domingo, 3 de junho de 2018

Junho de 13 foi de sonho democrático a pesadelo autoritário, diz Bosco

Junho de 13 foi de sonho democrático a pesadelo autoritário, diz Bosco

Autor afirma que a pintura romântica de cinco anos atrás parece dar lugar a retrato de Dorian Gray


Francisco Bosco
[RESUMO] Junho de 2013 representou para muitos a esperança de uma nova cultura política. Cinco anos depois, autor afirma que a pintura romântica parece dar lugar a uma espécie de retrato de Dorian Gray.

Na última quarta-feira (30), esta Folha reportou que a jornalista Rachel Sheherazade, o MBL e o general Eduardo Villas Bôas foram atacados em suas redes sociais por terem criticado a greve dos caminhoneiros.
A turba acusou a princesa do conservadorismo e o militar de serem vendidos, declarou-se decepcionada com Kim Kataguiri (cofundador do Movimento Brasil Livre) e, pasmem, tachou a posição deles de... comunista.
Aquilo que até 24 horas antes era percebido por muitos como uma direita imoderada agora é deslocado de sua posição no espectro ideológico —rumo à esquerda!— pela ação de uma força tão extremista que já não cabe nos limites do quadro político democrático.
A coisa é desconcertante. Sheherazade, para quem não se lembra, é aquela que alegou "legítima defesa coletiva" em favor dos justiceiros que não somente espancaram um adolescente negro acusado de assalto como também o prenderam num poste, pelo pescoço, com uma tranca de bicicleta.
O MBL é, na definição do professor Wilson Gomes, uma startup que promove o ódio político. E, pode-se acrescentar, produz e dissemina fake news como estratégia de convencimento.
Villas Bôas, além de representar o Exército, é o general que tuitou, na véspera de o Supremo Tribunal Federal julgar a possibilidade de Lula ser preso após decisão em segunda instância, que os militares estavam atentos e zelando pelas instituições.
Que essa turma seja percebida, por outra turma, como insuficientemente radical, isso ajuda a compreender o estado da arte da nova cultura política brasileira.
Durante os anos do lulismo, assistia-se com perplexidade renovada às alianças do Partido dos Trabalhadores com personagens notoriamente corruptas e/ou regressivas do sistema político nacional.
De Sarney a Renan Calheiros, de Severino Cavalcanti a Eduardo Cunha, passando por Maluf, a conciliação do inconciliável desenhava uma lógica, fartamente descrita: a estratégia —percebida pelo PT como única factível naquelas condições— de dirigir as forças conservadoras, em vez de confrontá-las.
O filósofo Marcos Nobre nomeou de "peemedebismo" essa força conservadora e fisiológica que se instalou à larga no Parlamento e funcionou como o fiel da balança desde o começo da Nova República.
Tanto Fernando Henrique Cardoso (PSDB) como Lula foram capazes de no máximo dar algum sentido ao país sem entrar em choque com o peemedebismo. O governo Lula, de "conservação e mudança, reprodução e superação", como escreveu André Singer em "Os Sentidos do Lulismo" (Companhia das Letras, 2012), realizou transformações à custa da manutenção e até do aprofundamento da lógica peemedebista.
Essa seria uma das contradições que levariam ao fim da pax lulista em junho de 2013. Não faltaram, como se sabe, bases materiais para os protestos. Apesar do pleno emprego e do PIB ainda em expansão, a classe média, protagonista dos atos, saíra perdendo nos anos anteriores.
Laura Carvalho, em "Valsa Brasileira" (Todavia, 2018), mostra os números que permitem falar de um "squeezed middle", um miolo espremido financeiramente entre o crescimento da renda da elite e o dos mais pobres: "Os 50% mais pobres aumentaram sua participação na renda total de 11% para 12% entre 2001 e 2015", e "os 10% mais ricos subiram a sua parcela de 25% para 28%".
Enquanto isso, "os 40% intermediários reduziram sua participação na renda de 34% para 32% naqueles anos".
Mas me parece correto dizer que o sentido geral de junho de 2013 era a revolta acumulada contra a tendência progressivamente privatista da democracia liberal (tiveram o mesmo sentido o Occupy Wall Street, em Nova York, e os Indignados, em Madri), que comprimia cada vez mais o espaço do comum, e contra um sistema institucional endógeno, blindado, que asfixiava a participação política, reduzindo ao mínimo possível sua intensidade.

A pauta original do aumento da tarifa do transporte público o atesta. Não era só por 20 centavos. Estava em jogo o poder empresarial submetendo o poder público e o interesse dos cidadãos; um péssimo serviço a preço alto; péssimas condições de circulação. Estava em jogo, em suma, o direito à cidade.
A proximidade da Copa do Mundo e da Olimpíada do Rio, por sua vez, adensava a sensação de um sistema político encastelado. Os custos exorbitantes das obras eram por si sós absurdos, da perspectiva orçamentária, diante da precariedade dos serviços públicos.
Além disso, os gastos crescentes com estádios, muitas vezes feitos sem licitações, deixavam um fedor de corrupção no ar. E o autoritarismo ainda mostrava a sola da bota nas remoções compulsórias de pessoas pobres.
Tudo isso já foi muito repetido.
A democracia sob aparelhos sofreu então um choque de alta intensidade. O começo do fim do lulismo deflagrou o que chamo de "passagem da cultura à política" na autoimagem social do país.
As pessoas foram para as ruas. As redes sociais digitais haviam se consolidado como uma vasta mídia (e metamídia), contando já àquela altura com dezenas de milhões de usuários no Brasil. Sua natureza de autocomunicação fez surgir nelas um novo espaço público marcado pela polarização e pela explicitação de todas as tensões.
No lugar do país do futebol, nos tornamos o país da política: lá onde se dizia que todo brasileiro era um técnico, agora todo brasileiro se revelava um analista de conjuntura. Em suma, "o gigante acordou".
Escrevendo em cima do lance, muitos celebraram a explosão das ruas (eu entre eles). Houve setores que se opuseram. A chamada grande imprensa tentou diminuir o acontecimento num primeiro momento, em seguida criminalizou os "vândalos" e por fim procurou capturar o sentido da irrupção (acabaria sendo muito bem-sucedida).
Os governistas também foram contra, é claro, pois rapidamente perceberam o risco envolvido. Afinal, não importava o caráter difuso das pautas; no limite, a conta sobraria no colo dos mandatários de turno (foi o que aconteceu).
Por outro lado, tanto uma esquerda marxiana crítica ao PT quanto uma esquerda filiada às ideias de Negri apoiaram e participaram dos atos. A primeira viu em junho uma amostra grátis de democracia participativa. A outra viu a materialização da experiência política da multidão.
Diferentemente da noção de povo (unívoca e coesa) e de classe operária (restritiva, sem correspondência com a realidade contemporânea do trabalho e da luta de classes), o conceito de multidão designa um coletivo horizontal e heterogêneo, cujo agenciamento é capaz de acolher singularidades e se transformar em potência. Com efeito, o que se viu em junho de 2013 foi a transformação da massa em multidão.
Se, como definem Antonio Negri e Michael Hardt no livro "Multidão" (Record, 2004), "a essência das massas é a indiferença", a população saiu da letargia para lutar pelo comum.
Marcos Nobre, no livro "Imobilismo em Movimento" (Companhia das Letras, 2013), identificou uma tensão entre o conservadorismo do sistema político institucional e o desejo de transformação social de uma "nova cultura política", manifesta pela sociedade civil: "Essas reservas profundas de energia democrática são o que há de mais precioso para a libertação da sociedade".
Muitos apostaram nessa movimentação social como a esperança para pressionar, furar ou renovar a política institucional.
As mobilizações de junho lograram algumas conquistas imediatas. Em São Paulo e no Rio, o aumento das passagens foi revogado. Alguns processos de remoção encontraram forte resistência e foram suspensos. A demolição da Aldeia Maracanã (Museu do Índio) foi cancelada. No ano seguinte, também no Rio, a categoria dos garis realizou uma greve bem-sucedida, com o apoio de grande parte da população.
O legado de junho, porém, foi bem além e se desenvolveu com robustez em alguns movimentos sociais que se estabeleceram de modo eficiente.
Com efeito, surgiram e cresceram forças de sentido igualitarista na sociedade brasileira. Os movimentos chamados de identitários foram os mais bem-sucedidos na sua capacidade de organização e no impacto de sua atuação.
O movimento negro já vinha de pelo menos uma década de conquistas fundamentais, como o sistema de cotas nas universidades públicas (o processo de institucionalização da perspectiva racialista começou em FHC e se desenvolveu nos anos Lula).
De junho para cá, sua agenda, como a dos demais movimentos de grupos subalternizados, estabeleceu-se menos em torno de pautas concretas, legais, do que como uma não menos fundamental luta por reconhecimento social, identificando a naturalização e extensão do preconceito racial na biopolítica cotidiana da experiência social brasileira.
movimento feminista não fez menos do que impor sua agenda como protagonista das lutas por igualdade no país. Seu impacto concreto, nas relações sociais, já se faz sentir e deverá transformar as interações heterossexuais profundamente (em que pesem eventuais críticas que lhe podem ser feitas).
O movimento LGBT também avançou nas lutas por reconhecimento, por políticas públicas e por representatividade. Hoje já temos escritoras e intelectuais trans disputando o espaço público e concorrendo a cargos eletivos, como Indianara Siqueira nas últimas eleições e Helena Vieira, entre outras, nessas que virão.
Registre-se ainda o surgimento de novos movimentos sociais, à esquerda e à direita. Muitos deles têm reavaliado a natureza de seus papéis, passando a buscar um acesso direto à política institucional, em vez de uma relação de pressão com os governantes.
Atesta-o a presença, em todos os espaços do espectro ideológico, de movimentos voltados principalmente à disputa pelo Legislativo: Muitas, Bancada Ativista, Quero Prévias, Rede, Agora, Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), RenovaBR, Livres, Novo, Vem pra Rua, MBL.
Apesar das diferenças ideológicas —e, pelo menos no caso do MBL, das estratégias baixas—, são todos sintomas da formação de uma nova cultura política, com o objetivo comum de transformar o sistema político institucional.
Mas os efeitos transformadores por ora não parecem ir muito além. O gigante rapidamente foi se revelando menos progressista do que reacionário. Menos esclarecido que irracional. Menos espontâneo que titerizado por setores poderosos. Por fim, menos democrático do que autoritário.
Junho de 2013 foi uma montanha que pariu um pato —e uma récua de cavalgaduras. Chega a quase dar saudade daquelas figuras de direita da Veja e até do delírio paranoico de Olavo de Carvalho, inofensivo perto da regressão em massa dos infantilizados adoradores de Bolsonaro.
Reinaldo Azevedo, epítome da direita conservadora há alguns anos, também levou um chega pra lá rumo ao socialismo ao se declarar mais liberal que conservador e criticar as arbitrariedades do juiz federal Sergio Moro no processo contra Lula.
Rodrigo Constantino, ao ver os frankensteins que ajudou a criar (a Veja foi uma empresa de fake news avant la lettre), expressou sua decepção. Olhando para a greve dos caminhoneiros, concluiu: "Não se trata de uma greve de trabalhadores de direita. Eles não leem Olavo de Carvalho, não se deliciam com os livros liberais, não estão dentro de uma concepção de Estado mínimo".
Os fracassos da democracia liberal (de resto, mundiais) naturalmente conduziriam as coisas para algum extremo —mas não é de espantar que tenha sido em boa medida para o reacionarismo e até para fora da democracia. Afinal, olhemos sem mistificações para a "bildung" do gigante.
A população brasileira atual foi formada sobretudo, quando não exclusivamente, por décadas de TV aberta. Quer compreender o que é um inconsciente político construído desse modo? Assista à aula magna de sociologia que é o documentário "Um Dia na Vida" (2010), de Eduardo Coutinho.
O filme é uma montagem feita a partir de 19 horas da programação de diversos canais da TV aberta durante um dia qualquer de 2009. Coutinho gravou programas e comerciais e os expôs no filme tais e quais, sem comentários, sem metalinguagem, sem outra interferência que a seleção, o corte e a montagem. O resultado é uma sessão de 90 minutos de zapping televisivo.
Há desenho animado, constantes apelos ao consumo, estímulos sensíveis gritantes, infantilização, "fait divers", muita violência, sexualização generalizada da mulher, programas religiosos, novelas românticas, confissões emocionais, humor, colunismo social, euforia nacionalista e exibição de intimidades.
O cardápio é só superficialmente variado, pois é a mesma lógica da imagem que o organiza. Uma lógica da produção do que podemos chamar de imagens imaginárias, isto é, imagens que reproduzem o modo de funcionamento do imaginário. O conceito de imaginário, em Lacan, designa o registro da identificação, da ilusão de completude, do narcisismo, portanto da agressividade, da rivalidade.
Pense em Datena. São imagens plenas, que excluem a falta, a dimensão do sentido, do que não está na imagem, logo obscurecendo a compreensão da realidade. Imagens que apelam à identificação, atraindo o espectador para uma relação nos termos imaginários, rivalitários, conflituosos, impedindo assim um recuo, um passo para fora da identificação, capaz de propiciar a compreensão da própria estrutura das relações. Imagens que acenam com a sua completude para a perfeita letargia do espectador.
A relação entre violência e sociedade do espetáculo já foi bem estudada. O Brasil é um caso agudo.
A dominância do registro imagético facilitou a construção desse fenômeno midiático-jurídico-parlamentar que foi o antipetismo (obviamente facilitado pelas ilegalidades cometidas pelo PT). O povo brasileiro foi cevado de antipetismo durante quase uma década.
Aos que ainda não entenderam o conceito: o antipetismo é basicamente o apagamento da dimensão estrutural do problema da corrupção, em favor de sua atribuição exclusiva ao PT, que metonimicamente passa a ser responsabilizado por todos os males do Brasil.
A lógica metonímica, aliás, vai além e estende a culpa à esquerda como um todo. Não apenas a culpa da corrupção, mas toda culpa social (e tome venezuelização, bolivarianismo e "vai pra Cuba!").
Laura Carvalho identifica e ironiza esse procedimento ao chamar a consensualmente desastrosa Nova Matriz Econômica do governo Dilma de "agenda Fiesp", uma vez que as medidas de juro baixo, real depreciado e desoneração dos investimentos "foram referendadas por associações patronais que, posteriormente, abandonaram o barco e apoiaram o impeachment da presidente".
O antipetismo, portanto, é menos um conjunto de argumentos do que um afeto. Um afeto de ódio, já que fundado na substituição da estrutura por uma única instância concreta. O antipetismo é a disciplina de onde saíram pérolas do febeapá contemporâneo, como o bordão "artistas de esquerda mamadores nas tetas da Rouanet".
Nenhum aluno da turma conseguiu entender que: a) nenhum governo em exercício é capaz de favorecer os projetos contemplados de acordo com seu interesse ideológico; b) a Rouanet é uma lei que, em seu funcionamento atual (pois seu espírito original é diverso), pouco ou nada tem de esquerdista, tem antes sentido liberal, uma vez que relega ao mercado a maior parte do financiamento da cultura nacional.
Falando em liberais, a nova renascença do liberalismo no Brasil não faz minimamente justiça à complexidade e heterogeneidade da tradição do pensamento liberal. Assim como na primeira renascença, nos anos 1980/90, a perspectiva é exclusivamente econômica.
Nota-se pouco o legado dos primeiros clássicos da doutrina liberal, como Locke e Montesquieu, mobilizados contra a realidade do despotismo político. E é bem raro ver a tradição do socialismo liberal —de um Rawls ou de um Bobbio— representada pelos guris Kataguiris, para os quais o princípio igualitário não tem valor.
Esse neoliberalismo econômico, já o descrevia José GuilhermeMerquior em artigo dos anos 1980, "toma às vezes uma forma extrema e virulenta, em que o antiestatismo —posição das mais lúcidas— vira estadofobia generalizada, não raro acompanhada de sentimentos antidemocráticos" ("Renascença dos liberalismos: a paisagem teórica"). O que era, segundo Merquior, ocasional, parece ter virado a regra.
Mesmo os esforços no sentido de tentar ser fiel ao princípio liberal costumam esbarrar em contradições orientadas por infidelidades ideológicas, como o presidente do Partido Novo, João Amoêdo, declarando-se simultaneamente a favor do porte de armas pelos cidadãos e contra a descriminalização das drogas.
Ou toda a histeria paranoica diante das questões de gênero e sexualidade, em que a fantasia de um proselitismo LGBT encobre a fobia conservadora —e não liberal— diante da plena realização do mundo moderno.
Os traços da formação recente são muitos e não tenho a pretensão de ser exaustivo. Meu ponto, no fundo, é simples. Junho de 2013 representou para muitos a esperança de que uma nova cultura política havia se formado e irrompido, e que poderia cumprir a promessa ali vislumbrada de interromper o funcionamento do sistema político, transformando-o.
A tomada do Congresso Nacional por milhares de manifestantes era o afresco a retratar a luta da multidão esclarecida contra a tirania peemedebista.
Cinco anos depois, a pintura romântica parece dar lugar a uma espécie de retrato de Dorian Gray. As panelas seletivas, o impeachment farsesco, os quase 20% de Bolsonaro, o Escola sem Partido, os caminhoneiros militaristas, a histeria generalizada transformaram o sonho da democracia direta no pesadelo da regressão autoritária.
É conhecida a anedota atribuída a Zhou Enlai, líder do Partido Comunista Chinês. Questionado, em 1972, sobre o sentido da Revolução Francesa, ele teria dito que era ainda muito cedo para avaliar. Segundo um diplomata presente no encontro, foi provavelmente apenas um mal-entendido; Zhou se referira a maio de 68. Não importa. "Se non è vero è bene trovato": a tirada cabe às jornadas de junho.
Não é difícil entender as causas dos protestos, nem a sua legitimidade; isso parece pacificado. Mas talvez seja ainda cedo para avaliar o legado de junho quanto ao despertar da sociedade civil, aos ataques ao sistema representativo e às consequências políticas e sociais que esse acontecimento segue produzindo. Junho é o mês que não terminou.
Por ora, como escreveu o antropólogo Antonio Risério em uma rede social, nosso retrato é esse: "Um país pirado, com elites podres e população perdida". Estamos espremidos, de um lado, por um sistema político completamente apodrecido; e, de outro, por uma nova cultura política que em larga medida não é nova —e chega a nem ser política. 

Francisco Bosco, ensaísta, é autor de "A Vítima Tem Sempre Razão?" (Todavia).

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