bolsonaro a Donald Trump. Ao mesmo tempo, Bolsonaro vem aprofundando a agenda neoliberal e desmontando o Estado, o que deixa os mais vulneráveis crescentemente desamparados frente ao mercado.

Apesar de invulgar quando considerado do ponto de vista histórico, porque inverte o sentimento de proteção que liga as massas ao líder nas experiências clássicas, o script bolsonarista parecia caminhar relativamente bem até a eclosão da pandemia.

As assim chamadas reformas estruturais, em sua maioria destinadas a flexibilizar o mercado, retirando direitos e garantias sociais consagrados na Constituição Federal de 1988, iam sendo efetivadas e socialmente aceitas; até porque faziam coro com a ideia da meritocracia, que já grassava há algum tempo dentre os setores médios, e que a ascensão do pentecostalismo, com sua teologia da prosperidade, ia ajudando a difundir junto aos pobres.

O fato é que, aclimatada a um país periférico e em tempos ainda de hegemonia neoliberal, mesmo que decadente, a exortação à nação servia para convalidar uma política econômica ultraliberal e de destruição planejada da capacidade de intervenção do Estado, o que claramente a contradiz. Como não faria nenhum sentido o "make Brazil great again", fica o “Brasil acima de tudo”, mas abaixo dos Estados Unidos.

Esse traço não estava presente na experiência pretérita do integralismo, entre outras razões, porque o momento histórico era outro. Vivia-se um período em que não só as classes médias —de onde provinham os quadros intelectuais mais importantes do integralismo—, mas parte significativa das próprias elites econômicas mostravam-se bem mais dispostas a apostar e agir pela construção, no Brasil, de um Estado nacional com relativa força.


Um fascismo ultraliberal como o de Bolsonaro seria viável? Até que ponto um movimento com essas características pode ser considerado fascista? É verdade que a maior parte das experiências historicamente identificadas como fascistas não foram economicamente liberais, bem ao contrário, mas isso não quer dizer que exista uma relação unívoca entre fascismo e estatismo.

Ludwig von Mises, no final dos anos 1920, exaltava as virtudes do líder dos camisas-pretas italianos pelo resgate que este promovera do princípio da propriedade privada. O próprio Mussolini iniciou seu governo nos anos 1920 com o economista liberal Alberto De Stefani à frente do Ministério da Fazenda, concentrando-se inicialmente em realizar políticas de livre-comércio, redução de impostos, privatizações e cortes de gastos e empregos públicos.

Foi somente durante a Grande Depressão dos anos 1930 que o governo fascista passou a investir em obras públicas para a geração de empregos e na socialização dos prejuízos de setores industriais.

Ainda que o ultraliberalismo econômico não sirva para descaracterizar o bolsonarismo como movimento fascista, é indubitável que a ideologia do Estado mínimo de Paulo Guedes distingue substancialmente o atual momento do fascismo brasileiro daquele dos anos 1930.

No entanto, mesmo considerando as diferenças, o bolsonarismo está muito mais próximo das marcas características do integralismo do que da tradicional direita conservadora brasileira, pela simples razão de que ambos, bolsonarismo e integralismo, representam um fenômeno mobilizador, que vem de baixo para cima.

Nos termos da historiadora Sandra Deutsch, os conservadores visam, sobretudo, manter uma ordem considerada em dissolução; os reacionários vão além, buscando conservar, mas também restaurar um passado mítico. Conservadores e reacionários podem até pregar vias autoritárias para atingir seus objetivos, mas não há neles, como há no fascismo, a pulsão mobilizadora de massas e do culto à violência, profundamente desumanizadora do “outro” configurado como uma mácula de grupo, tornando-o alvo de extermínio literal.


Quando, em 2015-2016, as elites tradicionais voltaram a se unir para derrubar o lulismo, fizeram-no de forma puramente restritiva, com o intuito de esvaziar o conteúdo social da Constituição de 1988. Pelejando para transformar a democracia em um mero arremedo oligárquico sem disfarce, o establishment social e econômico parecia então ter desistido de oferecer ao país uma alternativa crível.

É no vácuo deixado pelas forças tradicionais de direita que se compreende a possível retomada do fascismo à brasileira. Mesmo tendo sido oportunisticamente atiçado, no início, por uma oposição sem força eleitoral suficiente para derrotar a esquerda nas urnas, o bolsonarismo acabou libertando-se da tutela conservadora.

Eis a novidade: pela primeira vez na história do Brasil republicano, um autoritarismo vindo de baixo para cima não teve seu voo interceptado no meio do caminho por uma alternativa conjurada pelas elites, como se deu com Getúlio Vargas nos anos 1930 e com o golpe de 1964.

Na conjuntura 2015-2018, o bolsonarismo não apenas credenciou-se para exprimir, a seu modo, a raiva plebeia contra a destrutiva estagnação econômica, como também capitalizou para si, pelo menos em parte, a gradual corrosão da legitimidade dos que ocupavam e ocupam as posições altas do Estado e da sociedade, em sua patente incapacidade para estender, contra a penúria material e a insegurança crescente, o manto protetor das estruturas que comandam.

Nesse sentido, a extrema direita soube se aproveitar do impulso anti-institucional desperto pelas manifestações de 2013, com suas tópicas de antirrepresentação política e refratária aos modelos de governabilidade característicos da democracia pós-Constituição de 1988. De modo análogo às experiências clássicas, o fascismo à brasileira surfou nessa onda, apresentando-se como uma força que repudiava o jogo institucional predominante na vida política do país.

Cavalgando, assim, o corcel antissistêmico, Bolsonaro reatou o fio perdido do fascismo brasileiro com a energia que emergiu em junho de 2013, potencializada pela Operação Lava Jato. Depois de 40 anos de silêncio, o movimento bolsonarista resgatou grupos como TFP (Tradição, Família e Propriedade), as bases do janismo e do malufismo da década de 1980, caracterizadas pelo sociólogo Flávio Pierucci como protofascistas, e políticos como Enéas Carneiro, que no primeiro turno da eleição presidencial de 1994 chegou a ter 7,4% dos votos.


Diferentemente dos integralistas e seus camisas-verdes, os bolsonaristas ainda não têm uma estrutura paramilitar organizada, mas conexões com as milícias policiais e a normalização de “camisas-pardas” pró-Bolsonaro em espaços públicos apontam para este caminho: a sedimentação do apoio de massa a uma ideologia e movimento fascista à brasileira, com o cortejo de horrores que sempre traz consigo.

Parte da história moderna do país e um dos subprodutos de suas fundas mazelas, o fascismo à brasileira sempre esteve por aí, com seu rosto e gestos ameaçadores, ainda que, em geral, perambulando nas margens da vida nacional.

Agora, contudo, galgou um dos centros decisórios do Estado brasileiro, o que significa que a velha ameaça logrou dar um alarmante salto de qualidade. É tarefa número um de todos os democratas não só impedir que ela se consume, mas fazê-la regredir ao espaço marginal de onde nunca deveria ter saído.


André Singer é professor titular do Departamento de Ciência Política da USP.

Christian Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP.

Cicero Araújo é professor titular do Departamento de Ciência Política da USP.

Felipe Loureiro é professor associado do Instituto de Relações Internacionais da USP.

Laura Carvalho é professora associada do Departamento de Economia da USP.

Leda Paulani é professora titular do Departamento de Economia da USP.

Ruy Braga é professor titular do Departamento de Sociologia da USP.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da USP.


domingo, 13 de setembro de 2020

‘BRASIL É DESIGUAL DEMAIS PARA SE DESENVOLVER’

 

 

‘BRASIL É DESIGUAL DEMAIS PARA SE DESENVOLVER’

Economista francês defende choque de transparência para diminuir ‘distância entre pessoas e governos’ e também impostos sobre fortunas e heranças no pós-pandemia


Economista francês defende imposto sobre fortunas e heranças no pós-covid.

Andrade tem 33 anos e é filho de Dona Marina e Seu Antonio. Ela sempre cuidou da casa e dos 7 filhos; ele trazia do mar o sustento da família. A vila de pescadores no litoral do Ceará foi batizada como Preá. Por lá as crianças sempre correram soltas pelas ruas de areia, nas idas e vindas entre a única escola pública, a casa simples e a praia.

Aos 18 anos, Andrade enxergava a pesca como única opção de futuro, nada além disso. Decidiu tentar a sorte na cidade grande. Partiu para São Paulo e lá ficou por quase 10 anos. Começou como cumim em um restaurante chique até se tornar sommelier.

Mas os vinhos e a boa mesa ficaram no passado. Ele resolveu voltar para o Ceará, assim como uma centena de jovens locais, que, como Andrade, no passado haviam sido confrontados com o dilema “pescar ou migrar” e tinham optado pela segunda opção.

O bom filho à casa retorna virou uma realidade no Preá por um simples motivo: oportunidades. Conhecida pelas fortes correntes de vento em boa parte do ano, a região se transformou na última década em meca mundial para a prática do kitesurf – esporte aquático em que uma prancha se desloca ao sabor dos ventos puxada por uma pipa gigante, que atrai cada vez mais adeptos.

Hoje, 80% da economia da região gira em função do kitesurf. E o desenvolvimento do turismo local tem sido robusto e sustentável, uma boa referência para o Brasil.

Compartilho esta história porque ela se conecta à nossa conversa desta edição. Andrade nasceu em uma das regiões mais pobres e desiguais do país: o nordeste brasileiro. Ao mesmo tempo, uma das regiões com o maior potencial de desenvolvimento do planeta: sim, o nordeste brasileiro. O Preá e a vida deste jovem de 33 anos são a materialização do que pode e deve ser o nosso futuro: uma nação que gera oportunidades e direito de escolha aos seus cidadãos, independentemente do CEP de nascimento.

Para conversar sobre desigualdades e geração de oportunidades, convidei para dialogar um dos mais respeitados pensadores e autores da atualidade. Seu livro O Capital no Século XXI vendeu no mês de lançamento, em 2013, mais do que qualquer outro livro da Harvard University Press em 101 anos. Nenhuma obra de economia teve impacto tão explosivo. Foi seguramente o livro de economia mais debatido dos últimos anos.

A revista The Economist declarou que a obra poderia “revolucionar o modo como as pessoas enxergam a história econômica dos últimos dois séculos”. A também britânica “Prospect” acrescentou o autor à sua lista de pensadores mais influentes do mundo ocidental.

Economista francês, ele é reconhecido mundialmente pelas pesquisas sobre desigualdade e redistribuição da renda. Partindo de uma fórmula simples, constatou que, sem mudanças políticas, não há nem haverá como escapar do aumento da desigualdade, visto que a renda sobre o capital avança em ritmo mais acelerado do que o crescimento econômico.

Thomas Piketty se junta hoje à galeria de notáveis que se dispuseram a compartilhar, aqui no Estadão, suas visões de vanguarda sobre o mundo contemporâneo e sobre o pós-pandemia. As ideias e teses do francês não são uma unanimidade. Mas, sem dúvida, são provocativas. Bem embasadas, servem de combustível para necessárias reflexões.

• O que me traz a você é minha curiosidade. Tenho buscado aprender e discutir como fazer um Brasil menos desigual, gerador de oportunidades para todos. A enorme maioria da população brasileira vive uma perversa pobreza hereditária, sem mobilidade social. Na sua opinião, o que fez do Brasil um dos países mais desiguais do planeta?

Uma das conclusões-chave que trago no livro Capital e Ideologia é que, no longo prazo, o que traz prosperidade a um país é a diminuição da desigualdade, um sistema educacional mais inclusivo e uma redução da concentração de renda. O Brasil não passou pelas grandes transformações no século 20 que em alguns lugares diminuíram a desigualdade e, com isso, aumentaram a prosperidade da economia. O Brasil não sofreu tanto com os horrores das duas Guerras Mundiais, que, nos EUA e no Leste Europeu, por exemplo, contribuíram bastante para a alteração do cenário político, para a competição pelo poder entre grupos sociais. A depressão econômica antes e depois das Guerras ajudou a desacreditar a antiga elite e a reduzir a legitimidade do sistema de mercado, desse sistema capitalista do laissez-faire, o que forçou um rebalanceamento das forças. No Brasil, isso não aconteceu. O legado da escravidão, esse legado específico da origem do Brasil, não permitiu o desenvolvimento de novas forças. A história dos partidos políticos do país, a importância dos militares, é uma situação inicial de muitas desigualdades.

Está completamente errada, porém, a visão de que uma cultura de igualdade ou de desigualdade é uma característica permanente de um país. Observando diferentes casos, você vê que países que hoje parecem muito igualitários, como a Suécia, e países ainda mais desiguais do que o Brasil se transformaram completamente depois de determinadas mudanças políticas, mudanças até mesmo pacíficas. Na história política do Brasil, você sabe melhor do que eu, o voto universal é relativamente recente. Só começou realmente no final dos anos 1980. Todas as Constituições antes disso excluíam parcelas da população.

Faço televisão há mais de 20 anos. Falo com 30 milhões de brasileiros toda semana. Sou um bom ouvinte e gosto de contar histórias. A desigualdade brasileira ninguém me relatou: eu vi. E esse desconforto me fez sair da zona de conforto e começar a procurar soluções para nossos problemas. Como você explicaria para uma pessoa comum, alguém do povo, que a vida dos filhos dela e dos netos dela pode melhorar?

É difícil estimar prazos e expectativas consistentes quanto ao que pode ser realizado em 5 ou 10 anos. Há um discurso conservador, especialmente no Brasil, em que as elites dizem que a redistribuição de renda só poderá ser feita no futuro, quando o país for mais rico, e que, se feita agora, será um desastre até mesmo para os pobres. O que eu quero dizer para os brasileiros é que, pelas evidências internacionais e pelas evidências históricas, o Brasil é hoje desigual demais para conseguir se desenvolver. Não estou sugerindo zerar a desigualdade e taxar as pessoas ricas em 100%. Mas, no Brasil, hoje você paga altos impostos indiretos – de 20%, 30%, na sua conta de eletricidade, por exemplo. E, se você herda uma herança imensa, você paga somente 1% ou 2% de impostos. Em muitos países, inclusive alguns dos mais ricos do mundo, as pessoas pagam menos impostos na conta de eletricidade e mais impostos sobre altas quantias de dinheiro.

• Sempre que discutimos políticas de proteção social, de diminuição das desigualdades e geração de oportunidades, temos que ficar atentos para que não se torne uma equação de soma zero. Qual o melhor caminho para o Brasil considerando a estrutura do Estado brasileiro: cara, pesada, ineficiente, corrupta e com pouquíssima capacidade de investimento?

Vocês precisam de mais transparência sobre quem está pagando o quê e sobre quem está recebendo o quê. No Brasil, é muito difícil de saber, em nível de bens econômicos, quem está pagando tais e tais impostos e quem está acessando tais e tais serviços. Para gerar confiança no Estado brasileiro e para aumentar a capacidade do governo de investir, essa transparência é fundamental. Supostamente nós vivemos a era da bigdata, mas, na prática, a nossa bigdata é falsa, não passa de um grande monopólio privado das grandes empresas de tecnologia. Estamos, na verdade, na era da grande opacidade no que se refere à administração pública. Da capacidade do governo de rastrear a desigualdade, de rastrear dados de saúde pública etc, tudo é muito mais restrito do que deveria ser. Acho importante municiar as pessoas, dar as informações, dar a possibilidade de as pessoas acompanharem e avaliarem o que o governo está fazendo, acompanhando os progressos e fracassos. Se vo

‘O Brasil é desigual demais para se desenvolver’ Thomas Piketty

cê tem uma certa distribuição da carga tributária no Brasil em 2020 e 2021, é importante fixar uma meta para 2022, 2023, 2024, 2025, e divulgar isso publicamente para mostrar o que foi feito o que não foi. Por enquanto existe um grande discurso sobre justiça social, mas não os meios para rastrear e monitorar se estão realmente indo nessa direção.

Tem uma frase que você repete com frequência: “Vamos aos fatos”. E isso me conecta a você. Mas os seus fatos vêm dos dados e análises históricas. Já os meus fatos vêm da rua. Entre tantas deficiências e ineficiências que a pandemia veio iluminar no Brasil, chama a atenção a maneira como lidamos mal com dados e tecnologia no governo. Temos uma população conectada, com mais de 200 milhões de chips de celular ativos, mas um governo ainda muito distante do que poderia ser um governo digital. Como você avalia a ideia de transformar os governos em plataformas digitais e como isso poderia impactar na redução de desigualdades?

É muito importante disponibilizar informações aos cidadãos. Isso é relativamente fácil agora, ou pelo menos deveria ser relativamente fácil, considerando as novas tecnologias disponíveis. Mas ainda há uma grande distância entre as pessoas e os governos. Acho que temos que criar uma linguagem que traduza princípios e aspirações gerais em ações concretas e notáveis. Quando você diz “nós vamos trazer 90% das crianças para o ensino fundamental e ter um professor para cada 25 ou 30 alunos”, você divulga um objetivo simples, quantitativo, que pode ser monitorado, que pode ser acessado. As grandes transformações históricas precisam conseguir se expressar em termos quantitativos.

No livro você mostra como a França diminuiu desigualdades muito mais depois da guerra do que depois da Revolução Francesa. O Brasil também nunca reduziu tanto sua desigualdade como nesta pandemia, com o necessário auxílio emergencial. Mas é um voo de galinha, porque não está ancorado em nenhum planejamento e porque falta excelência de execução. Muito se tem discutido sobre a origem de recursos para programas de proteção social e investimentos de infraestrutura. Qual sua opinião sobre a necessidade de rigor fiscal e sobre a emissão de dívidas de curto prazo e moeda por países como o Brasil?

Numa crise como esta, é muito tentador dizer “ok nós vamos fazer o Estado bancar tudo, aumentar a dívida pública, etc.”. Vejo, na Europa e nos EUA, pessoas de lados diferentes do espectro político defendendo que o governo se endivide e pague tudo, que os bancos centrais são fortes e que não é preciso se preocupar com os impostos neste momento. Eu entendo essa lógica, mas ela é perigosa. Não é algo que você pode fazer em qualquer lugar do mundo. Os mercados financeiros mundiais podem perseguir e machucar mais intensamente os países que não operam em dólar ou em euro. Mas, mesmo na zona do dólar ou do euro, em algum momento você terá que quitar as dívidas, pagar pelos gastos públicos. É necessário indicar agora em qual direção nós iremos.

Precisamos de um sistema tributário mais igualitário, com mais justiça fiscal, aumentando os impostos dos bilionários, dos milionários. O imposto de renda é importante, mas os impostos sobre as fortunas são mais importantes ainda. Porque o que acontece no topo da pirâmide social é que algumas pessoas concentram sua riqueza em empresas, sem caracterizá-la como renda – e sem serem devidamente taxadas, portanto. Nós vivemos numa época em que, em qualquer país, os bilionários aumentaram as suas fortunas, os seus lucros e os seus bens muito mais rapidamente do que a média das pessoas. Então é natural que em algum momento você peça mais a essas pessoas que cresceram mais o seu patrimônio. Tudo bem existirem pessoas ricas e pessoas pobres, contanto que a diferença não seja muito grande e que todos consigam crescer na mesma velocidade. Se você olha para dez anos atrás, as maiores fortunas eram de US$ 30 bilhões, US$ 40 bilhões; hoje, elas são de US$ 100 bilhões, US$ 150 bilhões, quase US$ 200 bilhões, como é o caso do Jeff Bezos (Amazon). E a economia norteamericana não cresceu nessa velocidade. É importante deixar claro desde já que uma fatia maior vai ser cobrada desses grupos – em parte, para pagar pela nova infraestrutura e pelos novos investimentos e, em parte, para pagar as dívidas que aumentaram por causa da pandemia.

Estes 1% mais ricos sempre foram acusados de passividade em relação às questões da desigualdade. E neste momento da história ou nos comprometemos de fato em sermos parte da solução ou vamos colapsar. Como você entende que deveria ser este comprometimento? Qual o papel do Estado nessa relação?

O que você vê na história é que isso não acontece voluntariamente. Você precisa da força do Estado. Eu acho a filantropia ótima. Mas ela deve ser algo além dos impostos, e não substituí-los. No final das contas, eu defendo que haja um imposto compulsório sobre as fortunas. Foi interessante observar as discussões que aconteceram durante as primárias do Partido Democrático dos

EUA. Tanto a Elizabeth Warren quanto o Bernie Sanders, que não venceram as primárias, conseguiram um apoio imenso dos eleitores com menos de 50 anos ao fazer duas propostas: um imposto anual sobre o patrimônio total dos bilionários e uma taxa de saída para aqueles que quiserem mudar de cidadania para fugir da tributação. Se você quiser ficar nos EUA, você vai continuar pagando os impostos de lá, mas, se você quiser sair dos EUA, desistir da nacionalidade norte-americana para conseguir outra, uma nacionalidade suíça, por exemplo, você tem antes que deixar de 40% a 60% da sua fortuna nos EUA. Acho que necessitamos de algo assim. Nossa ideia de fluxo de capital livre precisa mudar. Nós praticamente sacralizamos os direitos de alguém construir fortunas e poder apertar um botão e tirar seus bens do país. Isso não é sustentável, porque, no final, vai ser a classe média, a classe média-baixa que vai pagar todos os impostos do país. E isso, em algum momento, vai fragilizar o nosso contrato social.

Nessas conversas em que tento iluminar o debate pós-pandemia, eu ouvi do geneticista Peter Diamandis a seguinte frase: “Se você quer ser um bilionário, cause um impacto positivo na vida de um bilhão de pessoas”. O que você acha dela?

Bom, há muitos bilionários e oligarcas no mundo que eu não vejo fazendo nada. É importante observar que todos os bens, todas as coisas boas que acontecem no mundo são naturalmente coletivas. O Bill Gates não inventou o computador sozinho – existem milhares, milhões de engenheiros, de cientistas da computação, de técnicos, de pesquisadores, e nós não colocamos o valor deles no final de cada produto. Sem esse estoque de conhecimento comum, que foi acumulado pela humanidade por centenas de anos, nada seria possível. Então nós temos que ser mais conscientes de que a riqueza não é um passe de mágica de um único indivíduo. As coisas não funcionam assim. Nos EUA, houve uma grande mudança nos anos 1980. O governo decidiu ir atrás de mais inovação, e o presidente Ronald Reagan, em mensagem clara, disse que talvez aumentasse a desigualdade, mas que seriam tantas as inovações, tantas as descobertas úteis realizadas por bilionários que a renda média iria aumentar. Mas o que nós vimos 30 anos depois foi que o crescimento do PIB per capita nos EUA caiu à metade: ele foi de 1,1% por ano no período de 1990 a 2020, e, no período de 1950 a 1990, ou no período de 1910 a 1950, ele era de 2,2%.

No seus livros você discute a riqueza e os sistemas sociais ao longo da história. Também faz uma extensa discussão sobre a evolução da escravidão e da servidão. O Brasil tem uma terrível herança escravocrata, que, mesmo mais de 130 anos depois da abolição, ainda não foi devidamente endereçada. Nossas políticas reparadoras foram muito tímidas e ineficientes. Hoje somos uma sociedade que não gera oportunidades de maneira equilibrada entre brancos e negros. Nossa violência urbana mata de maneira desproporcional muito mais negros do que brancos. Durante a pandemia, o debate sobre racismo e antirracismo ganhou enorme relevância pelo mundo. No Brasil, não foi diferente. Pessoalmente entendo que temos que reconhecer nossos privilégios como homens brancos e ricos, sair da inação e mergulhar na defesa de narrativas antirracistas. Como você enxerga essa questão?

Essas questões foram negligenciadas por tempo demais, não só no Brasil, mas nos EUA, e também em países como a França e a Inglaterra, onde a história colonial, a experiência com a escravidão e a experiência após a escravidão tiveram um papel imenso no processo de industrialização. Na França, o Estado obrigou as antigas colônias de escravos, como o Haiti, a pagarem, de 1825 até 1950, uma compensação pela perda de propriedades dos antigos donos de escravos. Esse pagamento, aliás, gerou grande dívida e acabou afetando o PIB desses países. Então não houve uma reparação da escravidão; houve, sim, reparação para o outro lado, para os donos dos escravos. Recentemente, um dos maiores defensores brancos da abolição da escravidão, Victor Schoelcher, teve suas estátuas derrubadas na Martinica e em Guadalupe, e os franceses ficaram chocados, perguntando “por que estão com raiva do Schoelcher?”. Na verdade, o Schoelcher, a exemplo de muitos intelectuais liberais da época, como o Alexis de Tocqueville, defendiam a indenização dos donos de escravos. Para eles, não deveria haver nenhuma compensação para os escravos, e sim para os donos.

Mas nós não podemos falar só em reparação. Precisamos também de uma política antidiscriminatória combinada a uma política de renda universal. Em Capital e Ideologia, eu falo de um sistema de herança para todos, onde todos receberiam um valor mínimo ao completar 25 anos. Ela não substituiria as outras partes do nosso sistema social, como as escolas públicas, a rede pública de saúde ou a renda básica. Seria algo a mais. E universal, não importa quais os seus antepassados, nós não vamos fazer um estudo de genealogia.

Em alguns casos específicos, porém, isso se uniria a um programa de reparação e a uma política antidiscriminatória devido a injustiças passadas. A França deveria hoje devolver os impostos que foram pagos pelo Haiti, por exemplo. Nos EUA, em 1998 o Congresso aprovou uma indenização aos nipo-americanos que foram prisioneiros durante a Segunda Guerra Mundial. No caso dos nipoamericanos, não era muito, eram US$ 400, para pessoas que ainda estavam vivas em 1998 e passaram um, dois ou três anos num como prisioneiros durante a Segunda Guerra. Não houve nada assim para as pessoas que sofreram com a escravidão. E, de certa maneira, é tarde demais. Mas, para os afrodescendentes que sofreram com a segregação racial até os anos 1960, ainda há tempo.

No Brasil, as questões agrárias poderiam servir como uma ferramenta de reparação por injustiças do passado. No caso da Guiana Francesa, da Martinica, de Guadalupe, foram feitas propostas concretas nesse sentido. Eu não sei tanto sobre o Brasil, mas existem áreas nas Guianas, na Martinica, e em Guadalupe que ainda pertencem aos descendentes dos antigos donos de escravos, enquanto que os descendentes dos próprios escravos não têm terra nenhuma. É possível formar uma comissão para redistribuir parte dessas terras. Hoje existe o mesmo problema na África do Sul. Depois do fim do apartheid, não houve reforma agrária. Está na hora de pensar sobre isso.

• A reforma agrária no Brasil lidou mais com o lado social e pouco com a viabilidade econômica das terras distribuídas. Por isso acho que não funcionou tão bem. Ouço com atenção a ideia, mas eu não consigo enxergar de onde virá o dinheiro para esta herança mínima. Como pagar uma quantia para todas as pessoas de 25 anos?

Hoje, a herança média em um país como a França é de ¤ 200 mil. Mais da metade da população, porém, não recebe nada. As pessoas do topo recebem milhões. Algumas recebem bilhões. O sistema que estou propondo não é muito radical. Eu defendo que todas as pessoas com 25 anos recebam ¤ 120 mil – e que os herdeiros de milionários recebam ¤ 600 mil, bem mais do que os ¤ 120 mil dos demais. Então ainda estamos muito longe da igualdade de oportunidades. As pessoas gostam de falar sobre a igualdade de oportunidades, mas, quando se trata de aplicar o princípio, principalmente quando se trata do imposto sobre a herança, elas rechaçam o conceito. Existem muitas pessoas que, em termos de patrimônio, estão na metade de baixo da população e, mesmo assim, têm ideias boas de negócios: ¤ 120 mil, em vez de zero, farão muita diferença para elas.

Eu e você somos parte da geração 1971. Segundo o filósofo austríaco Rudolf Steiner, a vida humana se desenvolve ao longo de setênios. Estamos fechando o nosso sétimo setênio, que, segundo a teoria de Steiner, é o setênio do altruísmo, de uma fase expansiva, do questionamento diante do medo do envelhecimento, um período sedento por novidades. Qual deveria ser o legado da nossa geração?

Eu fiz 18 anos no fim do comunismo na Europa. O início do meu trabalho, das minhas pesquisas, foi observando esse fracasso imenso do comunismo soviético e do Leste Europeu. E, na época, se alguém me dissesse que, 30 anos depois, eu seria a favor do socialismo participativo, eu ia achar isso uma piada. Na época, eu era bastante anticomunista – eu ainda sou, na verdade – e muito mais a favor do livre mercado. A tarefa da nossa geração, pelo menos para mim, na Europa, é perceber que nós fomos muito longe na direção do hipercapitalismo e tentar construir alternativas econômicas, alguma esperança em outro sistema econômico. O nosso sistema capitalista atual está danificando o planeta, criando muita desigualdade. Depois do desastre comunista do século 20, nós precisamos pensar em uma nova forma de socialismo, muito mais descentralizada, mais participativa, democrática, federal. Precisamos continuar pensando. As pessoas da geração da Guerra Fria ou eram tentadas a serem comunistas ou eram muito anticomunistas – e elas ainda estão vivendo na Guerra Fria e não querem saber de alternativas econômicas. Penso que nós temos que reabrir a discussão. E penso que o crescimento das políticas identitárias é uma consequência de termos encerrado as discussões econômicas. Então, se você continuar dizendo para as pessoas que há apenas uma forma de política econômica e que os governos não podem fazer nada além de controlarem suas fronteiras e suas identidades, não é de se surpreender que, 20 anos depois, as pessoas só falem do controle de fronteiras e de proteção de identidade. Nós precisamos retomar a discussão econômica. Precisamos refletir sobre os desastres do século 20 e partir para um novo século.


domingo, 6 de setembro de 2020

Milícias se tornaram parte do problema da ineficiência do Rio

 

 

Milícias se tornaram parte do problema da ineficiência do Rio

Minha realidade de mãe burguesa e a do pelotão preparado para combate me obrigou a admitir que eu vivia numa zona de guerra

Fernanda Torres

Da minha janela, vejo a Lagoa, Ipanema e as Cagarras; à direita, o morro Dois Irmãos e a Pedra da Gávea; à esquerda, o Cantagalo e, nos fundos, o parque da Catacumba, com o Cristo ao longe.

É uma visão de tirar o fôlego que compensa, não mais, a tristeza de ter nascido, crescido no Rio e testemunhado a degradação de uma cidade fundada num dos mais belos acidentes geográficos do planeta.

À noite, as luzes da Rocinha e do Vidigal se acendem. Uma vastidão de barracos que viraram prédios; comunidades que, como tantas outras, se desenvolveram à margem do interesse público e sob o mando de organizações paraestatais.

A história dos feudos que controlam as diferentes áreas da cidade, onde habita a mão de obra empregada na construção civil, nos trabalhos domésticos e no setor de serviços, é formada por um
obscuro emaranhado de facções, milícias e bicheiros.

No vácuo do Estado, barões, traficantes e justiceiros assumiram para si a administração do caos, com a muda condescendência dos que, como eu, viviam sob a ilusão idílica da Cidade Maravilhosa.

Em 2018, a escola do meu filho menor, vizinha à Rocinha, enfrentou o assustador cotidiano da guerra travada entre o ADA e o Comando Vermelho, pelo lucrativo mercado de drogas que abastece a cidade.

Helicópteros sobrevoavam o pátio do recreio em voos rasante, acompanhados do som ensurdecedor de granadas e rajadas de metralhadora que ecoavam pelo vale. Para se proteger de possíveis balas de fuzis, as crianças foram treinadas a reagir ao alarme, formando filas ordeiras para retornar às salas de aula em meio ao terror.

 

Eu já havia enfrentado uma disputa de território na Rocinha, dez anos antes daquela, com meu filho mais velho criança, aluno da mesma escola. Era noite, fui buscá-lo no horário extenso e dei com um caveirão em frente ao portão do colégio, na ladeira que dá acesso à comunidade. Tensos, dez soldados armados de metralhadora faziam escolta para um companheiro que trocava o pneu do blindado às pressas. Todos vestiam coletes à prova de bala.

O paralelo entre a minha realidade de mãe burguesa e a do pelotão que se preparava para o combate me obrigou a admitir o óbvio: eu vivia numa zona de guerra. Entre deprimida e assustada, blindei o carro.

O calibre das armas usadas em uma ocasião e na outra mede o aprofundamento da crise de segurança no Rio. O caveirão lidava com uma batalha ainda invisível para os ouvidos e olhos dos que passeiam na orla. Uma década depois, era Beirute, a Síria e Sarajevo.

Certa feita, perguntei a um alto magistrado se era verdade que o PCC planejava se estabelecer no Rio. Com autoridade, ele negou a informação, dizendo que a facção paulista abortara a expansão carioca por considerar a divisão de poder da cidade confusa demais. “Aquilo lá é
uma zona”, teria dito um capo.

De fato. À velha guarda do bicho, ao CV, ao TC, ao TCP e ao ADA, se somaram as milícias de Santa Cruz e Jacarepaguá, que prometiam livrar a população dos bandidos e acabaram no Escritório do Crime. Os ducados levaram décadas para estabelecer seu poderio sempre avesso a um controle unificado, público ou paralelo.

O desmando crônico prosperou e, hoje, controla todos os setores da vida urbana: saúde, transporte, habitação, distribuição de gás, luz, cabo e, é claro, a política. O crime tanto calça Rider quanto abotoa o terno, é laico e religioso; e formou bancadas na Alerj, na Câmara, no Senado e no Executivo. De Flordelis a Sérgio Cabral, de Ronnie a Miro, a contravenção reina na ex-capital.

É quase impossível traçar um histórico claro dessa tragédia insolúvel, uma tarefa que Bruno Paes Manso tomou para si no assombroso livro “República das Milícias”, que a editora Todavia está prestes a lançar.

Trata-se de um minucioso estudo sobre o descaso do poder público e da própria sociedade para com a miséria; um documento sobre a terceirização de setores estratégicos; sobre a ascensão, desde os anos 1960, de Anjos 45 e esquadrões da morte que, jurando proteção, seja da polícia, seja de criminosos, terminam por tiranizar, oprimir e explorar favelas, bairros e municípios.

O Rio acreditou que as milícias resolveriam a ineficiência do Estado. Não só não resolveram, como se tornaram parte do problema. É uma lição e tanto para os que apostam na aplicação do modelo para além das fronteiras fluminenses. “República das Milícias” é leitura obrigatória.

Fernanda Torres

Atriz e roteirista,