domingo, 7 de julho de 2013

Imprensa perdida em picuinhas e fofocas - | Observatório da Imprensa | Observatório da Imprensa - Você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito

Imprensa perdida em picuinhas e fofocas - | Observatório da Imprensa | Observatório da Imprensa - Você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito
Por Cristiano Moura Gonzaga em 02/07/2013 na edição 753
Não é de hoje que a imprensa é objeto de acalorados debates e das mais diversas acusações. Por exemplo, de defender interesses estritamente privados como se fossem públicos, de promover pessoas ou instituições sem méritos para tanto, de denegrir, difamar, destruir para sempre outras sem comprovações e, às vezes, sem antes de uma simples averiguação.
Embora, desde Johannes Gutenberg, a imprensa tenha gerado grandes polêmicas, é na efervescência das revoluções burguesas, no Iluminismo, ideários liberais dos séculos 18 e 19, que isso chega ao seu ápice. Uma boa ilustração disso pode ser encontrada no grande clássico da literatura universal de Honoré de Balzac As ilusões perdidas, onde o autor demonstra de modo bem ácido como a imprensa pode ser nefasta para uma pessoa, grupo ou mesmo para toda uma sociedade. Ernst Fischer, em seu livro A necessidade da arte, afirma que o romantismo, não obstante importante, no que tange à crítica social foi profundamente ingênuo, pueril e em certa medida irresponsável. Já o realismo, não. Suas críticas eram muito mais fundamentadas, pertinentes e com os pés no chão. Balzac – um dos principais representantes do realismo no sentido que Fischer o conceitua, a meu ver corretamente –, já naquela época, apontava como a compreensão e possíveis superações dos males de uma dada sociedade passavam inelutavelmente pela imprensa.
No Brasil isto também ocorre desde o Império. Diversos autores, como escritores, jornalistas e acadêmicos, também se debruçaram sobre o tema.
Veículos transformados em claques
A edição do programa 677 do Observatório da Imprensa na TV dedicou-se a um tema ainda caro entre nós: a regulação da imprensa. Tanto que o programa tratou das recentes polêmicas na Inglaterra e no México, não aqui. Os motivos foram muito bem elucidados num excelente artigo de Venício A. de Lima – jornalista, sociólogo e professor titular (aposentado) de Ciência Política e Comunicação da UnB (16/04/2013, edição 742). O professor chamou a atenção e com muita propriedade para o tipo liberalismo que adotamos:
“Chegou a hora de estudar a construção histórica da hegemonia do conceito liberal de liberdade em busca de suas peculiaridades no Brasil. Liberdade de expressão é um conceito em disputa. Apesar disso, uma de suas versões – a liberal – tem sido empunhada como bandeira de luta exatamente pelos representantes do sistema privado oligopolizado de comunicações. Paradoxalmente, em nome da liberdade de expressão, interdita-se o debate democrático sobre ela própria” (grifo do autor).
E, mais importante, sua advertência de como o debate está colocado aqui:
“Que o governo da presidenta Dilma Rousseff anunciou publicamente que não enfrentará essa questão (regulação), é fato.”
Recentemente nas redes sociais apareceram frases do tipo “mexeu com o Lula, mexeu comigo”. Era uma espécie de reação a uma série de “denúncias” que a grande imprensa vinha fazendo em relação ao ex-presidente. Como favorecimento às empreiteiras brasileiras no exterior e o fato do Lula ter que figurar como réu no escândalo do chamado mensalão. Particularmente, acho exagerado este tipo de reação. Mas o problema é que ele se justifica, pois nem sempre há uma investigação profunda, e às vezes nem superficial, e o que deveria ser informação torna-se torcida. Mesmo achando exagerada a reação dos “lulistas” nas redes sociais, não vejo isso como algo grave, comprometedor, embora discorde, o que acredito que seja salutar. A questão preocupante é quando misturamos as estações. Ou seja, uma coisa são pessoas, cidadãos e cidadãs manifestando-se sobre o que julgam certo ou errado, justo ou injusto. Outra, bem diferente, são veículos de informação, grandes jornais, sejam eles impressos, televisivos, rádios, portais de internet, formadores de opinião etc., abdicarem de seus compromissos éticos e constitucionais e transformarem-se em claques.
A cena e a prática
E aqui chego à grande questão de que me ocuparei neste artigo: como nossa imprensa inverte e distorce os valores e não vai ao essencial. Em outras palavras, ao interesse público. Perdem-se em picuinhas, intrigas, fofocas, interesses escusos e nada republicanos.
Para tanto, farei uma breve análise comparativa dos governos FHC/Lula/Dilma. O meu intento será o de demonstrar que o crucial escapou e ainda escapa à grande imprensa. A inspiração teórica e metodológica para fundamentar meus argumentos, busquei em Nicos Poulantzas,filósofo e sociólogo grego que a partir dos anos 60 fez carreira acadêmica na França. O conceito que utilizarei é o de blocos no poder, desenvolvido, sobretudo na sua obra Poder político e classes sociais, São Paulo: Martins Fontes, 1977.
Por não se tratar de um artigo acadêmico, vou procurar ser simples sem ser simplista (grande desafio!). O Estado não é algo monolítico, homogêneo e de fácil compreensão. O que não significa também que seja incompreensível, ou acessível apenas aos especialistas. Segundo Poulantzas, seu controle não decorre apenas de uma vitória eleitoral, mas também, e às vezes até mais, de frações de classe que estão incrustadas em seu seio, o bloco no poder. Outra contribuição importante é quando ele trata da “cena” e da “prática” políticas. Ou seja, a “cena”, os discursos, e a “prática”, os atos efetivos, as decisões e, sobretudo, os beneficiários destas. Não é impossível que cena e prática se confundam, entretanto, no caso que analiso, há, sim, um imenso divórcio entre ambas. E no que diz respeito à nossa imprensa, é notório e muito a se lamentar, o fato de que grande parte de suas interpretações que viram “informações” têm como base a cena, e não as práticas.
Criticar sem ler
No caso brasileiro, o bloco no poder inclui grandes proprietários de terras (e latifúndios), o agronegócio, empresas nacionais como indústrias, redes de varejo, empreiteiras, enormes conglomerados transnacionais que controlam os mais variados setores no caso específico, automóveis e comunicação e, por fim, o setor bancário-financeiro. Há, evidentemente, os que representam interesses dos trabalhadores, como sindicatos, federações e confederações etc. A grande questão é: quem será hegemônico? Em outros termos, qual ou quais frações terão seus interesses atendidos? Isso não se dá de maneira tranquila. Há disputas, lutas no interior do bloco, para exercer tal hegemonia. Se observarmos desde o governo FHC até os dias atuais, todos estes setores foram e são atendidos. De acordo com a conjuntura, variando em maior ou menor grau. Entretanto, um setor, ou melhor, uma fração do bloco no poder, destacou-se imensamente nos governos FHC e Lula, teve uma considerável recuada no início do governo Dilma, mas recentemente parece que voltou a dominar a cena, o pedaço, tudo! Refiro-me à fração bancária-financeira. E os episódios recentes que me levam a afirmar isso foram as seguidas elevações nas taxas já exorbitantes dos juros.
Com a dissolução do socialismo real, simbolizada na destruição do muro de Berlim e efetivada no fim melancólico da União Soviética, os defensores do capitalismo comemoravam. Tanto que o filósofo e economista político nipo-estadunidense Francis Fukuyama proferiu a famosa frase: “É o fim da história.” Dali em diante, o capitalismo estaria livre para dominar o mundo sem incômodos. Claro que o tempo demonstrou quão eram imprecisas e apaixonadas as teses destes mesmos defensores. A pobreza, a questão ambiental e o Islã comprovaram isto. Contudo, naquele contexto havia motivos para tanto entusiasmo.
Fernando Henrique Cardoso governou o Brasil durante oito anos. Privatizações, arrochos salariais, instabilidade macroeconômica constante, crescimento pífio do PIB, denúncias de compra de votos pela aprovação da emenda da reeleição, aprofundamento da crise social. E, lamentavelmente, todos estes casos nunca foram investigados e publicados pela grande imprensa. Mas, no entanto, acredito que FHC foi injustiçado em determinados momentos. Muita gente o acusa de demagogia na questão da regulação do uso da maconha e demonstraram má vontade com o filme em que trata disso. Discordo. Acredito que o ex-presidente vem desempenhado um bom e corajoso trabalho, inclusive em cortes internacionais. Poderia ter aprofundado o tema quando estava no poder? Sim, mas isso não invalida sua atuação. A maior injustiça que ele sofreu foi quando governava o país e foi acusado de ter esquecido tudo o que escreveu quando era proeminente sociólogo. Isso ocorreu por dois motivos. O primeiro é a falta de clareza das pessoas em geral do que seja um sociólogo, sendo constantemente confundido com assistente social. A segunda, e principal, é a mania que alguns intelectuais, professores e jornalistas têm de criticar sem ler, sem conhecimento do que está se criticando. Digo isso, pois seu governo foi, sim, coerente com tudo o que ele escreveu.
Hegemonia bancária-financeira
Entre os dias 18 e 24 de abril de 1955, ocorreu a Conferência de Bandung, na Indonésia. Era uma espécie de reação dos países pobres à dominação imperialista das superpotências que dominavam o mundo naquele momento: EUA e URSS. Vale lembrar que nessa época grande parte da Ásia e da África ainda era constituída por colônias. Desta conferência resultou um movimento denominado terceiro-mundismo. Este consistia na negação de quaisquer formas de dominação por parte dos países ricos econômica e principalmente militarmente. A América Latina em geral e o Brasil em particular não ficaram imunes a isso. Diversos intelectuais e ativistas abraçaram a causa.
É exatamente contra isso que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso irá assentar boa parte de sua produção acadêmica. Em síntese, não era possível, para ele, que países como o Brasil abrissem mão da “ajuda” dos países ricos. Em suma, na obra Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica,que escreve junto com o sociólogo chileno Enzo Faletto, o esforço teórico e metodológico consiste em eliminar a oposição dependência e desenvolvimento. Ou seja, não é o fato de o país ser submisso e subserviente que o manterá pobre, mas o contrário! Chega inclusive a criar o conceito de “desenvolvimento dependente associado”. As razões para essa imagem do país permitem as mais variadas interpretações. Em minha opinião, alinha-se à tradição de parte majoritária de nossas elites que não acreditam na capacidade de seu povo. E isso vem de longe. Talvez a mentalidade colonial de que aqui é para ganhar o que der e sumir para o “mundo civilizado”.
Seguindo as receitas letais do tal Consenso de Washington,privatizações em massa, inclusive de setores estratégicos, corte de gastos públicos (eufemismo para transferência de renda dos pobres para meia dúzia de especuladores) e aquilo que a grande imprensa consagrou como reinvenção da roda: a estabilização monetária e, aproveitando-se do trauma da inflação surreal dos anos 1980, esta se torna o grande demônio a ser exorcizado, custe o que custar. No nosso caso: juros estratosféricos, desemprego e miséria! O que a grande imprensa nunca esclareceu foi que esta estabilização monetária aconteceu em diversos países, não só no Brasil. E a questão estava no contexto de acumulação capitalista de então: a especulação financeira. O que mais interessa para os objetivos deste artigo é que foi neste período que a fração bancária-financeira se tornou hegemônica no bloco no poder e se manteve praticamente intacta no governo Lula.
A lei da oferta e da procura
Comparativamente, os dois mandatos do ex-presidente Lula foram consideravelmente mais positivos do que seu antecessor FHC. Do ponto de vista macroeconômico (setor externo, nível de atividade, inflação, emprego e renda e finanças públicas), houve melhorias significativas. Diminuiu a instabilidade estrutural da economia brasileira, a política externa mostrou-se mais dinâmica e muito menos subserviente, a dívida externa zerou e as taxas médias de crescimento do PIB nos dois governos Lula (3,5% entre 2003 e 2006; 4,6% entre 2007 e 2010) foram maiores do que as dos dois governos FHC (2,4% entre 1995 e 1998; 2,1% entre 1999 e 2002). Não faltaram vozes na grande imprensa, inconformadas com este cenário, por incrível que pareça, a tagarelar sofismas de que o sucesso macroeconômico do governo Lula não tinha nada a ver com o mesmo, mas, segundo esses jornalistas e formadores de opinião em geral, Lula não enfrentara a turbulência econômica mundial que FHC enfrentou. Aí veio a grande e devastadora crise de 2008 e o Brasil ficou praticamente imune.
O mérito foi do trabalho comandado pelo então ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, de tirar o Brasil da estrita dependência do eixo União Europeia/EUA/Japão, abrindo a economia do país para mercados até então em segundo plano ou mesmo ignorados, como China, Rússia, África, Oriente Médio. Como a crise de 2008 ocorreu exatamente no eixo que mencionei acima, o país não sentiu tanto, já que não dependia mais única e exclusivamente dele. Havia novas e promissoras alternativas. Outro fator que também contribuiu muito para o Brasil não sucumbir à crise foi a expansão do mercado interno. E isso graças a outro mérito dos governos Lula: aumento real do salário mínimo e a consolidação de políticas sociais, principalmente o Bolsa-Família.
No primeiro governo Lula, as linhas gerais da política macroeconômica de FHC (sistemas de metas de inflação, superávits primários e câmbio flutuante) mantiveram-se. Sistemas de metas de inflação, como o próprio nome diz, significa manter a inflação, os preços de produtos e serviços públicos e privados sob estrito controle. Superávits primários estão relacionados às contas do governo, ou seja, o governo não pode gastar mais do que arrecadou, caso contrário ocorre déficit o oposto de superávit, que significa resultado positivo. Câmbio flutuante são as variações da moeda que ocorrem sem o controle sistemático do governo. Destarte, é a famosa lei da oferta e da procura que deverá “regular” o valor da moeda.
Sete grandes empresas
Sublinhei o controle sistemático do governo pelo fato de residir nisso o x da questão. Por detrás destas linhas mestra de macroeconomia, estão teorias que dão suporte acadêmico, político e científico para suas execuções. O grande problema reside no caráter “científico”. Em determinadas ocasiões, a ciência acaba transformando-se num poderoso instrumento de manipulação das classes detentoras do poder no sentido de que se foi estudo e pesquisado a exaustão, determinado fenômeno não cabe discussão. O fato de essas teorias macroeconômicas serem dominantes, não significa que sejam as únicas. Porém, como atendem interesses poderosos, a imprensa em geral as apresenta como tal.
No segundo governo Lula houve uma flexibilização desta ortodoxia econômica que mencionei acima. É deste período a ampliação do crédito, o fortalecimento do mercado interno, diminuição considerável nas taxas de desemprego e, por conseguinte, significativa melhoria nas condições de vida dos mais pobres. Esta melhoria tem sido objeto de todo tipo de controversas. E sempre vem à tona o Bolsa Família. Há exageros. De um lado, os favoráveis afirmam que foi a maior revolução social do mundo. Já por outro, os críticos, que o programa não passa de assistencialismo, e toda aquela conversa enfadonha de que se deve ensinar a pescar e não dar o peixe. Todavia, muita gente, milhões deixaram a condição de miseráveis. Não obstante o número de miseráveis ter diminuído bastante, uma questão se impõe: as políticas sociais dos governos Lula foram um esforço no sentido de uma política de Estado para acabar com a miséria, ou a legitimação do bloco no poder?
Farei agora uma breve apreciação nos dados sobre os lucros que os bancos tiveram neste período, que me levaram a afirmar que durante a era Lula foram de longe mais abençoados pelo governo brasileiro:
“(...) Na última década, o lucro líquido dos maiores bancos que atuam no Brasil passou de R$ 8,09 bilhões em 2001 para R$ 48,41 bilhões em 2010, um salto de 498% em termos reais. É bom lembrar que em 2001 eram onze grandes instituições financeiras atuando no país: Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Bradesco, Itaú, Unibanco, Banespa, Banco Real, Santander, Safra, Nossa Caixa e HSBC. Em 2010, após as privatizações e fusões, os bancos concentraram ainda mais capital e hoje somam sete grandes empresas: BB, que adquiriu a Nossa Caixa; Santander, com a compra do Real e Banespa; Itaú que adquiriu o Unibanco; Caixa Econômica Federal, HSBC e Safra. Fonte: Terceirização e Desenvolvimento Uma conta que não fecha Dossiê sobre o impacto da terceirização sobre os trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos”(documento elaborado pela CUT e Dieese, setembro de 2011). Grifos meu.
Agronegócio e empreiteiras
Nicos Poulantzas era marxista, participou de diversas correntes. Em suas obras está presente um conceito fundamental para compreensão do pensamento de Karl Marx: a ideologia. No sentido que nos interessa aqui, trata-se de interesses estritamente particulares apresentados como públicos. Como já apontei, a permanência de uma fração do bloco no poder de forma hegemônica não se dá de modo tranquilo. E mais, é preciso também criar uma espécie de consenso entre os governados para tal.
Do ponto de vista ideológico, a fração bancária-financeira fez-se valer de inúmeras e sofisticadas estratégias de persuasão para justificar os imensos lucros. O já citado controle da inflação e também o esvaziamento do conteúdo político de suas ações. Este esvaziamento decorre quando as questões econômicas passam a ser tratadas como um assunto estritamente “técnico”. Isso ficou evidente quando os defensores desta política macroeconômica exigiram e conseguiram a independência do Banco Central. Em outras palavras, não cabia ao poder executivo interferir no BC, pois lá não é lugar para política nem políticos, mas sim para especialistas, técnicos. A grande imprensa apresentava isso como evolução e profissionalização do BC. É neste sentido que evoco o conceito de ideologia de Marx. A independência e despolitização do Banco Central induz a impressão de que esta é uma entidade neutra. Isso é uma falácia. Primeiro, a decisão da autonomia do BC já é em si um ato político. Segundo, quando mantém a taxa de juros elevadas, alguém ganhou e muitos perderam.
E nisso a inflação tornou-se a grande vilã, o demônio a ser exorcizado. Espero ter deixado claro que não sou a favor da inflação. O que questiono é a maneira de combate a ela, com juros altos, apresentada como a única. Na época de FHC tinha até uma anedota que indagava se a pessoa preferia uma inflação de 1% ao mês desempregada ou de 10% empregada. Na transição do governo Lula para a atual presidente Dilma, houve uma ligeira queda na hegemonia da fração bancária financeira e ascensão de outras frações no bloco no poder. Em especial duas: a do agronegócio, isso devido mais à conjuntura internacional e à elevação no preço das commodities e das empreiteiras e indústrias ligadas à construção civil em decorrência de megas e polêmicas obras: a usina de Belo Monte, transposição do Rio São Francisco e as obras para a Copa e Olimpíadas. No primeiro caso, ficou ainda mais evidente com a entrada da senadora Kátia Abreu do PSD na base aliada. Como resultado, notamos aumento significativo de devastação ambiental e os conflitos agrários e com os índios que resultaram, inclusive, em mortes.
Aarmadilha da inflação
No filme Ao Sul da Fronteira o diretor Oliver Stone fez um passeio pela América do Sul e se mostrou entusiasmado com a efervescência política que levou ao poder a partir do final dos anos 90 governos que não se alinhavam automaticamente com Washington – muito pelo contrário, tornaram-se grandes obstáculos e ameaçaram e ainda ameaçam a hegemonia norte-americana na região desde a Doutrina Monroe. Entretanto, uma coisa ficou patente: a sua decepção com o Lula. Visível na forma e no pouco tempo que se dedicou ao país mais importante da região no filme e nesta frase: “No Brasil, as mudanças foram muito mais políticas do que estruturais.” Implicância? Acredito que não. Lembro-me também de um artigo do pensador brasileiro Boris Fausto completamente indignado com o historiador inglês Perry Anderson que, em outro artigo, é só elogios ao ex-presidente Lula. E ele ficou bem bravo. Chegou, inclusive, a sugerir que Anderson vê em Lula uma espécie de monarca absolutista iluminado. Depois de criticar duramente o tratamento que o governo Lula dispensou ao setor financeiro, outra observação dele em particular nos interessa aqui: “E curioso que o autor tome a interrupção das privatizações como marco de uma ruptura. Ruptura haveria se Lula reestatizasse empresas privatizadas, atendendo a pressões de um setor radical de seu partido e de vozes situadas na extrema-esquerda.”
A análise proposta por Nicos Poulantzas é de grande validade para compreendermos mais e melhor as relações sociais e políticas em nossa sociedade. Ou seja, devemos sempre considerar os atores econômicos, as grandes empresas dos mais variados setores que atuam e muitas vezes determinam os rumos políticos do nosso país. E em todas as esferas. Está mais claro para o grande público agora como as empresas de ônibus têm poder em quase todas as prefeituras do país, felizmente. E como o Estado cria condições para que seus interesses sejam consolidados em detrimento do bem-estar comum. Seja de maneira direta, como a falaciosa independência do Banco Central e a receita única de combate à inflação com juros extorsivos, seja na fragilidade das agências reguladoras, como Anatel, ANS etc., seja na debilidade do próprio Estado em conter, controlar e punir os abusos destas empresas com um Poder Judiciário moroso e arcaico. Aliás, digna de nota, é a triste falência dos Tribunais de Pequenas Causas. Criados inicialmente para dar celeridade aos conflitos cotidianos, muitos envolvendo empresas (e bancos!), atualmente encontram-se superlotados. Acrescente-se a isso o próprio Conselho Nacional de Justiça que, se excetuando casos de grande repercussão midiática, não passa de uma sofisticação do odioso e nefasto corporativismo. O cidadão comum continua à mercê não da Lei, mas da boa vontade dos juízes de primeira instância. Tudo isso deve nos fazer repensar se o Poder Judiciário é lento e extremamente burocrático por ineficiência ou por atender interesses.
É curioso o tom emotivo e por vezes passional que assumem aqueles que se ocupam do ex-presidente Lula. No caso de seus defensores chega a parecer algo religioso. Exemplo é o debate em torno da volta da inflação. Muitos petistas, inclusive os que se autointitulam de esquerda, rebatem a crítica da inflação presos na armadilha ideológica que os setores beneficiários criaram. Não questionam o alicerce a base: limitam-se a dizer que “a inflação está, sim, sob controle”.
Enfiando a cabeça na areia
Do mesmo modo, os críticos de Lula raramente se pautam pela razão. Há um caldo cultural nisso. Ainda estamos inseridos numa sociedade preconceituosa e cínica. Evidente que para os herdeiros da casa grande ter um ex-operário, que já foi pobre na presidência do país é na melhor das hipóteses um insulto. Porém, este ranço com a origem do Lula é muito forte na classe média e até nos estratos mais pobres. Aqueles que por diversos motivos se acostumaram com um “doutor” independente das suas práticas. Exemplos são abundantes. Luiz Inácio Lula da Silva tem seu lugar reservado na história. E, quando conseguimos um pouco de distanciamento das nossas convicções pessoais e analisamos seus dois governos, notamos ganhos significativos não só para os mais pobres com para grupos denominados “minorias” como negros, homossexuais, mulheres, portadores de necessidades especiais, etc. Quanto à indagação que fiz sobre se o Bolsa Família foi mais estratégico para a manutenção no poder, responderia que sim. Entretanto, para quem não comia e passou a fazer pelo menos três refeições regulares por dia, isso pouco importa. O lado negativo é quando colocam Lula acima do bem e do mal. O PT precisa aprender a discordar do Lula sem ter que romper com o partido. Quando comecei as pesquisas para este artigo não estava ocorrendo esta onda de protestos. Nestes períodos turbulentos, é comum a passionalidade, sobreposição das emoções, análises completamente irracionais.
O governo da presidenta Dilma mostrou-se no começo disposto a romper com a hegemonia da fração bancária financeira. Mas as últimas decisões do Banco Central demonstraram que ou não conseguiu ou mudou de ideia. Tenho absoluta certeza que num eventual governo José Serra estas manifestações iriam ocorrer e seriam bem mais intensas e violentas. Pela sua completa indiferença às demandas sociais, por seu temperamento egoísta e autoritário etc. Basta uma simples analisada em como ele tratou os conflitos quando era prefeito e quando foi governador, ou como o seu partido, o PSDB, trata as questões sociais. É só termos em mente o lamentável episódio conhecido como “massacre do Pinheirinho” ou as chacinas quase que regulares da PM paulista nas periferias.
Mas, não obstante, percebo novamente que a torcida segue dando lugar à análise. Chega a ser patética a postura de quem defende este governo. Estão falando até em golpe orquestrado pela direita. Agora, o que é a “direita”? O grupo político liderado por FHC? E Maluf, Renan Calheiros, Sarney, Kassab, Collor, Kátia Abreu, que estão no governo do PT, por acaso se converteram ao comunismo?
Pouco antes das eleições municipais de 2012, foi publicado um artigo meu neste Observatório (“O complexo de avestruz da imprensa paulista“) no qual chamava atenção para o fato da imprensa não enxergar, ou melhor, não querer enxergar o quadro político-partidário desalentador da cidade de São Paulo. E neste ano dois episódios envolvendo o atual prefeito Fernando Haddad me irritaram profundamente. A greve dos professores municipais e a demora covarde dele em revogar o aumento na tarifa de ônibus. Em ambos os casos não faltaram pessoas se manifestando surpresas com as atitudes (ou a falta delas). Chegaram, inclusive, a dizer que foram traídas! Como assim? Ninguém sabia quem ele era? Não se deram ao trabalho de observar o que foi a sua atuação como ministro da Educação num ano em que as universidades federais pararam por mais de quatro meses e o Brasil figurava em penúltimo lugar num ranking sobre educação no mundo? Não atentaram para as alianças e os termos em que ele se elegeu? Neste mesmo artigo, lamentava a postura de colegas petistas, em insistirem na conversa fiada que a aliança com Paulo Maluf era justificada. Ou seja, como a imprensa e o avestruz, enfiaram a cabeça na areia.
O ministro sumiu
E pelo que estou vendo, ouvindo e lendo, a empáfia continua a mesma. Agora com aquele viés elitista. Está todo mundo na rua por que estão sendo manipulado, quando não é para apoiar os governos petistas, as manifestações são feitas por autômatos, gente incapaz de pensar, vítimas da Veja e da Globo. Ainda é imprevisível o rumo que estas manifestações irão tomar. Contudo, o principal problema são os referenciais que estão utilizando para analisar e compreender o fenômeno. Muitos ainda do século 19. Falta a esses analistas referenciais do século 21, de uma sociedade líquida, para usar um conceito de Bauman. “Mas o que eles estão reivindicando?” “Quem são os líderes?”, indagam. E o descontentamento com partidos alcunham de fascismo. Mas o principal, não estão fazendo: a autocrítica!
Juca Kfouri vem constantemente publicando artigos, reportagens e vídeos sobre os absurdos e violações dos direitos humanos decorrentes destes mega eventos esportivos. Assisti a dois documentários assustadores, com práticas de remoção nas palavras do blogueiro, “manu militari” e “nazistas”. E para quem assistiu e está acompanhando isso as definições não são nem um pouco exageradas. Isto posto, podemos concluir que embora setores ligados ao PSDB, DEM, PPS (o PCdoB “deles”) que nunca, repito, nunca fizeram absolutamente nada pelos mais pobres, vão tirar proveito disso. Ou seja, há, sim, motivos de sobra para tanto descontentamento.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) publicou recentemente no auge dos conflitos em que assassinaram indígenas, a excelente relação que a ministra Gleisi Hoffmann tem com grandes fazendeiros. O ministro dos Esportes Aldo Rabelo, além de nunca demonstrar coragem com relação ao presidente da CBF e do COL, José Maria Marin, entulho da ditadura, no começo das manifestações disse em tom de ameaça que “ninguém nem nada iria impedir a realização dos jogos”. “Governo representa 40% da renda de maior grupo educacional do mundo“ Esta foi a manchete do portal iG de meados do mês de maio. Estava se referindo ao mais no foco de preocupação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) à fusão entre o grupo Anhanguera com a norte-americana Kroton. A Anhanguera é objeto de diversas ações judiciais. No ano passado, das faculdades que comprou demitiu mais de 1.400 mestres e doutores e contratou profissionais sem estas titulações para pagar menos. E um dos principais sócios, Gabriel Mário Rodrigues, é só elogios ao atual ministro da Educação, Aloízio Mercadante. Também, quase metade de lucro fácil e sem risco! Numa rápida e simples consulta aos alunos das instituições compradas por essa rede, qualquer pessoa constatará o quanto foram e estão sendo prejudicados. Não sei por que não vejo na grande imprensa isso. O que vejo é que são grandes anunciantes. E esta boa vontade do ministro é no mínimo suspeita. Sem contar que no ano passado, em plena greve Mercadante sumiu. Foi viajar para o exterior e não recebeu os professores. E neste ano, quando surgiu mais um escândalo na correção das provas do Enem, estava com a presidenta Dilma, em visita ao papa.
Assuntos que a escola não discute
Educação é a base de tudo. Frase de efeito? Clichê? Se sim, não deveria. Quem já leu outros artigos que escrevi sabe que grande parte das minhas preocupações está relacionada à Educação. Área em que atuo e milito. No atual contexto quero salientar dois aspectos. As sandices estúpidas de Marco Feliciano e os “fascistas” que não querem participação dos partidos. No primeiro caso, chama atenção que Gabriel Chalita, que no começo deste ano foi acusado de recebimento de propina, tráfico de influência, desvio de verbas, entre outras indicam que o político teria movimentado irregularmente cerca de R$ 68 milhões do patrimônio público. Atualmente ele preside a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados. A própria gestão dele quando foi Secretário da Educação de São Paulo já deveria ser motivo de descontentamento dele presidindo a Comissão. Curioso é que não vi ninguém do movimento feminista nem dos representantes dos homossexuais protestando. Isso é incoerência e grave erro estratégico. Pois é exatamente nisso que Marco Feliciano centra seus argumentos para continuar com suas maluquices. Por que nas outras comissões importantes pode e ele não pode? Quero ver este homem longe não só dos Diretos Humanos como também da vida pública. Mas suas reclamações acabam legitimadas por descuido daqueles que estão na linha de frente contra sua permanência. A incoerência é que no longo prazo, só com uma educação de qualidade, universal e laica é que vamos superar preconceitos e mistificações. A mesma coisa com os “fascistas”. Estive em algumas passeatas. Em Santo André tinha um grupo de adolescentes xingando a presidenta Dilma com palavrões e pedindo a ditadura. Ao meu lado um colega professor e militante de esquerda não demorou em defender o governo e a democracia chamando eles exatamente de fascistas. Fiquei assustado, pois eram apenas adolescentes e algumas crianças. A questão é, estão ensinando para esta garotada como se constrói uma sociedade justa, sustentável e democrática? Evidente que estas manifestações de cunho ultraconservador são preocupantes, mas é preciso ir além da superfície. Uma sociedade que tolera um Aloízio Mercadante no Ministério da Educação, Gabriel Chalita na Comissão de Educação, com uma imprensa que com raríssimas exceções não acompanha, investiga, com uma cobertura amadora da educação esperava o que?
Já a pergunta que faço se estamos ensinando a garotada corretamente, deixo para a atriz Irene Ravache responder, que também nos leva à constatação de que nosso sistema de ensino é precário em todos os níveis, não só o público, infelizmente. A entrevista foi concedida ao portal iG no dia 13/06/2013 por ocasião da estreia do filme A Memória que Me Contam, da diretora Lúcia Murat:
“(O assunto) não é comentado nas escolas. O lugar onde se ensina a história do Brasil não fala sobre isso. Digo pela escola dos meus filhos e netos. Fala-se apenas que houve o Ato Institucional nº 5, o Brasil passou por uma ditadura, mas não entram nos detalhes.” “Acho tão leve a punição para um crime como estupro no nosso país, como se alguma coisa justificasse o estupro. Se não abrirmos os olhos, daqui a pouco vão dizer que a atitude da mulher é que causou. O estupro também não é discutido na escola.”
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Cristiano Moura Gonzaga é sociólogo e professor, Santo André, SP

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