por Luiz Gonzaga Belluzzo — publicado 18/07/2013 17:05
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso postou (“postou”, interessante essa palavra) em seu Facebook: “Nunca soube de espionagem da CIA”. E acrescentou: “Só poderia saber se fosse com o conhecimento do governo, o que não foi o caso”.
Desde maio de 1999 até os idos de 2002, CartaCapital publicou mais de uma dúzia de capas sobre a intervenção da CIA, do FBI e da DEA na Polícia Federal e nos ditos órgãos de segurança brasileiros. Esse consórcio de bisbilhotagem grampeou até conversas do então presidente da República. Diz o texto da edição nº 97 de CartaCapital: “Assim, enquanto o Brasil tocava o maior negócio privado dos EUA naquele ano, o Sivam, projeto de 1,4 bilhão de dólares, a CIA, órgão de espionagem dos americanos em consórcio com a polícia do Brasil, gravava conversas com o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso”. FHC tem o hábito irrefreável de esquecer o passado.
Não há ingenuidade suficiente para ignorar que os governos e impérios mantêm redes de espionagem em nome da segurança de seus cidadãos, mas, com frequência cada vez maior, com o propósito de garantir os negócios de suas empresas. Em tempos de alta temperatura democrática nos Estados Unidos, ainda à época da Guerra Fria, os “serviços secretos” praticavam suas tropelias e comandavam golpes de Estado nos quintais do Império. Mas eram parcialmente contidos em suas atividades “domésticas” pela vigilância dos Parlamentos e do Judiciário, além de submetidos a um escrutínio mais rigoroso da imprensa dita independente.
George W. Bush falou grosso depois dos atentados de 11 de setembro de 2001. Editou o Patriot Act, aprovado com o voto do democrata Obama. O Grande Porrete da Liberdade, que outrora desferia golpes na turma de fora, passou a espancar o pessoal da casa. Temos de conceder ao Estado americano a proeza de reabilitar as práticas da justiça nazista e do sistema judiciário de Joseph Stalin: os tribunais secretos ocupados por juízes embuçados.
Não são poucos os que se opõem às restrições à liberdade e à privacidade embutidas na nova legislação, mas a maioria silenciosa cala-se em nome do combate ao terrorismo, embrutecida pelo desprezo que devota à vida e ao patrimônio dos estrangeiros. As revelações de Snowden, o proscrito, apenas deixam a nu o que está inscrito no DNA do Poder Imperial Americano. Em seu outono, o Império do Norte capitula diante dos inimigos da democracia e do Estado de Direito porque as artimanhas dos interesses que os controlam são mais eficazes do que as manhas e os soluços de celebração das liberdades.
As agressões aos direitos alheios são executadas à luz do dia. Nem mesmo há a preocupação de invocar – apenas invocar – algum princípio de Direito Internacional para justificar as tropelias. Os realistas dizem que isso é assim mesmo, nas relações internacionais não há outra regra senão a lei do mais forte.
As diversas esferas da vida social, sobretudo a dos direitos dos cidadãos, os processos de informação e de formação da consciência política e coletiva, os espaços da autonomia individual estão colonizados pela lógica econômica e política de um Império que tenta sobreviver à custa do exercício puro e duro de seus interesses. As reações de Obama diante do golpe no Egito sugerem que, na órbita do Império, a adoção de procedimentos impecavelmente democráticos e o respeito à ordem jurídica não bastam para assegurar a estabilidade dos dirigentes escolhidos pelo sufrágio universal.
O atual governo americano está tornando o país mais parecido com ele mesmo. Uma reconciliação do fenômeno com o conceito, provavelmente a realização final do Estado Totalitário, aquele pesadelo antecipado por George Orwell no livro 1984. Por isso, é preciso coarctar e controlar as instâncias de discussão pública e da informação. A liberdade de opinião não é boa coisa, sobretudo quando começam a naufragar os programas econômicos e sociais recomendados pelos Senhores do Mundo como roteiros infalíveis para o sucesso.
Não faltará quem pretenda acusar de “antiamericanismo” os que hoje resistem e se opõem aos episódios de reafirmação do poder imperial americano. Tratar assim uma questão tão grave e decisiva para o futuro da vida decente neste planeta é inaceitável. É uma forma de “misturar estação” com o propósito de interditar o exame crítico de qualquer processo político, além de desfigurar o debate racional sobre os conflitos contemporâneos, transfigurada numa guerra de preconceitos travada nos baixios da alma humana.
Eram bons os tempos em que a fala do poder ainda exigia os subterfúgios do cinismo.
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