sábado, 29 de dezembro de 2012

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Filósofos do PAC

Projeto de lei prevê que pensadores acompanhem obras do país
por PLÍNIO FRAGA

O que têm em comum João Havelange, Carlos Alberto Torres, Bernardo Cabral, Michel Temer e Ellen Gracie? O ex-presidente da Fifa, o capitão da seleção tricampeã em 1970, o ex-ministro da Justiça de Collor, o atual vice-presidente da República e a ex-presidente do STF foram, todos, agraciados com o título de doutor honoris causa pela Academia Brasileira de Filosofia. Também foram homenageados pela mesma instituição os ministros Edison Lobão, José Eduardo Cardozo e Alexandre Padilha, e o presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia. Mas estes receberam uma distinção menor – o título de “membros honoris causatout court, sem o grau de doutor. Pelos critérios insondáveis da Academia, Temer filosofa melhor que Lobão, e o boleiro Carlos Alberto ocupa um lugar mais elevado entre os herdeiros de Sócrates (o filósofo) do que o ministro da Saúde.
Mas não é só. Por obra da Academia, tramita no Congresso um projeto de lei – número 2533/11 – proposto pelo deputado federal Giovani Cherini, do PDT gaúcho, que pretende regulamentar a profissão de filósofo no Brasil. Se for aprovado, grandes obras, como a transposição das águas do São Francisco, o trem-bala Rio–São Paulo ou a modernização do Maracanã, podem mobilizar não apenas arquitetos, engenheiros, advogados e outros especialistas, mas também... filósofos.
Em seu artigo terceiro, o projeto de lei afirma que órgãos públicos e entidades privadas, “quando encarregados da elaboração e execução de planos, estudos, programas e projetos socioeconômicos ao nível global, regional ou setorial, manterão, em caráter permanente ou enquanto perdurar a referida atividade, filósofos legalmente habilitados em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços”. O mesmo projeto define a Academia Brasileira de Filosofia, fundada em 1989 e sediada no Rio de Janeiro, como “a representante da filosofia e língua filosófica nacionais”.
A entidade é presidida por João Ricardo Moderno, 58 anos, artista plástico e fotógrafo – sem carteirinha. “Fui eu que escrevi o projeto de lei”, assumiu Moderno, sem nenhum constrangimento. “Na realidade, nem escrevi. Só copiei a regulamentação da profissão de sociólogo, sancionada pelo presidente João Figueiredo em 1981. Como já somos parceiros do deputado Cherini na comissão de Meio Ambiente da Câmara, ele se dispôs a apresentar como seu o projeto por mim redigido.” Em seu currículo, Moderno se define como militante dos movimentos de vanguarda da arte brasileira.
A regulamentação da profissão de filósofo pode ser aprovada com o voto de apenas algumas dezenas de parlamentares. A Constituição confere poder às comissões do Congresso Nacional para que elas apreciem – em alguns casos, com poder decisivo – projetos de lei em substituição ao plenário da Câmara e do Senado.

uando tomou conhecimento do projeto, o professor emérito da Universidade de São Paulo José Arthur Giannotti gargalhou: “É um absurdo. O Brasil não é mais o país da piada pronta, é a própria piada.” Renato Janine Ribeiro, professor titular de ética e filosofia política na mesma USP, tampouco viu sentido na proposta. “Regulamentar a profissão de filósofo, um pensador, é como regulamentar a profissão de poeta ou romancista. Não precisa regulamentar para aqueles que querem lecionar filosofia porque o Ministério da Educação já o faz por uma simples portaria”, disse.
Giannotti e Janine Ribeiro estão entre os 1 706 signatários de uma petição de repúdio ao projeto, lançada pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia. “Cursos de filosofia formam professores de filosofia, que podem ou não ser filósofos”, afirma a carta aberta divulgada pela Associação. “Assim também, cursos de literatura formam professores de literatura, que podem ou não ser literatos. Finalmente, há filósofos e literatos sem titulação acadêmica.”
A carta ironiza ainda a entidade que está por trás do projeto. “Causa-nos estranheza a prerrogativa que o projeto pretende dar à Academia Brasileira de Filosofia, que qualifica como filósofos João Havelange e Carlos Alberto Torres, capitão da Seleção de futebol de 1970. Trata-se de uma associação absolutamente inexpressiva no que concerne aos estudos, projetos de pesquisa e ensino da filosofia em nível universitário.”
A Academia Brasileira de Filosofia funciona na Casa de Osório, um prédio tombado pelo patrimônio histórico nacional na rua do Riachuelo, região central do Rio. Ali residiu e morreu o marechal Manuel Luís Osório, herói militar do Império. A entidade vive de doações e eventos para cobrir seus custos de 8 mil reais ao mês. Em sua página na internet, informa que seu espaço pode ser alugado para “festas, reuniões, coquetéis, formaturas, palestras, seminários, eventos de empresas, desfiles em geral, aniversários de 15 anos, casamentos”.
O presidente da Academia foi rápido e sincero ao responder sobre a importância que pode ter um filósofo em obras como a transposição do rio São Francisco: “Não sei.” Refletindo um pouco mais, Moderno disse o que um discípulo de Platão poderia agregar às obras: “Maior racionalidade, logicidade às ações.” E explicou: “Engenheiro entende de obra, mas muitas vezes não sabe lidar com questões de ordem moral, porque não tem conhecimento de filosofia, ética. Nas coisas imateriais, na discussão conceitual de natureza ética, o filósofo pode ser muito importante.” E arrematou: “Um filósofo ligado à estética pode ajudar no embelezamento da obra.” Nem Adorno tinha pensado nessa função decorativa da profissão.
Transpondo as fronteiras nacionais, Moderno protocolou uma carta em Oslo propondo a candidatura de João Havelange ao Prêmio Nobel da Paz. “Existe alguém que fez mais pela paz do que ele?”, pergunta Moderno, citando como exemplo “o apoio à expansão do esporte pelo mundo e em especial pela África”.
Havelange é acusado de receber dinheiro ilegal de empresas que negociavam com a Fifa, o que ele nega. Questionado se a denúncia não poderia macular a integridade ética do candidato ao Nobel, o acadêmico filosofa: “Dizem que ele teria recebido 1 milhão de dólares de propina. Você acha que Havelange, um homem que já é rico, se sujaria por tão pouco?”

Vocabulário do jornalismo israelense | piauí_20 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

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Vocabulário do jornalismo israelense

Os palestinos alegam, seqüestram e têm sangue nas mãos, enquanto as Forças de Defesa respondem, detêm e jamais cometem homicídios
por Yonatan Mendel

Há um ano, me candidatei à vaga de correspondente do jornal israelense Ma'ariv nos territórios ocupados. Falo árabe, lecionei em escolas palestinas e participei de muitos projetos judaico-palestinos. Na entrevista, o chefe perguntou como eu poderia ser objetivo. Eu havia passado tempo demais com os palestinos, e acabaria sendo tendencioso em favor deles. Não consegui o emprego. Minha entrevista seguinte foi no Walla.com, o site mais popular de Israel. Dessa vez, consegui o emprego e me tornei correspondente do Walla no Oriente Médio. Logo entendi o que Tamar Liebes, diretor do Instituto Smart de Comunicação da Universidade Hebraica de Jerusalém, quis dizer quando afirmou que "os jornalistas e editores se vêem como atores dentro do movimento sionista, e não como observadores críticos".

Isso não significa que o jornalismo israelense não seja profissional. A corrupção, as mazelas sociais e a desonestidade são perseguidas com louvável determinação por jornais, tevês e rádios. O fato de os israelenses terem sido informados do que o ex-presidente Moshe Katsav [que renunciou após ser acusado de estupro] fez ou deixou de fazer com suas secretárias prova que a mídia desempenha o papel de cão de guarda, mesmo sob risco de causar constrangimento nacional e internacional. O nebuloso contrato imobiliário de Ehud Olmert, os negócios da misteriosa ilha grega de Ariel Sharon, o romance secreto de Binyamin Netanyahu, a conta bancária secreta de Yitzhak Rabin nos Estados Unidos: tudo isso é livremente discutido na imprensa israelense.

Quando se trata de "segurança", não há tal liberdade. Só há "nós" e "eles", as Forças de Defesa de Israel, FDI, e "o inimigo". O discurso militar, o único discurso permitido, triunfa sobre qualquer outra narrativa. Não que os jornalistas israelenses cumpram ordens ou um código escrito: apenas preferem pensar coisas boas das suas forças de segurança.

Na maioria das matérias sobre o conflito há duas partes em luta: as Forças de Defesa de Israel de um lado e os palestinos de outro. Quando um incidente violento é relatado, as FDI confirmam ou o Exército diz, mas os palestinos alegam: "Os palestinos alegaram que um bebê ficou gravemente ferido pelos disparos das FDI." Isso é alguma invenção? "Os palestinos alegam que colonos israelenses os ameaçaram." Mas quem são os palestinos? Todos os palestinos - cidadãos de Israel, habitantes da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, as pessoas em campos de refugiados de Estados árabes vizinhos e aquelas vivendo na diáspora - fazem a alegação? Por que então uma reportagem séria relata uma alegação feita pelos palestinos? Por que tão raramente há um nome, um departamento, uma organização ou uma fonte dessa informação? Será porque isso lhe daria um aspecto mais confiável?

Quando os palestinos não estão fazendo alegações, seu ponto de vista simplesmente não é ouvido. O Keshev (Centro para Proteção da Democracia em Israel) analisou como os principais canais de televisão e jornais israelenses cobriram as vítimas palestinas num determinado mês - dezembro de 2005. Foram encontradas 48 matérias sobre a morte de 22 palestinos. Apenas oito desses relatos, no entanto, traziam a versão das FDI e uma reação palestina. Nos outros quarenta exemplos, o fato foi relatado apenas do ponto de vista dos militares israelenses.

Outro exemplo: em junho de 2006, quatro dias depois de o soldado israelense Gilad Shalit ser seqüestrado no lado israelense da cerca de segurança de Gaza, segundo a imprensa israelense, Israel deteve cerca de sessenta integrantes do Hamas, entre os quais trinta membros eleitos do Parlamento e oito ministros do governo palestino. Numa operação bem planejada, Israel capturou e encarcerou o ministro palestino para Assuntos de Jerusalém, os ministros de Finanças, Educação, Assuntos Religiosos, Assuntos Estratégicos, Assuntos Domésticos, Habitação e Prisões, além dos prefeitos de Belém, Jenin e Qalqilya, o presidente do Parlamento palestino e um quarto dos seus integrantes. Que essas autoridades tenham sido tiradas de suas camas tarde da noite e transferidas para território israelense, provavelmente para servir (como Gilad Shalit) de moeda de barganha, não fez da operação um seqüestro. Israel nunca seqüestra. Israel detém.

O Exército israelense nunca mata ninguém intencionalmente, muito menos comete homicídio - uma situação a qual qualquer outra organização armada invejaria. Mesmo quando uma bomba de 1 tonelada é jogada sobre uma densa área residencial de Gaza, matando um homem armado e catorze civis inocentes, inclusive nove crianças, ainda assim não são mortes intencionais nem homicídios: são assassinatos dirigidos. Um jornalista israelense pode dizer que os soldados das FDI atingiram palestinos, ou que os mataram, ou que os mataram por engano, e que os palestinos foram atingidos, ou foram mortos ou mesmo que encontraram a morte (como se estivessem procurando), mas homicídio está fora de cogitação. A conseqüência, quaisquer que sejam as palavras usadas, foi a morte, nas mãos das forças de segurança israelenses, desde o início da segunda intifada, de 2 087 palestinos que nada tinham a ver com a luta armada.

As Forças de Defesa de Israel, tal como são mostradas na mídia israelense, têm outra estranha capacidade: a de nunca iniciar ou decidir um ataque, nem de lançar uma operação. As FDI simplesmente respondem. Elas respondem aos foguetes Qassam, respondem aos ataques terroristas, respondem à violência palestina. Isso torna tudo tão mais lógico e civilizado: as FDI são forçadas a lutar, a destruir casas, a balear palestinos e a matar 4 485 deles em sete anos, mas nenhum desses fatos é responsabilidade dos soldados. Eles estão enfrentando um inimigo abjeto, e reagem de acordo com seu dever. O fato de suas ações - toques de recolher, prisões, cercos por mar, tiros e mortes - serem a principal causa da reação palestina não parece interessar à mídia. Como os palestinos não podem responder, os jornalistas israelenses escolhem outro verbo de um léxico que inclui vingar, provocar, atacar, incitar, apedrejar e disparar os mísseis Qassam.

Entrevistando Abu-Qusay, porta-voz das Brigadas de Al-Aqsa em Gaza, em junho de 2007, perguntei a ele sobre a razão para disparar mísseis Qassam contra a cidade israelense de Sderot. "O Exército pode responder", disse eu, sem perceber que já estava influenciado. "Mas nós estamos respondendo aqui", disse Abu-Qusay. "Não somos terroristas, não queremos matar... estamos resistindo às contínuas incursões de Israel na Cisjordânia, aos seus ataques, ao seu cerco em nossas águas e ao fechamento das nossas terras." As palavras de Abu-Qusay foram traduzidas para o hebraico, mas Israel continuou entrando todas as noites na Cisjordânia, e os israelenses não viram mal nenhum nisso. Afinal de contas, era só uma resposta.

Numa época em que havia muitas incursões israelenses em Gaza, perguntei o seguinte aos meus colegas: "Se um palestino armado cruza a fronteira, entra em Israel, dirige até Tel Aviv e atira em pessoas nas ruas, ele será o terrorista, e nós seremos as vítimas, certo? Porém, se as FDI cruzam a fronteira, dirigem vários quilômetros Gaza adentro e começam a disparar contra os atiradores palestinos, quem é o terrorista e quem é o que resiste? Como é possível que os palestinos que vivem nos territórios ocupados nunca possam recorrer à autodefesa, enquanto o Exército israelense é sempre o defensor?" Meu amigo Shay, da editoria de arte, esclareceu as coisas para mim: "Se você for à Faixa de Gaza e atirar nas pessoas, você será um terrorista. Mas quando o Exército faz isso, é uma operação para deixar Israel mais seguro. É a implementação de uma decisão do governo!"

Outra distinção interessante entre "nós" e "eles" apareceu quando o Hamas exigiu a libertação de 450 prisioneiros ligados ao grupo, em troca do soldado Gilad Shalit. Israel anunciou que libertaria prisioneiros, mas não aqueles com sangue nas mãos. São sempre os palestinos - nunca os israelenses - que têm sangue nas mãos. Isso não quer dizer que os judeus não possam matar os árabes, mas eles não terão sangue nas mãos, e se forem presos serão soltos depois de poucos anos. Sem falar naqueles que têm sangue nas mãos e chegaram a primeiro-ministro. Somos não só mais inocentes quando matamos, como também mais suscetíveis quando feridos. Em geral, a descrição de um míssil Qassam que atinja Sderot será mais ou menos assim: "Um Qassam caiu ao lado de uma residência, três israelenses tiveram ferimentos leves e dez outros sofreram um choque." Não se deve minimizar tais males: um míssil atingindo uma casa no meio da noite de fato deve causar um grande choque. Deve-se lembrar, no entanto, que o choque só vale para os judeus. Os palestinos aparentemente são uma gente muito calejada.

As Forças de Defesa de Israel, num outro motivo de inveja para todos os outros Exércitos, matam só as pessoas mais importantes. "Um membro de alto escalão do Hamas foi morto" é quase um coro na mídia israelense. Membros de baixo escalão do Hamas nunca foram achados ou nunca foram mortos. Shlomi Eldar, correspondente de uma estação de televisão na Faixa de Gaza, escreveu bravamente sobre esse fenômeno no livro Eyeless in Gaza [Sem Olhos em Gaza], de 2005. Quando Riyad Abu Zaid foi assassinado, em 2003, a imprensa israelense fez eco ao anúncio das FDI de que o homem seria o chefe da ala militar do Hamas em Gaza. Eldar, um dos poucos jornalistas investigativos de Israel, descobriu que o homem era apenas um secretário do clube de prisioneiros do Hamas. "Foi uma das muitas ocasiões em que Israel 'incrementou' um ativista palestino", escreveu Eldar. "Depois de todo assassinato, cada pequeno ativista é 'promovido' a grande."

Esse fenômeno pelo qual as declarações das FDI imediatamente se traduzem em reportagens é resultado tanto da falta de acesso à informação quanto da má vontade de jornalistas em provar que o Exército está errado, ou em mostrar soldados como criminosos. "As FDI estão agindo em Gaza" (ou em Jenin, ou em Tulkarm, ou em Hebron) é a expressão oferecida pelo Exército e adotada pela mídia. Por que dificultar a vida dos ouvintes? Por que lhes contar o que os soldados fazem, descrevendo o medo que geram, o fato de que eles vêm com armas e veículos pesados e esmagam a vida urbana, aumentando o ódio, a dor e o desejo de vingança?

Em fevereiro, para tentar conter os militantes que disparavam foguetes Qassam, Israel decidiu interromper a eletricidade em Gaza durante algumas horas por dia. Embora isso significasse, por exemplo, que a energia deixaria de chegar a hospitais, foi dito que "o governo israelense decidiu aprovar essa medida como outra arma não-letal". Outra coisa que os soldados fazem é limpar - khisuf. Em hebraico comum, khisuf significa expor algo oculto, mas no linguajar das FDI significa limpar uma área de esconderijos em potencial para atiradores palestinos. Durante a última intifada, escavadeiras israelenses D9 destruíram milhares de casas palestinas, arrancaram milhares de árvores e deixaram um rastro de milhares de estufas danificadas. É melhor saber que o Exército limpou a área do que enfrentar a realidade de que o Exército destrói as propriedades, o orgulho e a esperança dos palestinos.

Outra palavra útil é coroamento (keter, que também pode ser traduzida como "cerco"), eufemismo para um cerco no qual quem sair de casa se arrisca a ser baleado. Zonas de guerra são lugares onde os palestinos podem ser mortos, mesmo as crianças que não sabem que entraram numa zona de guerra. Crianças palestinas, aliás, tendem a ser promovidas a adolescentes palestinos, especialmente quando são acidentalmente mortas. Mais exemplos: postos avançados e isolados dos israelenses na Cisjordânia são chamados de postos ilegais, talvez em contraste com os assentamentos israelenses, que são aparentemente legais. Detenção administrativa significa prender pessoas que não foram levadas a julgamento e nem mesmo receberam acusação formal (em abril de 2003, havia 1 119 palestinos nessa situação). A OLP (Ashaf) é sempre citada por sua sigla, e nunca por seu nome completo, Organização para a Libertação da Palestina: Palestina é uma palavra que quase nunca é usada - há um presidente palestino, mas não um presidente da Palestina.

"Uma sociedade em crise forja um novo vocabulário para si", escreveu David Grossman no livro The Yellow Wind [O Vento Amarelo], "e gradualmente uma nova linguagem emerge, cujas palavras não mais descrevem a realidade, mas tentam, em vez disso, escondê-la." Essa "nova linguagem" foi adotada voluntariamente pela mídia, mas se alguém precisar de um conjunto oficial de diretrizes ele pode ser encontrado no Relatório Nakdi, um documento redigido pelo órgão público Autoridade de Radiodifusão Israelense. Divulgado inicialmente em 1972, e atualizado três vezes desde então, o relatório se destinava a "esclarecer algumas das regras profissionais que regulam o trabalho de uma pessoa da imprensa". A proibição do termo Jerusalém Oriental era uma delas.

As restrições não se limitam à geografia. Em 20 de maio de 2006, a emissora mais popular da televisão israelense, o Canal 2, noticiou "outro assassinato dirigido em Gaza, um assassinato que pode atenuar os disparos dos Qassam" (376 pessoas já morreram em assassinatos dirigidos, sendo 150 delas civis que não eram alvos de assassinatos). Ehud Ya'ari, um conhecido correspondente israelense que cobre assuntos árabes, no estúdio, disse: "O homem que foi morto é Muhammad al Dahdouh, da Jihad Islâmica... Isso é parte da outra guerra, uma guerra para diminuir o número dos ativistas que disparam os Qassam." Nem Ya'ari nem o porta-voz das FDI se preocuparam em noticiar que quatro civis palestinos inocentes também foram mortos na operação, e que três outros ficaram feridos, inclusive uma menina de 5 anos chamada Maria, que ficará paralítica do pescoço para baixo. Esse "descuido", revelado pela jornalista israelense Orly Vilnai-Federbush, só mostra o quanto não sabemos sobre aquilo que julgamos saber.

Uma coisa interessante é que, desde que o Hamas tomou a Faixa de Gaza, um dos novos xingamentos na mídia israelense é Hamastão, palavra que aparece no noticiário "quente", a parte supostamente sagrada dos jornais, que deveria apresentar os fatos sem editorializá-los. O mesmo vale para movimentos como Hamas ou Hezbollah, descritos em hebraico como organizações, e não como partidos ou movimentos políticos. Intifada nunca recebe o seu significado árabe de "revolta"; e Al-Quds, que quando usada por políticos é uma palavra que se refere apenas aos "lugares sagrados de Jerusalém Oriental", ou a "Jerusalém Oriental", é entendida pelos correspondentes israelenses como Jerusalém, o que efetivamente implica uma determinação palestina em tomar a capital inteira.

Foi curioso observar as reações dos jornais ao assassinato de Imad Moughniyeh, na Síria, em fevereiro. Eles competiram entre si quanto à maneira de designá-lo: arquiterrorista, mestre-terrorista, maior terrorista da Terra. A imprensa israelense levou alguns dias para deixar de louvar os assassinos de Moughniyeh e começar a fazer o que deveria ter feito inicialmente: perguntar quais as conseqüências da morte dele. O jornalista Gideon Levy acha que essa é uma tendência israelense: "A cadeia de 'chefes terroristas' liquidados por Israel, de Ali Hassan Salameh a Abu Jihad, passando por Abbas Musawi e Yihyeh Ayash até o xeque Ahmed Yassin e Abdel Aziz Rantisi (todas elas "operações" que celebramos com grande pompa e circunstância por um doce e inebriante momento), até agora apenas provocou ataques duros e dolorosos de vingança contra Israel e os judeus mundo afora."

Repórteres israelenses especializados em assuntos árabes devem evidentemente falar árabe - muitos deles, de fato, estudaram o idioma nas escolas do aparato de segurança - e precisam conhecer a história e a política do Oriente Médio. E têm de ser judeus. Visivelmente, a mídia israelo-judaica prefere contratar jornalistas com um conhecimento mediano do idioma árabe a falantes nativos, pois estes seriam cidadãos palestinos de Israel. Aparentemente, jornalistas judeus são mais bem equipados que os árabes israelenses para explicar "o que os árabes pensam", quais são "os objetivos árabes" e "o que os árabes dizem". Talvez seja assim porque os editores sabem o que o seu público quer ouvir. Ou, mais importante, o que o público israelense prefere não ouvir.

Se as palavras ocupação, apartheid e racismo (sem falar em cidadãos palestinos de Israel, bantustões, limpeza étnica e Nakba ["catástrofe", a palavra com a qual os palestinos se referem à criação de Israel, em 1948]) estão ausentes do discurso israelense, os cidadãos de Israel podem passar a vida inteira sem saber com o que estão convivendo. Por exemplo, racismo (Giz'anut, em hebraico). Se o Parlamento israelense legisla que 13% das terras do país só podem ser vendidas para judeus, então ele é um Parlamento racista. Se em sessenta anos o país só teve um ministro árabe, então Israel tem tido governos racistas. Se, em sessenta anos de manifestações, balas de borracha e munição de verdade só foram usadas contra manifestantes árabes, então Israel tem uma polícia racista. Se 75% dos israelenses admitem que se recusariam a ter um árabe como vizinho, então é uma sociedade racista. Ao não reconhecer que Israel é um lugar onde o racismo molda as relações entre judeus e árabes, os judeus israelenses se tornam incapazes de lidar com o problema, ou mesmo com a realidade das suas próprias vidas.

A mesma negação da realidade está refletida na recusa ao termo apartheid. Devido à sua associação com a África do Sul branca, os israelenses acham muito duro usar a palavra. Isso não quer dizer que exatamente o mesmo tipo de regime vigore hoje nos territórios ocupados, mas um país não precisa ter bancos de praça "apenas para brancos" para ser um Estado que pratica o apartheid. Afinal, apartheid significa "separação", e, se nos territórios ocupados os colonos têm uma estrada, e os palestinos precisam usar estradas alternativas ou túneis, então é um sistema rodoviário de apartheid. Se o muro de separação construído sobre centenas de hectares de terra confiscada na Cisjordânia separa as pessoas (inclusive palestinos de ambos os lados do muro), então é um muro de apartheid. Se nos territórios ocupados há dois Judiciários, um para colonos judeus e outro para os palestinos, então é uma Justiça de apartheid.

Há também os próprios territórios ocupados. Notavelmente, não há territórios ocupados em Israel. O termo é ocasionalmente usado por algum colunista ou político de esquerda, mas no noticiário ele inexiste. No passado, foram chamados de territórios administrados, para esconder o fato real da ocupação. Foram então chamados de Judéia e Samaria. E, na grande imprensa israelense de hoje, são chamados de os territórios (Ha-Shtachim). O termo ajuda a preservar a noção de que os judeus são as vítimas, o povo que age apenas em autodefesa, a metade moral da equação, e que os palestinos são os agressores, os caras ruins, as pessoas que lutam por razão nenhuma. O exemplo mais simples explica isso: "Um cidadão dos territórios foi apanhado contrabandeando armas ilegais." Poderia fazer sentido que os cidadãos de um território ocupado tentassem resistir ao ocupante, mas não faz sentido se eles forem apenas dos territórios.

Os jornalistas israelenses não estão incrustados no aparato estatal de segurança, e nunca ninguém lhes pediu que fizessem seu público se sentir bem a respeito da política militar de Israel. As restrições às quais eles se submetem são observadas voluntariamente, quase inconscientemente - o que torna sua prática ainda mais perigosa. Apesar disso, a maioria dos israelenses acha que sua mídia é esquerdista demais, insuficientemente patriota e que não está do lado de Israel. E que a imprensa estrangeira é pior. Durante a última intifada, Avraham Hirchson, então ministro de Finanças, exigiu que as transmissões da CNN a partir de Israel fossem interrompidas, sob a alegação de que eram "transmissões distorcidas e programas tendenciosos que são nada mais que uma campanha de incitação contra Israel". Manifestantes israelenses pediram o fim da "cobertura indigna de confiança e provocadora do terror feita pela CNN", reclamando em seu lugar a cobertura da Fox News. Israelenses com até 50 anos são obrigados a prestar um mês de serviço militar reservista por ano. "O civil", disse certa vez Yigael Yadin, um dos primeiros chefes das FDI, "é um soldado com licença anual de 11 meses." Para a mídia israelense, não existe licença.

Com Texto Livre: O Direito, a Liberdade e a missão do advogado

Com Texto Livre: O Direito, a Liberdade e a missão do advogado

O Direito, a Liberdade e a missão do advogado

Foi a descoberta grega da idéia da liberdade que abriu o tempo para a construção do Ocidente. Com essa fulgurante epifania mental, os pensadores partiram para a especulação sobre a realidade física, a natureza peculiar do homem e a vida social. É assim, como decorrência natural de que a vida deve ser livre, para ser digna, que nasceram, sob o rótulo comum de filosofia prática, as idéias da lógica, da ética, da economia e (como instrumento de busca e realização da liberdade) a política.
O artigo que publicou o advogado Márcio Thomaz Bastos – nestes dias que, sendo de festas, devem ser de meditação – sobre os deveres dos advogados, é documento grave e sério. Ele deve ser entendido em sua seriedade e gravidade. Estamos perdendo, como se os neurônios se dissolvessem sob o calor dos ódios e preconceitos, a capacidade de pensar. A lucidez passou a ser uma espécie de excepcionalidade, como se tratasse de um fenômeno de parapsicologia. Mais do que isso: como aponta o ex-presidente da OAB, que se destacou na luta contra o regime militar, a sociedade está imbuída da sanha persecutória, conduzida pelo lema de vigiar e punir.
Mais terrível do que a tirania do Estado, quando ele se encontra ocupado pelos insanos, é a tirania das sociedades, conduzidas por demagogos enfurecidos e suas contrafeitas idéias. Idéia, como sabemos, é a forma que construímos em nossa mente, para identificar as coisas e os fenômenos. Se perdemos essa capacidade de relacionar, com lógica, os acontecimentos naturais e o sentimento humano – laço que nos une aos de nossa mesma espécie – não há mais civilização, deserta-nos a razão, evapora-se a inteligência. E se a sociedade perde o equilíbrio, o Estado pode perecer, com o fim de todas as liberdades.
O dever absoluto da justiça é a proteção da liberdade, como condição inerente e irrecusável do ato de viver.
Quando a justiça pune – qualquer tenha sido o crime – pune quem violou a liberdade de outro, seja no exemplo radical do homicídio, seja em delitos menores. Em razão disso, qualquer pessoa que seja levada diante de um juiz necessita de advogado, que seja capaz de orientá-lo e defendê-lo, a partir das leis e do direito consuetudinário. Desde que os homens criaram os tribunais, sempre houve advogados e, não precisa ser dito, por mais tenebroso possa parecer um crime, o direito de defesa é sagrado.
Como expôs com clareza, em sua aula de filosofia do Direito, o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, por mais evidente possa parecer a culpa de um suspeito, até que se conclua plenamente o seu julgamento, a presunção é de inocência. Por uma proposição lógica, cabe a quem o acusa fornecer as provas insofismáveis da culpa.
Não se pode inverter o enunciado dessa razão, e exigir do acusado que desfaça uma prova que ele mesmo desconhece. Os juízes não devem decidir sobre provas secretas. Tivemos, na ditadura, o absurdo ridículo de sermos obrigados a obedecer a decretos sigilosos, mas o juiz está livre desses ucasses.
É corajosa a advertência do conhecido advogado. Ele é apontado como um profissional que aceita causas já tidas como perdidas, em razão do clamor popular contra os acusados, da mesma forma que é elogiado por ter defendido os perseguidos pelo regime autoritário, quando as idéias da liberdade se encontravam sufocadas pelos juristas e juízes da Ditadura. Mas, qualquer a opinião que dele se tenha, cumpre o seu dever de defender os que o procuram – contra os clamores da ira, espontânea ou conduzida , de parcelas da sociedade – até que todos os ritos processuais se cumpram, na absolvição ou condenação do réu.
Por tudo isso, o seu texto deve ser analisado cuidadosamente por todos os cidadãos, especialmente pelos que, no exercício do mandato político, têm a responsabilidade de governar o Estado em nome da sociedade.
* * *
O artigo de Márcio Thomaz Bastos

“Vigiar e punir” ou “participar e defender”?

A importância da advocacia criminal é diretamente proporcional à tendência repressiva do Estado. Nunca o esforço do advogado criminalista foi tão importante como agora. É o que nos revela o balanço crítico dos acontecimentos que marcaram a vida do Direito Penal, neste ano que passou.
Desde que a democracia suplantou o regime de exceção, em nenhum momento se exigiu tanto das pessoas que, no cumprimento de um dever de ofício, dão voz ao nosso direito de defesa. Mas é na firmeza da atuação profissional desses defensores públicos e privados que a Constituição deposita a esperança de realização do ideal de uma liberdade efetivamente igual para todos.
Se em 2012 acentuou-se a tendência de vigiar e punir, o ano que se descortina convida a comunidade jurídica a participar do debate público e a defender, com redobrada energia, os fundamentos humanos do Estado de Direito. O advogado criminalista é, antes de tudo, um cidadão. Agora é convocado a exercer ativamente a sua cidadania para evitar uma degeneração autoritária de nossas práticas penais, para além da luta cotidiana no processo judicial.
Não é de hoje que o direito de defesa vem sendo arrastado pela vaga repressiva que embala a sociedade brasileira. À sombra da legítima expectativa republicana de responsabilização, viceja um sentimento de desprezo pelos direitos e garantias fundamentais. O “slogan” do combate à impunidade a qualquer custo, quando exaltado pelo clamor de uma opinião popular que não conhece nuances, chega a agredir até mesmo o legítimo exercício da “liberdade de defender a liberdade”, função precípua do advogado criminalista.
O papel social dos advogados, que a Constituição julga indispensável, vem sendo esquecido. Não é raro vê-los atacados no legítimo exercício de sua profissão. Uns têm a palavra cassada pela intolerância à divergência inerente à dialética processual. Outros são ameaçados injustamente de prisão, pela força que não consegue se justificar pela inteligência das razões jurídicas. Nada disso é estranho à prática da advocacia.
Ocorre que, em 2012, a tendência repressiva passou dos limites. Ameaças ao exercício da advocacia levaram ao extremo a “incompreensão” sobre o seu papel social numa sociedade democrática. Alguns episódios dos últimos meses desafiaram os mais caros postulados da defesa criminal. Refletir sobre as águas turbulentas que passaram é fundamental para orientar a ação jurídica e política que tomará corpo no caudal do ano que vem - em prol da moderação dos excessos de regulação jurídica da vida social.
Um desses diabólicos redemoinhos nos surpreendeu em agosto, com a pretendida supressão do habeas corpus substitutivo. A Primeira Turma do STF considerou inadequado empregar a mais nobre ação constitucional em lugar do recurso ordinário. O precedente repercutiu de imediato nos tribunais inferiores, marcando um perigoso ponto de inflexão na nossa jurisprudência mais tradicional.
Nenhum dos argumentos apresentados mostrou-se apto a restringir o alcance desse instrumento fundamental de proteção da liberdade. Ao contrário, revelaram uma finalidade pragmática de limpeza de prateleiras dos tribunais. A guinada subordinou a proteção da liberdade a critérios utilitários, como se conveniências administrativas pudessem se sobrepor às rigorosas exigências de garantia do direito fundamental.
O habeas corpus foi forjado em décadas de experiência na contenção de abusos de poder. A Constituição indicou que sua aplicação é ampla, abolindo as restrições outrora impostas pelo regime de exceção. Abriu caminho para que a jurisprudência reafirmasse a primazia do valor da liberdade.
O posicionamento dominante na época do regime autocrático, todavia, ressurge nos dias de hoje. Em pleno vigor da democracia, o retrocesso aparece sob o singelo pretexto de desafogar tribunais.
Porém, a abolição do habeas substitutivo dificultará a reparação do constrangimento ilegal. Hoje, não são poucas as ordens de libertação concedidas pelo Supremo, evidenciando a grande quantidade de ilegalidades praticadas e não corrigidas. Por isso, a sua supressão perpetuará inúmeros abusos.
O recurso ordinário, embora previsto constitucionalmente, não é tão eficaz como o habeas para coibir o excesso de poder. A começar por suas formalidades, que são muito mais burocráticas se comparadas às do remédio constitucional. Convém não esquecer que a utilização deste como via alternativa para reparação urgente de situações excepcionais foi fruto de uma necessidade do cidadão, ao contrário da sua pretendida eliminação.
A recente modificação da Lei de Lavagem de Dinheiro também abriu um novo flanco para os abusos. O texto impreciso expõe o legítimo exercício profissional a interpretações excessivas. Por trás da séria discussão sobre os deveres profissionais na prevenção da lavagem de dinheiro, esconde-se muitas vezes a vontade de arranhar o direito de defesa dos acusados.
Há quem acuse o advogado de cometer um ilícito, quando aceita honorários de alguém que responde a processo por suposto enriquecimento criminoso. O claro intuito desse arbítrio é evitar que os réus escolham livremente seus advogados. Restringe-se a amplitude da defesa atacando os profissionais que, “por presunção de culpabilidade”, recebem “honorários maculados”, mesmo que prestem serviços públicos e efetivos.
Em afronta à própria essência da advocacia e em violação ao sigilo profissional e à presunção de inocência, acaba-se criando uma verdadeira sociedade de lobos, na qual todos desconfiam de todos. Para alguns, o advogado deveria julgar e condenar seus próprios clientes. Diante de qualquer atividade “suspeita”, deveria delatá-los, sob pena de participar ele mesmo do crime de lavagem de dinheiro supostamente praticado por quem procurou o seu indispensável auxílio profissional.
Convém lembrar que o advogado atende e defende com lealdade quem lhe confia a responsabilidade de funcionar como o porta-voz de seu legítimo interesse. Não deve emitir, ou mesmo considerar, sua própria opinião sobre a conduta examinada, mantendo um distanciamento crítico em relação ao relato que lhe é apresentado.
Atentos à criminalidade que se sofistica para dar aparência de licitude a recursos obtidos de forma criminosa, nunca fomos contrários à discussão sobre ajustes nos deveres profissionais de algumas atividades reguladas. Contudo, a nova situação não pode servir de desculpa para proliferação de um dever geral de delação ou para devassar conteúdos legitimamente protegidos pelo sigilo profissional.
A advocacia criminal pauta-se pela confiança que o cliente deposita no seu defensor, colocando em suas mãos o bem que lhe é mais caro: sua própria liberdade.
Outro desafio contemporâneo à advocacia é a confusão entre o advogado e seu cliente. O preconceito é tão antigo quanto a nossa profissão. O que muda é o grau de consciência social que uma determinada época tem a respeito do valor do devido processo legal. No início do ano, ao defender um de meus clientes, sofri essa odiosa discriminação.
Na ditadura, os defensores da liberdade corríamos riscos e perigos pessoais ao questionar o valor jurídico dos atos de exceção. Na vigência do regime democrático, o pensamento autoritário encontrou na velha confusão entre advogado e cliente um meio de suprimir a liberdade com a qual ainda não se acostumou a conviver. A ignorância e a má-fé sugerem que ou o advogado defende um réu inocente ou ele é cúmplice do suposto criminoso.
Nada mais impróprio. A culpa só pode ser firmada depois do devido processo legal. Nunca antes. É um retrocesso colocar em questão esse dogma do Direito conquistado pela modernidade. Enquanto a confusão persistir, devemos repetir sem descanso que o advogado fala ao lado e em nome do réu num processo penal, zelando para que seja tratado como um ser humano digno de seus direitos constitucionais.
A Reforma do Código Penal também é sintomática dessa tendência repressiva. Elaborada por notáveis juristas e enviada em junho para o Congresso, importa conceitos do direito estrangeiro, sem a necessária adaptação à nossa realidade jurídica. Outros institutos essenciais, como o livramento condicional, são suprimidos. Além disso, eleva as penas corporais para diversos delitos e deixa passar a oportunidade de corrigir falhas técnicas já de todos conhecidas.
Outro sinal dos tempos é a inovação da jurisprudência superior na interpretação de alguns tipos penais, bem como a mudança de postulados do Processo Penal. Assistimos a um retrocesso de décadas de sedimentação de um Direito Penal mais atento aos direitos e garantias individuais. Quando se trata de protegê-los, não pode haver hesitações.
Rompidos os tradicionais diques de contenção, remanesce o problema de como prevenir o abuso do “guarda da esquina”, como diria um velho político mineiro, às voltas com histórico desvio de rota na direção da repressão sem freios.
Também notamos uma tendência a tornar relativo o valor da prova necessária à condenação criminal, neste ano “bastante atípico”. Quando juízes se deixam influenciar pela “presunção de culpabilidade”, são tentados a aceitar apenas “indícios”, no lugar de prova concreta produzida sob contraditório. Como se coubesse à defesa provar a inocência do réu! A disciplina da persecução penal não pode ser colonizada por uma lógica estranha, simplesmente para facilitar condenações, nesse momento de reforço da autoridade estatal, sem contrapartida no aperfeiçoamento dos mecanismos que controlam o seu abuso.
A tendência à inversão do ônus da prova no processo penal também coloca em questão a tradicional ideia do “in dubio pro reo”, diante da proliferação de “presunções objetivas de autoria”. Tampouco a dosimetria da pena pode ser uma “conta de chegada”.
Quanto mais excepcionais os meios, menos legítimos os fins alcançados pela persecução inspirada pelo ideal jacobino da “salvação nacional”. Tempos modernos são esses em que nós vivemos. Em vez de apontar para o futuro, retrocedem nas conquistas civilizatórias do Estado Democrático de Direito.
Nesses momentos tormentosos, é saudável revisitar os cânones da nossa profissão. Como ensinava Rui Barbosa, se o réu tiver uma migalha de direito, o advogado tem o dever profissional de buscá-la. Independentemente do seu juízo pessoal ou da opinião publicada, e com abertura e tolerância para quem o consulta. Sobretudo nas causas impopulares, quando o escritório de advocacia é o último recesso da presunção de inocência.
É necessário reafirmar os princípios que norteiam o Direito Penal e lembrar, sempre que possível, que a liberdade do advogado é condição necessária da defesa da liberdade em geral. A advocacia criminal, desafiada pela ânsia repressiva, deve responder com firmeza.
Alguns meios de resgatar o papel que cumpre na efetivação da justiça estão ao alcance da sua própria mão.
O primeiro passo deve ser investir num esforço pedagógico de esclarecimento social acerca da relevância do papel constitucional do advogado criminalista. Ele não luta pela impunidade. Também desejamos, enquanto membros da sociedade, a evolução das instituições que tornam possível uma boa vida em comum. Somos defensores de direitos fundamentais do ser humano, em uma de suas mais sensíveis dimensões existenciais: a liberdade de dar a si mesmo a sua regra de conduta.
Cabe a nós zelar pelas garantias dos acusados e pela observância dos princípios básicos do Direito Penal do Estado Democrático de Direito, contra as tentações do regime excepcional que não deve ser aplicado nem mesmo aos “inimigos na nação”.
É nosso dever de ofício acompanhar a repercussão do julgamento que pretendeu abolir o habeas corpus substitutivo, manifestando-nos sempre que possível para demonstrar os prejuízos desse regresso pretoriano. A fim de restabelecer o prestígio da ação constitucional, também se faz necessária a continuidade de seu manejo perante todos os tribunais.
Especificamente com relação às distorções que uma interpretação canhestra da nova lei de Lavagem de Dinheiro pode instituir, é importante registrar que a imposição do “dever de comunicar” não pode transformar os advogados em delatores a serviço da ineficiência dos meios estatais de repressão. É contrário à dignidade profissional ver no advogado um vulgar alcaguete.
É evidente que essa condição não torna a advocacia um porto seguro para práticas de lavagem de dinheiro, nem assegura a impunidade profissional. Apenas permite o livre exercício de uma profissão essencial à Justiça.
Deve ser louvada a recente decisão do Conselho Federal da OAB, segundo a qual “os advogados e as sociedades de advocacia não têm o dever de divulgar dados sigilosos de seus clientes que lhe foram entregues no exercício profissional”. Tais imposições colidem com normas que protegem o sigilo profissional, quando utilizado como instrumento legítimo indispensável à realização do direito de defesa.
Ainda assim se faz necessário o constante aprimoramento das regras éticas de conduta profissional. Em paralelo, sugere-se a formulação de códigos internos aos próprios escritórios de advocacia, com orientações, ainda que provisórias, acerca dessas boas práticas, no intuito de resguardar os advogados que se vêm diante da indeterminada abrangência da nova lei repressiva.
Esses “manuais de boas práticas” devem ser elaborados com vistas também a regulamentar uma nova advocacia criminal que hoje se apresenta. A consultoria vem ganhando espaço cada vez maior na área penal, em razão do recrudescimento das leis penais, seja pela proliferação de regras de compliance que regulam a atividade econômica. Para que haja segurança também na prestação desse serviço, é imprescindível uma regulamentação específica.
“Participar e defender”, em 2013, é a melhor maneira de responder aos desafios lançados pelo espírito vigilante e punitivo exacerbado no ano que passou. É renovar, como projeto, a aposta na democracia e na emancipação, contra as pretensões mal dissimuladas de regulação autoritária da vida social.
A repressão pura e simples não é suficiente para dar conta do problema da criminalidade. Embora a efetiva aplicação da lei ajude a aplacar o sentimento de insegurança, o Direito Penal não deve ser a principal política pública.
Outras linhas de atuação política devem ser prestigiadas. Pode-se pensar no controle social sobre o Estado, por meio do aprofundamento das políticas de transparência. Elas ganharam novo impulso com a promulgação de uma boa Lei de Acesso à Informação, que está longe de realizar todas as suas potencialidades de transformação criativa.
A prestação de contas de campanha em tempo real foi um avanço inegável. Uma medida discreta, mas eficaz, entre outras que podem ajudar a prevenir o espetáculo do julgamento penal.
Deve-se mencionar também a necessidade mais premente e inadiável de nossa democracia: a reforma política, com ênfase no financiamento público das campanhas eleitorais.
Enquanto o habeas ainda resiste, não podemos deixar de aperfeiçoar mecanismos de controle de abusos de autoridade. A esfera da privacidade e da intimidade das pessoas também carece de maior proteção jurídica.
Nossos servidores públicos ainda esperam um sistema de incentivos na carreira que recompense o maior esforço em favor dos interesses dos cidadãos.
A simplificação de procedimentos administrativos e tributários, ao diminuir as brechas de poder autocrático, pode desarrumar os lugares propícios à ocorrência da corrupção que nelas se infiltra.
É legítimo travar com a sociedade um debate aberto sobre os meios para a plena realização do pluralismo de ideias e opiniões.
Enfim, a educação para a cidadania, numa democracia segura dos valores da cultura republicana, é tema que deve ocupar mais espaço na agenda política de um país que não quer viver apenas sob a peia da lei punitiva.
Na encruzilhada em que se encontra o Direito Penal brasileiro, os desafios lançados pelo ano que passou só tornam mais estimulante a nobre aventura da advocacia criminal. A participação democrática e a defesa dos direitos humanos continuam apontando a melhor direção a seguir. As dificuldades de 2012 só enaltecem a responsabilidade do advogado, renovando suas energias para enfrentar as lutas que estão por vir.
Como anotou um prisioneiro ilustre, a inteligência até pode ser pessimista, mas continuamos otimistas na vontade de viver um ano mais compassivo.

Nunca houve tanto ódio na mídia conservadora do Brasil

Nunca houve tanto ódio na mídia conservadora do Brasil

Nunca houve tanto ódio na mídia conservadora do Brasil

Postado em: 30 out 2012 às 0:58

Os textos de Demétrio Magnoli, Ricardo Noblat, Merval Pereira, Reinaldo Azevedo, Augusto Nunes, Eliane Catanhede, entre outros, são fontes preciosas para as futuras gerações de jornalistas e estudiosos da comunicação entenderem o que Perseu Abramo chamou apropriadamente de “padrões de manipulação” na mídia brasileira

Jaime Amparo Alves*
Os brasileiros no exterior que acompanham o noticiário brasileiro pela internet têm a impressão de que o país nunca esteve tão mal. Explodem os casos de corrupção, a crise ronda a economia, a inflação está de volta, e o país vive imerso no caos moral. Isso é o que querem nos fazer crer as redações jornalísticas do eixo Rio – São Paulo. Com seus gatekeepers escolhidos a dedo, Folha de S. Paulo, Estadão, Veja e O Globo investem pesadamente no caos com duas intenções: inviabilizar o governo da presidenta Dilma Rousseff e destruir a imagem pública do ex-presidente Lula da Silva. Até aí nada novo.

Tanto Lula quanto Dilma sabem que a mídia não lhes dará trégua, embora não tenham – nem terão – a coragem de uma Cristina Kirchner de levar a cabo uma nova legislação que democratize os meios de comunicação e redistribua as verbas para o setor. Pelo contrário, a Polícia Federal segue perseguindo as rádios comunitárias e os conglomerados de mídia Globo/Veja celebram os recordes de cotas de publicidade governamentais. O PT sofre da síndrome de Estocolmo (aquela na qual o sequestrado se apaixona pelo sequestrador) e o exemplo mais emblemático disso é a posição de Marta Suplicy como colunista de um jornal cuja marca tem sido o linchamento e a inviabilização política das duas administrações petistas em São Paulo.
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O que chama a atenção na nova onda conservadora é o time de intelectuais e artistas com uma retórica que amedronta. Que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso use a gramática sociológica para confundir os menos atentos já era de se esperar, como é o caso das análises de Demétrio Magnoli, especialista sênior da imprensa em todas as áreas do conhecimento. Nunca alguém assumiu com tanta maestria e com tanta desenvoltura papel tão medíocre quanto Magnoli: especialista em políticas públicas, cotas raciais, sindicalismo, movimentos sociais, comunicação, direitos humanos, política internacional… Demétrio Magnoli é o porta-voz maior do que a direita brasileira tem de pior, ainda que seus artigos não resistam a uma análise crítica.
Agora, a nova cruzada moral recebe, além dos já conhecidos defensores dos “valores civilizatórios”, nomes como Ferreira Gullar e João Ubaldo Ribeiro. A raiva com que escrevem poderia ser canalizada para causas bem mais nobres se ambos não se deixassem cativar pelo canto da sereia. Eles assumiram a construção midiática do escândalo, e do que chamam de degenerescência moral, com o fato. E, porque estão convencidos de que o país está em perigo, de que o ex-presidente Lula é a encarnação do mal, e de que o PT deve ser extinguido para que o país sobreviva, reproduzem a retórica dos conglomerados de mídia com uma ingenuidade inconcebível para quem tanto nos inspirou com sua imaginação literária.
Ferreira Gullar e João Ubaldo Ribeiro fazem parte agora daquela intelligentsia nacional que dá legitimidade científica a uma insidiosa prática jornalística que tem na Veja sua maior expressão. Para além das divergências ideológicas com o projeto político do PT – as quais eu também tenho -, o discurso político que emana dos colunistas dos jornalões paulistanos/cariocas impressiona pela brutalidade. Os mais sofisticados sugerem que a exemplo de Getúlio Vargas, o ex-presidente Lula cometa suicídio; os menos cínicos celebraram o “câncer” como a única forma de imobilizá-lo. Os leitores de tais jornais, claro, celebram seus argumentos com comentários irreproduzíveis aqui.
Quais os limites da retórica de ódio contra o ex-presidente metalúrgico? Seria o ódio contra o seu papel político, a sua condição nordestina, o lugar que ocupa no imaginário das elites? Como figuras públicas tão preparadas para a leitura social do mundo se juntam ao coro de um discurso tão cruel e tão covarde já fartamente reproduzido pelos colunistas de sempre? Se a morte biológica do inimigo político já é celebrada abertamente – e a morte simbólica ritualizada cotidianamente nos discursos desumanizadores – estaríamos inaugurando uma nova etapa no jornalismo lombrosiano?
Para além da nossa condenação aos crimes cometidos por dirigentes dos partidos políticos na era Lula, os textos de Demétrio Magnoli , Marco Antonio Villa, Ricardo Noblat , Merval Pereira, Dora Kramer, Reinaldo Azevedo, Augusto Nunes, Eliane Catanhede, além dos que agora se somam a eles, são fontes preciosas para as futuras gerações de jornalistas e estudiosos da comunicação entenderem o que Perseu Abramo chamou apropriadamente de “padrões de manipulação” na mídia brasileira. Seus textos serão utilizados nas disciplinas de ontologia jornalística não apenas com o exemplos concretos da falência ética do jornalismo tal qual entendíamos até aqui, mas também como sintoma dos novos desafios para uma profissão cada vez mais dominada por uma economia da moralidade que confere legitimidade a práticas corporativas inquisitoriais vendidas como de interesse público.
O chamado “mensalão” tem recebido a projeção de uma bomba de Hiroshima não porque os barões da mídia e os seus gatekeepers estejam ultrajados em sua sensibilidade humana. Bobagem! Tamanha diligência não se viu em relação à série de assaltos à nação empreendidos no governo do presidente sociólogo! A verdade é que o “mensalão” surge como a oportunidade histórica para que se faça o que a oposição – que nas palavras de um dos colunistas da Veja “se recusa a fazer o seu papel” – não conseguiu até aqui: destruir a biografia do presidente metalúrgico, inviabilizar o governo da presidenta Dilma Rousseff e reconduzir o projeto da elite ‘sudestina’ ao Palácio do Planalto.
Minha esperança ingênua e utópica é que o Partido dos Trabalhadores aprenda a lição e leve adiante as propostas de refundação do país abandonadas com o acordo tácito para uma trégua da mídia. Não haverá trégua, ainda que a nova ministra da Cultura se sinta tentada a corroborar com o lobby da Folha de S. Paulo pela lei dos direitos autorais, ou que o governo Dilma continue derramando milhões de reais nos cofres das organizações Globo e Abril via publicidade oficial. Não é o PT, o Congresso Nacional ou o governo federal que estão nas mãos da mídia.
Somos todos reféns da meia dúzia de jornais que definem o que é notícia, as práticas de corrupção que merecem ser condenadas, e, incrivelmente, quais e como devem ser julgadas pela mais alta corte de Justiça do país. Na última sessão do julgamento da ação penal 470, por exemplo, um furioso ministro-relator exigia a distribuição antecipada do voto do ministro-revisor para agilizar o trabalho da imprensa (!). O STF se transformou na nova arena midiática onde o enredo jornalístico do espetáculo da punição exemplar vai sendo sancionado.
Depois de cinco anos morando fora do país, estou menos convencido por que diabos tenho um diploma de jornalismo em minhas mãos. Por outro lado, estou mais convencido de que estou melhor informado sobre o Brasil assistindo à imprensa internacional. Foi pelas agências de notícias internacionais que informei aos meus amigos no Brasil de que a política externa do ex-presidente metalúrgico se transformou em tema padrão na cobertura jornalística por aqui. Informei-lhes que o protagonismo político do Brasil na mediação de um acordo nuclear entre Irã e Turquia recebeu atenção muito mais generosa da mídia estadunidense, ainda que boicotado na mídia nacional. Informei-lhes que acompanhei daqui o presidente analfabeto receber o título de doutor honoris causa em instituições européias, e avisei-lhes que por causa da política soberana do governo do presidente metalúrgico, ser brasileiro no exterior passou a ter uma outra conotação. O Brasil finalmente recebeu um status de respeitabilidade e o presidente nordestino projetou para o mundo nossa estratégia de uma America Latina soberana.
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Meus amigos no Brasil são privados do direito à informação e continuarão a ser porque nem o governo federal nem o Congresso Nacional estão dispostos a pagar o preço por uma “reforma” em área tão estratégica e tão fundamental para o exercício da cidadania. Com 70% de aprovação popular, e com os movimentos sociais nas ruas, Lula da Silva não teve coragem de enfrentar o monstro e agora paga caro por sua covardia.Terá a Dilma coragem com aprovação semelhante, ou nossa meia dúzia de Murdochs seguirão intocáveis sob o manto da liberdade de e(i)mprensa?
* Jaime Amparo Alves é jornalista, doutor em Antropologia Social, Universidade do Texas em Austin – amparoalves@gmail.com

Os novos atores políticos | Carta Capital

Os novos atores políticos | Carta Capital

Vladimir Safatle

Um dos fatos mais relevantes de 2012 foi a transformação dos juízes do Supremo Tribunal Federal em novos atores políticos. Já há algum tempo o STF virou protagonista de primeira grandeza nos debates políticos nacionais, ao arbitrar grandes questões ligadas à vida nacional em um ambiente de conflito. Por tal razão, vemos hoje um fato absolutamente inédito na história nacional: juízes do STF reconhecidos por populares.
Durante décadas, a Suprema Corte era um poder invisível para a opinião pública. Ninguém via no Supremo a expressão de um poder que poderia reverberar anseios populares. Hoje é inegável que algo mudou, principalmente depois do julgamento do chamado “mensalão”, no qual o tribunal procurou traduzir em ações as demandas sociais contra a corrupção. Nesse contexto de maior protagonismo do STF, algumas questões devem ser colocadas.
Fala-se muito da espetacularização do Judiciário, que seria sensível aos apelos da mídia e de setores da opinião pública. Isto principalmente depois da criação de um canal de televisão, a TV Justiça, pelo qual é possível acompanhar julgamentos do STF. Se levado a sério o argumento, teríamos de afirmar que tal espetacularização é um fenômeno a atingir a democracia como um todo, e não apenas um de seus poderes. Na verdade, melhor isso do que os momentos nos quais juízes do Supremo podiam dizer que julgavam “de costas para a opinião pública”. A democracia exige o regime da máxima visibilidade dos entes e processos públicos.
Segundo, que juízes se vejam como atores políticos não deveria ser visto como problema. Só mesmo um positivismo jurídico tacanho acreditaria que a interpretação das leis pode ser feita sem apelo à interpretação das demandas políticas que circulam no interior da vida social de um povo. Interpretar uma lei é se perguntar sobre o que os legisladores procuravam realizar, qual o núcleo racional por trás das demandas que se consolidaram através da enunciação de leis. Que juízes se vejam, atualmente, com tais incumbências, eis algo que não deveria nos preocupar.
Há, porém, duas questões urgentes que merecem nossa atenção diante deste novo momento do Judiciário. Primeiro, a tripartição dos poderes foi feita com vistas à possibilidade de constituir um sistema de mútua inspeção. Um poder deve ter a possibilidade de servir de contrapeso aos demais. Para isso, todos os três poderes devem ter o mesmo grau de legitimidade e todos devem ter mecanismos simétricos de controle.
O único fundamento de legitimidade reconhecido pela democracia é a soberania popular. Ela se manifesta na escolha do Poder Executivo e do Legislativo. Mas está completamente ausente no interior do Poder Judiciário. O sistema de escolha e nomeação dos integrantes do STF, com suas indicações do Executivo e sabatina do Legislativo, é completamente opaco e antidemocrático. Haja vista as recentes inconfidências do ministro Luiz Fux a esse respeito. Nem sequer procuradores do Ministério Público são escolhidos por deliberação popular. Um poder que deseja um protagonismo político respeitado deve se abrir para a participação popular direta. Há uma criatividade institucional necessária que deve ser mobilizada para sairmos de um sistema “monárquico” de constituição do Judiciário, com suas indicações por compadrio ou “serviços prestados”, seus cargos sem tempo fixo de mandato.
O problema do controle do Judiciário não deve, no entanto, ser posto necessariamente na conta de tentativas de amordaçamento. Todos os poderes têm mecanismos de controle. Por exemplo, podemos aplicar impeachment em um presidente, cassar o mandato de um deputado, mas o que fazer quando um juiz do STF demonstra-se inapto ao cargo? Um poder democrático é aquele que deixa claro seus mecanismos de entrada e de saída, ou seja, como ele escolherá seus integrantes e como afastará quem se demonstra inabilitado para o cargo. Nos dois casos, nosso Judiciário tem muito no que avançar.
É necessário que a sociedade brasileira tenha a serenidade para discutir mecanismos de reforma do Judiciário, principalmente agora que compreendemos a importância de sua função. A democracia tem muito o que construir no que diz respeito à legitimidade popular de seus juízes.
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Ensaio Geral
Atomização Social

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Sérgio Mendes – Que venha a História, que venha logo, porque o jornalismo não tá dando conta » QTMD? Quem Tem Medo da Democracia?

Sérgio Mendes – Que venha a História, que venha logo, porque o jornalismo não tá dando conta » QTMD? Quem Tem Medo da Democracia?

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Por Sérgio Mendes(*), especial para o QTMD?
Faz algum tempo vem ganhando contraste, as cores de nossos grandes do jornalismo em descompasso com a realidade das ruas. E antes que possam questionar o que vou escrever, ainda antes de escrever, gostaria de propor um teste muito simples:
Saia pela periferia da sua cidade, seja ela qual for, e procure pelos personagens e fatos de onde você vive em qualquer veículo de comunicação.
Se encontrar algum que seja mais que uma caricatura num grande jornal, aguardo o comentário no final desta página.
A explicação é simples:
Concentração, monopólio, manipulação.
Para constatar, conte quantos jornais tem circulação nacional e quantos existem na sua cidade. Quantos canais de tv tem alcance nacional e quantos cobrem a sua região desde onde você está. Quantas estações de rádio estão nas mãos de quem e quantos são esses felizes proprietários.
Nossos arautos nem sequer disfarçam a vontade que tem de voltar com os tapumes de antes da internet e tornar a ditar realidade ao invés de cumprirem seu papel, e dar voz aos mesmos personagens da rua que você e eu não encontramos mais, ou melhor dizendo, raramente vemos ou vimos nestes mesmos veículos.
Desgraçadamente, este comportamento não é novo, nem exclusivo de nosso jornalismo pátrio. É fenômeno do mundo e da História. Já aconteceu no passado, e até bem recentemente se tem notícia de redações fechadas por dispensarem a Ética e por terem sido achadas em falta com a utilidade pública a que em tese, se prestam.
Nossos arautos nem disfarçam a contradição de entortar com palavras, os números dos seus próprios institutos de pesquisas.
Estamos outra vez num ponto em que precisamos optar pelo que nos serve como sociedade e descartar o peso morto, ou morrer junto com ele. Morremos a Democracia?
Pode apostar!
Recentemente com o julgamento do chamado ‘Mensalão’, ficou ainda mais claro que não estão dispostos a cobrir a História de um país em busca de estancar o sangrar de alguma chaga, mas a derrocada de quem se oponha no seu caminho rumo ao poder. E poder sem responsabilidade.
Pouco ou nada se compromete este tipo de noticiário com a cidadania, senão reforça as raízes mais profundas da segregação social. A mesma segregação banida do primeiro mundo, lugar que no imaginário dessa gente, é onde vale a pena estar. Naquele mesmo primeiro mundo, observa-se exatamente o contrário, a cidadania conquistada vai se perdendo pela força do dinheiro. Aqui, pelo mesmo dinheiro e a concentração exagerada dele, tornam iguais em superiores e ou inferiores faz tempo demais.
A imprensa é a primeira memória de qualquer sociedade. É ela quem aponta o que as pessoas lembram, debatem e opinam todos os dias. Mas isso acontece pela credibilidade que constrói ou não, posto que não tem fé pública.
Vou repetir um comentário a respeito de recentes declarações de um condenado na mesma ação penal que citei e que não é meu:
“Nada mudou. Nada passou a ser verdade depois que o Valério falou, ou nada deixou de ser verdade depois que o Valério falou. Tudo ainda é embate político…”
Pra mim, é mais impressionante perceber o quanto do nosso achar e pensar é decidido pela mídia, do que o que ela publica. Neste caso específico, ela está editando isso há um mês. Por outro lado, o Cachoeira percebeu que, enquanto ele entregar apenas Demóstenes e tucanos, tá ferrado. Por isso saiu hoje dizendo que é o “garganta profunda” do PT. Ele sabe quem é o público dele…”
O pior que pode acontecer para um veículo de comunicação, é perder a credibilidade e ficar falando para as paredes.
É quando começam a aparecer nas pesquisas de opinião justamente o contrario de tudo que eles pregam.
Daí passam a desdenhar da capacidade que a sociedade tem de decidir seus próprios caminhos, e trocam a História por propaganda. Mas propaganda não subsiste a História. E a sociedade não escreve propaganda. A História é segunda memória, a mais importante e duradoura. Mas demora um pouco mais que a propaganda para se estabelecer, ainda que sempre venha.
Quem viver, verá não ser mais possível afirmar que uma mentira dita mil vezes, torna-se em verdade.
Nem nunca foi por que mentira sempre será mentira. Mesmo repetida mil vezes, basta que a verdade seja dita uma vez apenas e o engodo estará desfeito.
Opiniões todos temos. Podemos e devemos debatê-las a exaustão. Mas opiniões estão para notícias como suposição está para jornalismo bem feito.
Se não é possível que jornalistas sérios e comprometidos com sua gente possam trabalhar para noticiar e construir a memória em cada rincão, que não desçam os grandes a desqualificá-la e ao debate neste espaço democrático que se abre para nós.
Que venha a História, e que venha logo.
*Sérgio Mendes é professor de inglês e escritor. Colabora com o Quem tem medo da democracia?, onde mantém a coluna “De olho na História”. http://quemtemmedodademocracia.com/de-olho-na-historia-2/
=> A charge é do cartunista Carlos Latuff.

Conjur - Retrospectiva 2012: "Aí, esse Joaquim é sinistro. Tá enjaulando bacana"

Conjur - Retrospectiva 2012: "Aí, esse Joaquim é sinistro. Tá enjaulando bacana"

"Aí, esse Joaquim é sinistro. Tá enjaulando bacana"

O primeiro julgamento
Registro inicial 1: O título heterodoxo deste artigo por certo prenderá o leitor. Para saber o que quer dizer, terá que ler até o final.
Registro inicial 2. Decisões judiciais são feitas para serem cumpridas, mas também para serem criticadas. Não penso que a Suprema Corte tem o direito de errar por último. Ao contrário: um colegiado, a partir da contemporânea Teoria do Direito, tem o dever de buscar a melhor resposta ou a resposta adequada à Constituição. Não me parece que ainda dê para pensar que os tempos de Rui Barbosa são os nossos tempos. Aliás, crítica por crítica, estamos todos autorizados a discutir a decisão do julgamento da AP 470. A começar pelo fato de o principal crítico do julgamento ser o próprio presidente da Corte, ministro Joaquim Barbosa. Segundo a ConJur, de 21 de dezembro de 2012 (clique aqui para ler), “O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, disse, nesta quinta-feira (20/12) que uma leitura errônea feita por alguns de seus colegas no Plenário levou ao estabelecimento de penas muito baixas para os réus condenados no julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão”.
Pronto. E nós vamos em frente.
Com efeito. O primeiro julgamento da história é contado por Ésquilo, na Orestéia. Foi tão importante e tão emblemático, que estabeleceu padrões que ainda vigoram, tais como o número de jurados, o voto de Minerva, a ordem das falas, privilegiando-se o direito de defesa, o in dubio pro reo, dentre tantos outros.
O julgamento da AP 470 também foi importante e emblemático, só que não pelos mesmos motivos. Não se criou um novo modo de julgar nem se aperfeiçoou o vigente. Nem haveria de ser, eis que as amarras democráticas vedam que isso que se configuraria em efeito surpresa. Depois que o jogo começa (essa nossa mania de analogias com o futebol...), mudar as regras significa mudar o jogo. Embora, em alguns momentos, houvesse alguns gols em off side (quando garoto, impedimento se chamava de off side).
De se ressaltar, contudo, que a publicidade do case e as suas particularidades envolvendo “gente do andar de cima” fizeram com que cada passo do julgamento fosse acompanhado em tempo real, comentado por gente que sabe muito, sabe pouco ou nada sabe daquela “arte”, expondo um problema que há anos denuncio (dentre tantos): estamos mal e precisamos repensar como se lida com o direito em terrae brasilis. Nada como o caso concreto para denunciar a importância de uma teoria adequada que dê suporte ao intérprete... Em tempos de simplificações e esquematizações, o déficit teórico gritou a plenos pulmões nossas limitações, revelando o que andamos fazendo e anunciando como seguiremos fazendo justiça (sic)... E isso também foi transmitido em tempo real!
A doutrina e a cultura manualesca
Está registrado nos anais da casa, constará nos votos que serão divulgados na íntegra no site do Supremo e, inclusive, pode ser visto pelo YouTube, que, dentre os penalistas (e processualistas penais) pátrios mais citados, estão Damásio de Jesus, Mirabete, Heleno Fragoso, Nelson Hungria, Guilherme Nucci.
Claro que eles não foram os únicos citados. Eu mesmo fui referido, bem como ilustres juristas que trabalham o Direito e o Processo Penal na atualidade, v.g. Aury Lopes Jr., André Callegari etc. Mas os efeitos desse protagonismo do “fantasma do natal passado” podem ser claramente sentidos.
Vale destacar que minha coluna aqui na ConJur foi o espaço que elegi para trabalhar todas essas questões que se desenvolviam ao longo do julgamento, tais como “Direito AM-DM” (clique aqui para ler), “O Fator Júlia Roberts” (clique aqui para ler) e “Aqui se faz, aqui se paga ou o que atesta o malatesta?” (clique aqui para ler) e outras que referirei, mas como esse é um comentário sobre o julgamento como um todo, faz-se importante retomar tais pontos para demonstrar como o descompasso teórico gera efeitos danosos.
Houve recorrência à citação de alguns manuais de baixa densidade teórica. Isto porque um manual — regra geral — é algo simplificador (cada um com seus propósitos, que devem ser respeitados). Efetivamente, no mundo do realjuridik, manuais (algo como “Comentários ao Código Penal”, recheado de verbetes — coisa muito comum na realjuridik), por vezes, são caminhos possíveis para se introduzir de forma leve um determinado debate complexo. Mas é certo que nenhuma discussão jurídica de nível profundo pode se resumir a um instrumento que deveria ser meramente introdutório (sim, eu esperode um julgamento na Corte Suprema uma maior sofisticação; o STF é, sim, um espaço de discussão de grandes teses, a despeito de quem pense o contrário).
De todo modo, não parece ser a pretensão dos autores que se dedicam aos manuais ou compêndios com verbetes prê-à-porters. Esse material se destina, stricto sensu, a graduandos e cursos/escolas de preparação para concursos. Mas, no julgamento do mensalão, viraram argumento de autoridade. Sem dúvida, é um sintoma da crise do Direito. Com relação a Hungria, dá a impressão que nada foi produzido depois dos anos 50 no Brasil... Vendo o julgamento da AP 470, dá a impressão que a doutrina é “singelíssima”, porque “cabe nos mais singelos manuais”. Na maioria dos manuais que foram citados pelo STF no julgamento da AP 470, há uma baixa densidade constitucional, na medida em que não há grandes referências — na verdade, raras — à Constituição (ou à necessidade de uma filtragem dos Códigos em face do advento da CF/88). E assim por diante.
Outra questão é a relação do discurso jurídico com a Teoria do Direito. O trato da “questão da verdade” se mostrou extremamente precário. No julgamento da AP 470, ouvi vários causídicos falarem na e sobre a verdade. Ouvi um deles dizer que a verdade “estava nos autos” e que “as provas fala(ri)am por si” (sic) (ao que entendi, o processo revelaria uma verdade intrínseca, é isso?); outro foi para a outra “ponta” da filosofia, ao verberar, com incrível convicção, que “a verdade não existe; que é relativa”. Como assim, Doutor? Se ela não existe... então, é por isso mesmo que o que Vossa Excelência acabou de dizer não é verdadeiro. Bingo! Vossa Excelência caiu em um paradoxo. Um pequeno registro, a latere: vários ministros do STF também falaram em verdade real (isso será assunto de uma Coluna Senso Incomum).
Domínio do Fato, Mal-Atesta etc.
O julgamento também desnudou a falta de tato que temos com a doutrina penal especializada, principalmente com a estrangeira. Raramente as lemos no original. Normalmente, ocupamo-nos de referências de referências (ou referências de referências de outras referências). Por exemplo, a teoria do domínio do fato foi posta pelo PGR de forma muito singela e recebida como algo inovador que viria para responder ao caso concreto. Não parece que a teoria do domínio do fato seja algo novo...! O que foi feito — ou tem sido feito — é uma transposição acrítica e desfocalizada de algo complexo, da mesma forma como fizemos com o ativismo, o realismo, a ponderação[1] etc. (somos “bons” nisso). No fundo, o domínio do fato se transformou em um álibi teórico para justificar um conceito previamente formulado. Trabalhei a questão aqui na ConJur, no artigo “Domínio do fato tipo ponderação” (clique aqui para ler), enquanto assistia aos comentários desnorteados que eram feitos nas grandes emissoras de televisão.
Pior do que isso foi a ressurreição do velho Malatesta, autor do século XIX muito citado e pouco lido (pouco mesmo). Eu tive a pachorra de ver o que ele “mal-atesta”. Pois com Malatesta, disse-se no julgamento da AP 470 que “o ordinário se presume; só o extraordinário se prova”. Ora, digo eu, o-ordinário-que-se-presume-é-o-estado- de-inocência, garantia essencial ao Estado Democrático de Direito, que, por mais de uma vez (e pela boca de mais de um ministro), foi tratada como passível de relativização (essa posição, aliás, foi muito elogiada na imprensa, mormente pelo Imortal Merval Pereira, que se mostrou um bom torcedor contra os réus, deixando de lado a imparcialidade que se exige de um jornalista que ocupa um espaço como o dele).
Fico a imaginar se o advogado da causa — tivesse ele lido Malatesta — levantasse um “pela ordem, Excelências” para mostrar que o festejado Dr. Nicola (esse é nome do Malatesta), duas páginas depois, não dizia exatamente isso. E se o STF não lhe concedesse a questão de ordem, sob o pretexto de que somente poderia levantar “questão de fato”, o Doutor — que, ao que consta, foi escolhido como um dos 100 maiores líderes do país — sic, conforme a Revista Época (com direito a um longo elogio da lavra do Dr. Kakay, que, de forma lapidar, disse já ter previsto em 2005 que a “causa do mensalão estava perdida” — sic e mais um sic)[2] — poderia redarguir: “mas, Excelências, falar da história é, também, uma questão de fato; e fatos são eventos; e eventos são textos”. Pois é. No caso, a interpretação equivocada de Malatesta não fazia justiça aos fatos históricos... (se compreendem o que quero dizer). Exatamente por isso era cabível o “pela ordem”! Já pensaram o furdunço que isso poderia dar?
Mas, sigo. Quando se fala em “flexibilização de garantias”, é porque nem o básico anda sendo bem feito. O professor Joaquim Falcão — procurando salvar essa “flexibilização” — ainda afirmou: “A terceira conclusão é que a doutrina não pode exigir uma prova legal impossível, para punir um crime. Não é apenas a ordem escrita e gravada da autoridade, seu próprio suicídio legal que pode ser admitida em juízo. Há múltiplos indícios convergentes. Há o conjunto probatório dos fatos, repetia Joaquim Barbosa. Exigir a prova impossível é querer absolver o réu, sem julgá-lo. Se no futuro juízes condenarem sem provas ou indícios, apenas pelo cargo que o réu ocupa, o Supremo controlará o excesso”. Ou seja, para o Dr. Joaquim Falcão, isso estaria correto...! Como assim, Professor?
Imagino como ficariam os já abarrotados escaninhos da corte constitucional... Imagino também o trabalho da Defensoria Pública ao manejar tantos REs. Ou só devem “subir-os-recursos-de-quem-tiver-bons-(e caros)-advogados”? O professor Joaquim Falcão não levou em consideração isso? Em que país estamos? Quer dizer que podemos flexibilizar as provas e depois confiar que o STF faça a correção? Confesso que não entendi. E quem corrige o Supremo, Professor Falcão? O Supremo tem o direito de errar por último? Minhas perguntas são apenas retóricas. Já sei a resposta!
Veja-se, em linha similar, o modo como a possibilidade de condenação com base em indícios-não-judicializados (e crivados pelo contraditório) foi posta em plenário (em que pese o zelo em não dizer expressamente o que se estava a defender, tamanho o problema que isso simbolizava), verbis:
“A prova há de ser considerada no julgamento criminal, sem dúvida, quando realizada sob o contraditório, conforme estabelecido expressamente no art. 155 do CPP. Isso não significa, porém, que o juiz não possa considerar para a formação de sua livre convicção, elementos informativos colhidos na fase de inquérito.
Ainda:
Essa função persuasiva da prova é a que mais bem se coaduna com o sistema do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, previsto no art. 155 do CPP e no art. 93, IX, da Carta Magna, pelo qual o magistrado avalia livremente os elementos probatórios colhidos na instrução, mas tem a obrigação de fundamentar sua decisão, indicando expressamente suas razões de decidir.” (ministro Luiz Fux).
Desfiei tais questões em “Direito AM-DM” (leia aqui), mas a doutrina (em geral) assistiu calada! Dia desses, li uma entrevista de um jovem penalista, que fez uma aguda e, digamos assim, animada crítica à questão da interpretação do crime de lavagem de dinheiro e ao uso da teoria do domínio do fato pelo STF. Gostei... Só lamento que tenha sido um discurso sobre um cadáver. A crítica do jovem causídico chegou tarde. Inês é morta. Aliás, terminado o julgamento, muitos haverão de aparecer com discursos do mesmo jaez. Vigorosos. Duros. Implacáveis... dizendo o que já foi dito. E sem citar fontes, é claro (aliás, quem cita fontes no Brasil é garrafa de água mineral!). Discursos sobre cadáveres, sim. Mais ou menos nos moldes como faz um famoso senador gaúcho nos seus discursos no Senado: depois que o fato está consumado, muito brilho na fala (já falada)! Mas ele é duro. Incisivo!
O senso comum doutrinário
O que restou claro? Sem dúvida, o julgamento do mensalão representou um reforço do protagonismo judicial. Bem ao gosto de boa parte dos processualistas de terrae brasilis. Em vários momentos o STF falou desse protagonismo, do papel quase heroico que assumia a Suprema Corte no combate à corrupção. Também isso ficou patente quando se invocou a “livre apreciação da prova” e/ou o “livre convencimento”. Aliás, gostaria de ver a crítica da comunidade jurídica sobre isso, mesmo que agora Inês esteja morta.
Relembro — e não me canso de relembrar isso — que a aposta no protagonismo judicial é produto de um resquício (ainda forte) das teses do realismo jurídico. Nesse sentido, isso é bem detectado e denunciado pelo jusfilósofo e constitucionalista espanhol Alfonso Garcia Figueroa, quando faz uma crítica a várias categorias centrais da motivação judicial, mostrando que existe um certo realismo (jurídico) inconsciente em alguns juristas. Há pouco, fiz uma coluna (“O passado, o presente e o futuro do STF em três atos”), analisando a forte presença das teses realistas no seio da nossa Suprema Corte (leia aqui).
Na verdade, repristinam-se, de forma descontextualizada e incompatíveis com o atual contexto jurídico, velhas teses voluntaristas de um momento de fragilidade do Direito, em que esse tipo de postura (Jurisprudência dos Interesses, Escola do Direito Livre, Realismo Jurídico) ganhavam espaço em face do enfrentamento necessário ao velho positivismo. No Direito processual, por exemplo, é nesse momento (final do século XIX e início do século XX) que surgem as teses de autores como Anton Menger e Franz Klein, que apostam no poder de juiz para superar a “frieza do Direito”, que se esgotava no texto legal.
Na doutrina processualista, por exemplo, vemos sendo citados frequentemente as figuras de Carnelutti e Chiovenda, este último sendo utilizado pelo ministro Luiz Fux para dizer que “o juiz tem o direito de fazer coisa julgada, e sua palavra é a norma, ainda que haja divergências dentro do plenário”, ressuscitando um velho álibi teórico que legitima o “livre” convencimento do juiz. Sim, isso também fez parte do julgamento da AP 470.
Aliás, com o livre convencimento vem a livre apreciação da prova, lugar comum na AP 470, e que agora surge sob uma nova feição: “livre convencimento motivado”. Criticados pelo uso da prova indiciária (produzida sem contraditório) durante o julgamento, os ministros vale(ra)m-se do livre convencimento motivado como argumento, pois agora — e estou repetindo ipsis literis o que foi dito — “a prova indiciária pode ser utilizada, mas não pode ser a única fonte para a formação do livre convencimento do juiz”.
Como assim — “livre convencimento motivado”? Quer dizer que o juiz pode analisar a prova como quer e decidir como bem entende, bastando que haja qualquer tipo de prova, ou, pior ainda, indícios de autoria ou materialidade? Ora, Otelo tinha motivação para matar Desdêmona; entretanto, essa motivação não tinha justificativa. Todos nós temos motivos para fazer algo; daí a estarem tais motivos justificados a distância é grande.
Portanto — e agora que estamos em véspera de aprovação de novos Códigos Processuais — está na hora de definirmos o que é efetivamente “a fundamentação” de uma decisão. E, mais ainda, chegou a hora de decidirmos se, efetivamente, queremos tratar o processo à luz dos paradigmas filosóficos ou se queremos “fazer” processo a latere daquilo que é condição de possibilidade, isto é, a filosofia.
Outro ponto foi o silêncio — ou apoio — de parte da doutrina dita mais progressista (seja o que isso queira dizer) em relação à tese da Folha de S.Paulo, encampada, por exemplo, pelo ministro Dias Toffoli, de que prisão, agora, é “só para quem precisa”.
Veja-se: meses antes, o próprio ministro Toffoli, sem pestanejar, condenara a 13 anos, 4 meses e 10 dias o deputado Natan Donadon (PMDB-RO), primeiro parlamentar a ser condenado pelo STF em matéria criminal. Paradoxalmente, em um segundo momento, manifesta-se como-opositor-ao-cárcere-enquanto-instrumento-punitivo, relacionando-o “com o período medieval” (ao mesmo tempo em que o ministro da Justiça disse que se mataria, caso fosse preso). Também, no momento oportuno, não me furtei a esse debate, conforme se pode ler no artigo “Como Assim Prisão só para quem precisa?” (leia aqui).
É esse tipo de confusão teórica que pode — mediante discurso sedutor e aparentemente libertário — legitimar que sejam tomadas medidas que reproduzem uma lógica de direito legitimador do “establishment” que não se admite desde 1988.
Outro claro exemplo se vê a partir de considerações acerca do regime de cumprimento. Falo da hipótese de encaminhamento para a prisão domiciliar daqueles que deveriam iniciar a pena em regime semiaberto em virtude da inexistência de vagas. Bom argumento. Entretanto, não seria bom se, primeiramente, fosse questionada a possibilidade de uma “reforma de fato” na lei penal a ser perpetrada via decisão da Corte? A propósito desse assunto, ver artigo de André Karam Trindade (leia aqui).
Em um segundo momento, partindo do pressuposto que tal ato fosse constitucional, a benesse deveria ser universalizada. Com efeito, se é assim, proponho isonomia. Igualdade de tratamento. Ou seja, todo preso que faça jus à progressão de regime e não tenha recebido o benefício em virtude da ausência de vagas deverá ser tratado de igual maneira. Do contrário, temos a clara confissão de que tratamos ricos e pobres de forma distinta, legando à isonomia o papel de mero figurante em nosso sistema jurídico.
Aliás, por falar em isonomia, nosso sistema penal “pródigo” em conspurcar a isonomia, para o bem e para o mal (aliás, na entrevista do jovem penalista que falei anteriormente, há elogios ao Código Penal; ele diz que não necessitamos de um novo Código; claro, sem dúvida — do mesmo modo como em 1890 se dizia que não era necessário alterar o Código Criminal do Império, que substituiu o livro V das Ordenações Filipinas...!). Sendo mais claro: para o sonegador de impostos, nosso sistema concede a benesse que é negada a quem furta... Para o traficante primário, dois terços de desconto na pena; já para o furto, nem falar em descontar a pena... (não vi uma linha até hoje sobre essa falta de isonomia...; ou isso não seria inconstitucional?). E esse é um bom Código... Vamos mais adiante ou paramos por aqui?
O ônus da prova
Na AP 470, debateu-se, por horas, quem tinha o ônus de provar o quê. Se era o Ministério Publico ou a defesa. Também comentei na ConJur a questão, mas repito a reflexão: quase 25 anos de CF e ainda não sabemos quem deve provar o que em processo penal? E a dificuldade em realizar a dosimetria da pena? Em delimitar os marcos ou qual seria a lei aplicável?
Ainda: a possibilidade de incorrer em prescrição deve influenciar o magistrado a avaliar aquela conduta praticada anos antes como merecedora de punição maior? A pena a ser aplicada pela infração de determinada regra deve ser diferente a depender de quanto tempo se passou entre a conduta delitiva e o julgamento? Veja-se que, neste ponto, os manuais poderiam ajudar no esclarecimento da matéria (não há qualquer ironia nessa minha afirmação, uma vez que, efetivamente, a maioria dos manuais trata adequadamente dessa temática). PS: considere-se, ademais, que o STF aceitou a tese de que no crime de quadrilha ou bando, morrendo um dos quadrilheiros — se ele for o quarto membro — desaparece a tipificação.
D’outra banda, como pensar nos dias de hoje que as circunstancias do artigo 59 são compatíveis com a Constituição? Num Direito Penal do fato, a personalidade do agente deve entrar no computo da pena?[3]
Estamos punindo alguém pelo que ele fez ou por ele ser quem é? Isso parece ser bem velho, pois não? E o que é “personalidade do agente”?[4] Ferrajoli já há muito tempo fala do princípio da secularização do Direito. Vamos acreditar em Ferrajoli. Ele tem razão. O Direito Penal não deve punir vícios e comportamentos do indivíduo.[5] Nem sua conduta deve servir para agravar a pena. Além de que “a personalidade” é algo bem difícil de “sacar”, pois não?
E ainda faltam os embargos?
Não se sabe se o julgamento terminou depois de 138 dias. Segundo leio na Folha de S.Paulo por um de seus comentaristas especiais sobre o mensalão, ex-integrante do governo, “agora vem os embargos infringentes” (o comentarista sequer discute se cabem ou não cabem). Pois é. Em artigo na aurora do julgamento, sustentei aqui o não cabimento dos embargos infringentes. Não vou repetir agora os argumentos. Mas o Supremo Tribunal terá que decidir essa preliminar antes de examinar os tais embargos, que inexoravelmente acontecerão. Veremos o que dirá a Suprema Corte, nesse resto de julgamento. Trata-se de interpretar o Regimento Interno de acordo com a Constituição ou a Constituição de acordo com o Regimento Interno. Qual será o resultado? Aposto aqui na tese do ministro Gilmar Mendes, que entende não estar recepcionado o artigo 333 do RISTF.
A prisão dos réus
A jurisprudência do Supremo Tribunal foi construída nos últimos anos no sentido de que a prisão se justifica apenas nos casos de sentença condenatória transitada em julgado. O STF vem julgando assim. O ministro Joaquim Barbosa diz que, no caso do mensalão, está-se diante de uma coisa nova, porque é última instância. Confesso que não entendi as razões pelas quais o STF não estaria vinculado à sua própria jurisprudência. Por que o DNA do “assunto prisão” não se aplicaria em julgamentos originários?
Advirto que escrevo este artigo antes de o ministro Joaquim Barbosa decidir acerca do pedido feito pelo procurador-geral da República, que quer ver os réus atrás das grades já durante o Natal. Arrisco um palpite: Há dois motivos para o ministro negar o pedido de prisão: Primeiro, os limites semânticos do texto Constitucional (como sabemos, embora um texto não contenha a sua própria norma, ou seja, o texto não trás em si-mesmo-o-seu-sentido, não se pode atribuir “qualquer norma ao texto”; eis porque existe aquilo que podemos chamar de limites semânticos no plano da hermenêutica). Se, por exemplo, um deputado só pode ser preso em flagrante e depois de sentença transitada em julgado — e como a decisão do STF que cassou os mandatos não transitou — então um parlamentar não pode ser preso (porque ainda é parlamentar, formalmente); não consigo atribuir outra norma ao texto constitucional, por mais que me esforce; segundo, a jurisprudência do STF aponta em sentido contrário. Acertarei na minha previsão?
A derrota da dogmática
Por essas e outras é que afirmei (e afirmo) que a dogmática jurídica foi a maior derrotada no julgamento do mensalão. Dogmática jurídica: Leia-se “imaginário jurídico dominante”. O pensamento dogmático mostrou e provou (não com base em indícios, frise-se — não resisto à ironia) seu grau de defasagem face à Constituição e os efeitos deletérios disso. De todo modo, olhando o que estão ensinando nas Faculdades de Direito e o tipo de literatura mais utilizada, não há muito espaço para dizer “céus, que surpresa!”. É inexorável que os livros usados nas faculdades e nos cursinhos de preparação acabem nas mesas de juízes e promotores (e de advogados; e de ministros). Parafraseando Vargas Llosa, em seu recente A Civilização do Espetáculo, vivemos uma dogmática do espetáculo, porque o nosso “mercado jurídico” criou os mecanismos de difusão que nos permitem assistir a esse “excesso de espetáculo”. Nessa “dogmática do espetáculo”, tudo é “relativo”. Pode tudo. Escreve-se de e sobre tudo, de qualquer modo. Resultado: se tudo é, nada é...!
E falta também coerência. Os mesmos que sempre aplaudiram um suposto livre convencimento, transformaram o ministro Lewandowski em inimigo número 1 no julgamento, quando divergiu (acertadamente em alguns momentos; em outros não) do voto proferido pelo ministro relator. É bem verdade que o trabalho minucioso realizado pelo ministro Joaquim Barbosa foi indispensável para que se pudesse julgar o caso (registro minhas homenagens), mas essa idolatria que se tem feito aos ministros da Suprema Corte em certas ocasiões de comoção nacional (v.g. julgamento das uniões homossexuais, células tronco, cotas raciais etc.) constituem-se em verdadeiro indicador de nossa pouca familiaridade com as instituições num Estado Democrático de Direito, além de incorrer no sério risco de passar a ideia de que o papel do STF é concordar com o clamor das maiorias. Veja-se que o atual presidente da Suprema Corte, fosse hoje candidato a presidente da República, teria mais votos que um figurão como Aécio Neves, que está há anos na política, tendo sido governador e atual senador... Isso não é pouca coisa. O que se passa na República?
Parece que estamos pagando as contas do passado de impunidade do andar de cima. Uma espécie de catarse. Agora, quando o Supremo Tribunal aplica penas pesadas a um grupo que tem o perfil daqueles que sempre usaram botas (faço a alusão a um dos meus bordões que busquei em La Torre Rangel: La ley es como la serpiente; sólo pica a los descalzos), não pode surpreender que o principal protagonista, o ministro relator, seja transformado em herói, com direito à máscaras estilizadas de carnaval e passeatas no Rio de Janeiro. É o imaginário social se pronunciando. Dia destes, no Rio de Janeiro, na praia, um amigo meu, procurador de República, acompanhado de seu pai, viram um vendedor de bijuterias dizendo em voz alta, exultante: “Aí mermão; esse Joaquim Cruz é sinistro; tá enjaulando os bacana.” Claro que confundia o nome do ministro relator com o atleta olímpico. Mas, com certeza, tinha tudo a ver.
Qual é o papel da Suprema Corte? Penso que podemos apreender muito com a leitura da Odisséia. E nos abeberarmos dos ensinamentos de Ulisses, que pede para os seus grumetes para que o amarrem no mastro e, sob hipótese alguma, obedeçam qualquer ordem (dele, Ulisses), em sentido contrário. Os grumetes deveriam obedecer apenas a primeira ordem. A sobrevivência de Ulisses depende disso. Porque ele sabe que, sem as amarras, não resistirá ao canto das sereias. Ele tinha convicção de que a única maneira de sobreviver era ser amarrado ao mastro, para, assim, não sucumbir ao canto das sereias.
Sim, certas correntes nos salvam de nós mesmos!
Numa palavra final
Quando afirmo que a grande derrotada no julgamento do mensalão é a dogmática jurídica, estou me referindo ao modo como estamos “fazendo” o Direito. Não é implicância minha, não. Trata-se de uma crítica que procuro elaborar ao “imaginário prevalecente no mundo jurídico”, onde existe uma espécie de “discurso instituído”, em que os locutores desprovidos de “competência legítima” — e aqui recorro à clássica lição de Bourdieu (do livro Economia das Trocas Linguísticas) — se encontram de fato excluídos dos universos sociais onde ela é exigida, ou, então, veem-se condenados ao silêncio.
A dogmática jurídica, no modo como elabora o “discurso dominante”, “criminaliza”, por “porte ilegal da fala”, aqueles que não “falam a sua língua”. E qual é a sua língua? A língua do discurso pronto e acabado, da cumplicidade entre os partícipes do “butim”. Forma-se, assim, uma dominação simbólica, que não se mostra como tal por não implicar eventualmente algum “ato de intimidação”. E esse poder de violência simbólica só se realiza sobre alguém que esteja “predisposto a senti-la”.
É nesse mercado que a dogmática encontra o seu locus privilegiado, o mercado das trocas simbólicas de poder, onde o reconhecimento extorquido por esta violência, como acentua Bourdieu, é “tão-invisível-quanto-silenciosa”. O emissor não coage; é o receptor que reage. O discurso vem pronto, como “a casa tomada”, para lembrar Cortázar.
Quando lanço críticas a uma parte do julgamento — por exemplo, à absolvição de Duda Mendonça baseada equivocadamente em uma Circular do Banco Central, como se pudéssemos delegar ao Banco Central ou às Agências Reguladoras a tarefa de estabelecer descriminalizações de condutas —, estou tão-somente trazendo a lume certa tradição jurídico-crítica produzida nos últimos 30 anos, denunciando o senso comum teórico. Não falo apenas de uma crítica com raiz filosófica; falo, fundamentalmente, da matriz constitucional, da necessidade de uma nova teoria das fontes, de uma nova teoria da norma, de um novo modo de interpretar o Direito e, finalmente, de uma teoria da decisão que ainda não temos. O julgamento do mensalão claramente nos mostrou esses gaps.
Faço isso por amor ao debate e para fortalecer o espaço acadêmico na imbricação com as práticas judiciárias. É minha obrigação dizer que, quando um ministro diz que “a doutrina constitucional é pacífica. No âmbito da aplicação, a lei é que deve nortear a interpretação da Constituição”, é porque temos que falar muito sobre o direito, para imitar, aqui, o livro Precisamos falar sobre Kevin. Como assim, ministro? A lei deve nortear a interpretação da Constituição? Não seria o contrário? Quantos livros de direito constitucional foram escritos para demonstrar o contrário do que disse o ministro?
Viram como a doutrina não mais doutrina? Não me surpreenderei se, logo, logo, isso será indagado em concurso público. Sim, porque não faltará algum livro do tipo “Direito Constitucional simplificado” que, de forma acrítica, repita esse conceito.
Tenho, finalmente, a obrigação de dizer que o STF, ao definir a perda dos mandatos, inovou, indo além da Constituição. Por mais que houvesse um clamor público contra os réus — lembremos das correntes de Ulisses —, isso não justifica retirar do Parlamento a prerrogativa de caçar os mandatos.
Desde Friedrich Müller conhecemos o princípio da congruência prática. Se um dispositivo da Constituição diz, aparentemente, o contrário do que diz o outro, é porque devemos ir a fundo e ver as razões disso. Não seria porque, no caso do artigo 55, é possível que o Parlamento, examinando um determinado caso, resolva não cassar o mandato? Mas o mandato não é do povo? Não existem juízes e promotores (sem falar de advogados públicos) exercendo a função, mesmo que condenados por determinado crime? Isso que eles não são parlamentares. Não estou dizendo que, no caso concreto, os parlamentares condenados na AP 470 não merecessem ser cassados. O que quero dizer isso é uma questão de princípio e não uma questão de política ou de opinião pública. Em Victor Hugo há o exemplo mais perfeito do que seja um princípio. Em Os últimos Dias de um Condenado, Victor Hugo faz uma ode contra a pena de morte. Mas não diz se o réu é culpado ou inocente. E não conta qual é o crime. Ele, simplesmente, é contra a pena de morte “por princípio”. E sabem por que ele não contou no livro esses detalhes? Para que os leitores não se contaminassem com o caso concreto. Um princípio é isso.
Ah, mas se o Parlamento não fizer? Bom, isso é o custo da democracia. Nos Estados Unidos, os deputados-réus que não foram cassados não se reelegeram. O povo — poder soberano — puniu-os.
O que fica disso tudo? Várias lições. Para mim, a principal é que a doutrina tem que recuperar o seu poder de “constrangimento epistemológico”. Deve (voltar a) doutrinar (se é que um dia já o fez nos moldes do que ocorre em países adiantados). Se o STF julgou do modo como julgou, é (também) porque teve pouquíssima contestação. É que o imaginário jurídico, forjado pela nossa dogmática jurídica, foi acostumado a se acostumar com o adágio de que “o Direito é aquilo que o Judiciário diz que é”.
E o jurista “médio” foi perdendo a sua capacidade de contestação. Desacostumou-se a criticar. O imaginário jurídico parece que imita as máximas de Martín Fierro, de que no le des de qué quejarse; y cuando quiera enojarse vos te debés encoger… Assim funciona a dogmática jurídica ou mais ou menos assim... José Hernández, autor de Martim Fierro, pode explicar isso mejor!
Ou parece que o pensamento dogmático tradicional — que acaba sendo o dominante — repete os conselhos do personagem de Machado de Assis que, no aniversário de 21 anos de seu filho, explica-lhe a teoria pela qual este poderia se dar bem vida afora. Para o pai, o filho tinha os requisitos para ser um “medalhão”: “tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim”. Observemos uma das máximas da teoria: “Longe de inventar um Tratado Científico da Criação de Carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar...”. É bem fácil, útil e proveitoso... Outro conselho importante do pai para o filho-candidato-a-medalhão: “Deves reduzir o intelecto à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum... O vocabulário deve ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim... Eis a receita do sucesso”. Ao final do diálogo com o filho Janjão, o pai arremata: “Rumina bem o que eu te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavel”.
E foi assim que fomos forjando esse imaginário. Fomos simplificando. E sem criticar, foi sendo formatado um discurso politicamente “correto” e “autoritário”, em que o crítico é tido como desviante.
“O jurista para se dar bem não deve criticar o Poder Judiciário” — talvez o personagem de Machado (pai de Janjão) assim aconselhasse o filho, acaso este fosse seguir a carreira de causídico. “Não faça crítica. Escreva simples. Sem notas vermelhas”. Eis a receita do sucesso. Enfim, no le des de qué quejarse…

[1] Particularmente, sou, digamos assim, invocado com a ponderação, acriticamente importada pela nossa comunidade jurídica. Na verdade, o que tem sido aplicado é uma vulgata do que disse seu criador. Estou falando de Robert Alexy e não de Philipp Heck (este quem, na verdade, iniciou a discussão no seio da Jurisprudência dos Interesses). Desafio que me mostrem uma decisão na qual tenha sido construída a famosa “regra da ponderação”. Todavia, há milhares de menções a esse enunciado performativo, como se fosse a pedra filosofal da interpretação. E mais nem precisa ser dito. Deixo para outros colunistas mais versados em literatura estrangeira para falar sobre a ponderação...!
[2] Mas, então, por que defenderam os réus, se sabiam que iriam perder?
[3] Não tenho encontrado – com raras exceções (p.ex., Salo de Carvalho e Fábio D’ávila) – penalistas que sustentem (denunciem) que, no Brasil, tem-se um direito penal do autor, mormente se examinarmos o conteúdo do art. 59 do CP, além da relevante circunstância de que a reincidência continua agravando a pena (peço perdão se estou esquecendo outros autores). Consegui, como Procurador de Justiça, a consolidação, por um período de mais de dez anos, da tese da inconstitucionalidade da reincidência junto à 5ª. Câmara do TJRS. Essa tese foi abandonada pela Câmara quando do advento da SV n. 10. Mas ainda continuo peleando, tentando convencer o órgão de que a SV n. 10 não se aplica a questões de não recepção (inconstitucionalidade superveniente).
[4] Eu não sabia o que era “personalidade”. Assistindo a uma entrevista de Guilherme Nucci na TV Cultura, dia desses, aprendi que é “nosso modo de ser”. Ah, bom.
[5] Para quem acha o Código Penal atual “bom”, necessitando apenas alguns ajustes, é bom perguntar sobre crimes como “casa de prostituição”, “dano” etc.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 22 de dezembro de 2012