Com o atentado à produtora Porta dos Fundos, a classe média foi apresentada ao terrorismo fundamentalista.
Um alvoroço. Onde vamos parar? Corram para as montanhas.
Na favela, hoje é apenas mais um dia de corre. De tocar a vida, não
chegar atrasado no emprego, não chegar atrasado na fila de
desempregados, descolar um bico, criar as crianças, pegar o busão e
garantir o da janta.
Fundamentalismo religioso? Quem mora na favela sofre em sua rotina.
Especialmente se for adepto de alguma religião de matriz africana.
O número de ataques a terreiros de Umbanda e Candomblé aumentou em 2019.
Zero comoção da classe média.
Há dez dias, a estátua da Baiana do Acarajé foi incendiada em Salvador.
Zero comoção da classe média.
O ataque ao grupo Porta dos Fundos foi um ataque à liberdade de expressão?
Pois na favela o direito de expressão segue esmagado entre traficantes evangélicos e a polícia que invade bailes funk.
Grupo de Integralistas conservadores terroristas é uma novidade no Brasil?
Não é. E quem tem a pele mais escura sabe disso desde que nasceu. Tenta chamar atenção para isso desde que nasceu.
Tenta ser visível.
No filme sul-coreano Parasita, uma família de classe média alta
aproveita um temporal para passar uma noite aconchegante em casa. Ao
mesmo tempo, em uma favela de Seul, uma família pobre vê a enxurrada
alagar toda a sua casa e destruir o pouco que tinham.
No dia seguinte, a família pobre, ela toda empregada doméstica da família rica, ouve da patroa
– Ainda bem que choveu. Estava um calor insuportável.
O atentado terrorista ao Porta dos Fundos só não teve consequências
mais graves porque o vigia noturno da produtora apagou o princípio de
incêndio.
A faixa salarial de um vigia noturno CBO 5174-20 fica na casa dos R$ 1.201,50 mensais.
O vigia muito provavelmente mora em uma área da cidade onde ataques à
liberdade de expressão, de ir e vir, e/ou de cunho religioso, são
rotina.
Essa rotina cuja invisibilidade está na base do funcionamento deste neoliberalismo fracassado; do Chile à Coréia.
Pouco adianta prender e punir os terroristas que atacam a classe
média sem dar o mesmo tratamento à seus equivalentes nas quebradas do
país.
Mas, pedir por igual tratamento virou vitimismo.
Causa zero comoção.
Je suis Porta dos Fundos. Mas temos que ser também todos os terreiros
de candomblé, todos os bailes funk, todas as vítimas de homofobia nas
favelas.
É mais fácil ser apenas Porta dos Fundos? É. Em breve encontram os
terroristas, os enquadram e pronto, estamos liberados para pensar nas
tendências do verão 2020. Talvez até nos bloquinhos do carnaval
encontremos algum hipster fantasiado de Integralista.
Difícil, hoje, é ser do candomblé na favela. É olhar pelo ódio ao
funk. É ser viado, sapatão ou transgênero nas periferias onde o fascismo
já existe e ninguém se importa.
Assustados, surpresos, em transe, vemos o mundo dos desprivilegiados invadir nossa bolha.
E não há solução para o transe que não seja o entendimento do todo.
Do tempo e do espaço urbano. E da dimensão comum de nossa condição.
O único caminho é o que dá mais trabalho.
Sem seguí-lo, aí sim: onde vamos parar?
Sugiro
entrevista com Marco Feliciano, empregado nosso do tipo deputado, na
BBC News Brasil. Acho que ela ajuda a pensar as possíveis razões de a
sede do Porta dos Fundos ter sofrido um ataque terrorista. Marco alega
ter sido vítima do que ele chama “esquerdas” e avisa que “vamos
compartilhar essa guerra” pelos próximos 20 anos. Marco chama de guerra o
que deveria ser a política e usa o verbo compartilhar.
Acho revelador os termos que ele
emprega. Guerra não se compartilha!; se luta. Compartilhar é dividir,
repartir, comungar – uma ideia de união. Ao dizer que “compartilharemos
uma guerra”, o nosso empregado expõe sua empatia com a guerra, e não com
seus adversários.
A guerra, ele a quer dividir, em êxtase
de prazer macabro, com os seus afins. Diz que compartilhará conosco mas o
que diz por dentro do que disse é que compartilhará com os dele. E
ainda faz ameaça dissimulada de esperança: “espero que não vá para vias
de fato”. Mas as vias de fato, como o ataque ao Porta, é tudo o que ele
espera e para o quê ele convida seus iguais. E Marco se anuncia uma
vítima da história e constrói a narrativa do rancor que autoriza a
guerra q lhe dá prazer porque lhe traz vingança; vingança contra as
elites que os desprezaram e que eles agora querem ser.
Tudo q o projeto messiânico deseja é
guerrear. Eles estão armados, fundando “soldados de cristo” com lógica
militar, resgatando ídolos torturadores, elegendo-se deputados
anti-democratas. Quem ainda pensa que votando em Messias votou apenas
contra o PT dos seus pesadelos, está a se enganar por medo de enfrentar o
que fez por força da fobia de pobre da qual sofre.
Eu não vi o Jesus gay do Porta. Mas não
se justifica por razão alguma que a palavra – por mais ofensiva que a se
considere – seja rebatida com uma bomba.
A civilidade impõe a palavra como a
única arma admitida no debate das ideias. Palavras podem magoar,
ofender, agredir; mas não tiram a vida. Bombas matam.
Quantas
ofensas têm sido ditas a nós artistas por messias, felicianos,
ventraubes e cia? E nós, o que temos feito em resposta? Piadas, músicas,
teatro, coros de carnaval, palavras de ordem, quando muito. Bombas, tiros, socos? Nunca. Só palavras.
O
bolsonarismo é competente ao usar a estratégia de controlar o
noticiário e manter a sociedade e a imprensa só na reprodução e na
reação. Quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, evoca o AI-5, e antes dele o zerotrês Eduardo Bolsonaro
(PSL), estão latindo num lugar enquanto a matilha já está mordendo em
outro. É na Amazônia e nas periferias urbanas que o autoritarismo já se
instalou. Como denominar um país em que a polícia do estado do Rio de
Janeiro já matou até outubro de 2019 mais do que em qualquer ano das
últimas duas décadas? Se fosse enfileirar as 1.546 vítimas da polícia
haveria mais de 2 quilômetros de cadáveres. Esta violência que mata os
negros e pobres e faz com que as crianças, também elas pobres e negras,
temam o som dos helicópteros porque seis delas já tombaram por bala “perdida”
somente neste ano no Rio está conectada com a violência que faz vítimas
na floresta amazônica. Os amazônicos e os periféricos não se conhecem,
mas têm o mesmo rosto de quem morre no Brasil: negros e indígenas. É
contra estes povos, estes rostos, que a violência está recrudescendo. As
Organizações Não Governamentais (ONGs), foco da ofensiva do
bolsonarismo, estão sendo atacadas porque defendem estes povos, estes
rostos.
Desde
o início de novembro há sinais de que o projeto autoritário está
aumentando de velocidade e de intensidade. O mês abriu com a morte de um
dos guardiões da floresta, Paulo Paulino Guajajara.
E está terminando com criminalização de uma das organizações mais
respeitadas, premiadas e amadas da Amazônia, o Saúde e Alegria, que atua
na bacia do Tapajós há décadas. Na terça-feira, 26 de novembro, a ONG
teve seus documentos e computadores apreendidos pela polícia civil, em
Santarém. No mesmo dia, quatro brigadistas voluntários da Brigada de
Alter do Chão, criada para combater os focos de incêndio na floresta em
parceria com o Corpo de Bombeiros, foram presos pela suspeita de que
teriam ateado o fogo que queimou uma área equivalente a 1.600 campos de
futebol em setembro, na região de Santarém. Ser preso, mesmo que a
prisão se mostre abusiva, já cumpre o objetivo de quem quer desmoralizar
os agentes que combatem a destruição da floresta. O estrago já está
feito, especialmente sobre uma população assustada e desinformada.
Em
Washington, Guedes evoca o AI-5, autoridades e sociedade reagem, redes
sociais se enfogueiram. É preciso avisar que, na linha de frente, o AI-5
já está e os mais frágeis estão resistindo quase sozinhos. E perdendo. O
principal projeto do bolsonarismo é a abertura da Amazônia.
A disputa desigual está sendo travada na floresta e nas cidades que
beiram a floresta. Quem vive e atua na Amazônia já entendeu que pode ser
preso sem motivo porque o Estado é arbitrário e as provas são forjadas.
É isso o que os acontecimentos em Santarém estão mostrando. AS ONGs são
alvo porque, em um país precário como o Brasil, onde o Governo decidiu
não cumprir a lei e as instituições fraquejam, são elas que estão
fazendo uma barreira contra a destruição da floresta e dos corpos dos
povos da floresta. Ambientalistas brancos começaram a ser presos. Os
mortos continuam tendo o mesmo rosto: negros e indígenas.
Enquanto
tenta mudar a Constituição para abrir as áreas protegidas da floresta
amazônica, o bolsonarismo executa o projeto na prática ao desproteger as
áreas protegidas, enfraquecendo os órgãos de fiscalização e
fortalecendo os destruidores da floresta. Na Amazônia basta deixar de
fazer o pouco que se fazia e avisar aos amigos que podem ficar à vontade
porque não responderão pelo seus atos. É o que faz o bolsonarismo
enquanto a PM de alguns estados está sendo preparada para virar uma
milícia que toma suas próprias decisões.
O resultado é tanto a explosão do desmatamento, que aumentou 30% entre agosto de 2018 e julho de 2019,
quanto a ameaça e/ou assassinato dos pequenos agricultores familiares e
defensores da floresta: indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Quem vive
na Amazônia percebe claramente que a ofensiva aumentou desde novembro.
As ONGs estão entre os principais alvos a serem eliminados. Em várias
regiões do Pará, quem está clamando pela “CPI das ONGs” são justamente
notórios grileiros e madeireiros e seus representantes. Enrolam-se em
bandeiras do Brasil e evocam o nacionalismo, mas o que querem é fincar
um papel com o seu nome ― ou no nome de um de seus laranjas ― num pedaço
da floresta amazônica roubada da União ou dos estados.
No
Pará, estado que lidera o desmatamento no Brasil, vale a pena observar
uma sequência de acontecimentos ocorridos no espaço de uma semana. De 17
a 19 de novembro, os movimentos sociais da região do Médio Xingu
organizaram em Altamira um encontro chamado Amazônia Centro do Mundo.
A cena da mesa de abertura do encontro, na Universidade Federal do
Pará, é uma alegoria do que acontece no cotidiano da floresta. Um grupo
de grileiros e fazendeiros se posicionou propositalmente no lado direito
da plateia ― “sentamos à direita, como nos convém”. Há dias eles vinham
sendo incitados por um homem que se apresenta como antropólogo e
trabalha para a banda podre do agronegócio. Desde o início, o grupo
gritava a cada vez que um dos convidados a compor a mesa falava, na
tentativa de impedir que o evento se realizasse. Era uma provocação. Se
alguém reagisse, o articulador manipularia os acontecimentos e diria que
ele tinha sigo o agredido. Ele já usou esse truque em outros momentos
na região amazônica. O maior alvo deste grupo era Raoni, o Kayapó que se
tornou a principal liderança indígena do Brasil, com grande repercussão
no exterior, indicado para o Nobel da Paz.
Os
guerreiros Kayapó que acompanhavam Raoni entraram em sua bela formação
ritual, como costumam fazer. Os Kayapó são orgulhosos e impressionantes
em suas aparições públicas. Criaram uma barreira humana para permitir
que os organizadores do encontro pudessem falar. E então foi possível
ouvir as vozes dos intelectuais da floresta, dos intelectuais da
academia, das lideranças dos movimentos sociais. Durante a maior parte
da manhã, o pequeno grupo de fazendeiros e grileiros (há que se
diferenciar uns dos outros) tentou impedir a voz dos povos da floresta e
dos movimentos sociais. Sempre provocando, tentando abafar a voz dos
convidados da mesa de abertura. Um pequeno mas revelador sinal de que
limites estão sendo superados se revelou justamente no fato de que nem o
bispo do Xingu, Dom João Muniz, conseguiu falar sem ser interrompido
por provocações. Os organizadores já tinham registrado as tentativas de
intimidação ao longo dos dias anteriores, feitas por redes sociais e por
email. Presenças internacionais importantes, como a princesa da Bélgica
Maria Esmeralda, ativista e embaixadora da WWF, deixaram de comparecer
ao evento por temer a violência.
Submerso no noticiário
produzido por Brasília, este que gravita em torno das declarações de
Bolsonaro e de Lula, parte do Brasil não percebeu a grandeza do que
ocorreu em Altamira neste encontro. “Amazônia Centro do Mundo” reuniu
lideranças da floresta, pensadores e cientistas da academia,
representantes de movimentos sociais e jovens ativistas climáticos do
Brasil e da Europa, dos movimentos Engajamundo, Extinction Rebellion e
Fridays For Future, este último inspirado pela adolescente sueca Greta Thunberg.
Uma parcela dos participantes vinha de outra jornada, com o mesmo nome, ocorrida uma semana antes na Terra do Meio,
do qual fui uma das organizadoras. Do encontro no coração da floresta
haviam participado o grande xamã yanomami, Davi Kopenawa, que hoje
testemunha o território do seu povo ser mais uma vez tomado por
garimpeiros, e a ativista russa Nadya Tolokonnikova, do movimento Pussy
Riot, que ficou presa na Sibéria por quase dois anos depois de enfrentar
o déspota Vladimir Putin.
Estavam ali para se conhecerem e criarem uma aliança pela floresta. Era
uma reunião de gente que não quer roubar terra pública para especular
ou tirar minério. Só quer que a floresta fique em pé para que ela siga
transpirando e salvando o planeta.
Em
Altamira, o encontro foi organizado por dezenas de movimentos da cidade
e da floresta. Depois de rachar na construção de Belo Monte, as
organizações sociais se uniram novamente para lutar contra a destruição
da Amazônia. Desta vez, mais preparados para identificar os truques
daqueles que buscam desuni-los para poder consolidar seus projetos de
destruição. Belo Monte e seu conjunto de violações
foram uma pós-graduação completa sobre como agem os “gerenciadores de
crise” para neutralizar a resistência, manipular as informações e
infiltrar a discórdia. Este ainda é um aprendizado em curso, já que há
sempre os que demoram mais a aprender. E há também os que nunca
aprendem.
O encontro mostrou algo que parecia muito
difícil, senão impossível, no Brasil atual: a organização de uma
resistência ao autoritarismo em curso. Não apenas como uma reação aos
ataques, mas como criação de futuro, como proposta de uma relação
diferente com a floresta e com o próprio modo de viver para muito além
da floresta. Movimentos sociais urbanos, agricultores familiares e
cientistas ficaram lado a lado com indígenas, ribeirinhos e quilombolas,
uma aliança que seria difícil no passado recente pela própria história
de cada um destes povos. O espaço não poderia ser mais adequado, já que a
universidade pública tem sido um dos principais alvos do bolsonarismo. A
aliança entre os saberes da academia e da floresta foi consumada também
na concretude do local escolhido.
Um dos momentos mais emocionantes aconteceu quando um agricultor da Volta Grande do Xingu, ecossistema que está sendo secado e destruído pela usina de Belo Monte
e ameaçado também pela instalação da mineradora canadense Belo Sun,
pediu, aos prantos, perdão aos indígenas por um dia ter ocupado terras
que lhes pertenciam. Ao terminar seu discurso, um Kayapó colocou sua mão
sobre a dele e, imediatamente, várias pessoas foram somando mãos. A
cena tornou-se uma performance artística, não planejada, da aliança que
ali estava sendo consumada.
Antes de os fazendeiros e
grileiros se retirarem, vencidos em sua tentativa de criar tumulto e
silenciar as vozes, ocorreu o momento mais tenso do encontro. Surgiu
também ali uma liderança que a sociedade brasileira ― a que defende a
vida, a democracia e a justiça ― precisa se organizar para amparar. Seu
nome, para recordar e proteger: Juma Xipaya.
Estudante
de medicina da Universidade Federal do Pará, em Altamira, Juma pertence
a um povo que chegou a ser considerado extinto e precisou provar que
tinha sobrevivido à tentativa de extermínio. Ela fez um discurso
contundente contra os que tentavam impedir a realização do evento. Um
dos notórios grileiros presentes se descontrolou e colocou o dedo no seu
peito. Perto dele, duas missionárias que foram companheiras de Dorothy
Stang, assassinada em 2005 por um grupo que ficou conhecido como
“consórcio da morte”, rezavam. A jovem indígena não se intimidou:
“Meu
nome é Juma Xipaya. Eu fico pensando o que vocês pensam quando muitas
vezes se contrapõem aos nossos discursos, às nossas lutas. Parece que
somos inimigos de vocês. Só quero lembrar vocês que, em momento algum,
nós falamos que vocês são nossos inimigos ou que nós somos inimigos de
vocês. Nós defendemos a vida, nós defendemos a floresta. E se vocês
dizem que a Amazônia é do Brasil, por que vocês não estão lutando para
defender a Amazônia?
Toda essa produção e esse
desenvolvimento que vocês pensam são para os brasileiros ou é para o
estrangeiro? Então que discurso é este que vocês pregam que a Amazônia é
do Brasil, sendo que vocês não sabem a importância do que a Amazônia
significa pra nós, vocês não sabem o valor da Amazônia? Vocês não são
dignos para dizer isso. Sabem por quê? Vocês não sabem o que é perder um
filho, vocês não sabem o que é ter as casas invadidas, vocês não sabem o
que é ser expulso de terras. Respeite, respeite, respeite. Respeite a
minha fala.
Vocês devem nos ouvir. Vocês invadem as
nossas terras, vocês entregam o nosso minério, vocês acabam com a nossa
vida, e não querem ouvir a nossa voz. Respeitem. Respeitem a Amazônia,
respeitem os nosso povos que morrem todos os dias, que têm mulheres
todos os dias violentadas, que têm indígenas com mãos decepadas por
defenderem as suas terras. Nós defendemos o Brasil. Nós defendemos a
Amazônia com nossa própria vida há séculos!
O dever de
defender a Amazônia não é só porque nós, indígenas, moramos nas nossas
terras. O mundo tem o dever, tem a obrigação de defender a Amazônia,
porque é daqui que tiram todas as nossas riquezas e deixam somente as
mazelas, as doenças, as tristezas, os conflitos.
Qual é o filho que luta para desmatar e para matar a sua mãe?
Desrespeito
é vocês virem aqui gritar, interromper a nossa fala. Se estão aqui para
dialogar, então respeitem cada um. Não agridam, não cometam violência,
porque eu não estou aqui agredindo vocês. Eu estou defendendo nossos
direitos, o direito de existência, o direito de indígenas. Nós também
somos donos, até muito mais do que vocês. O Xingu, a Amazônia, todos os
seres que vocês não conseguem ver nem respeitar, sabem por quê? Porque
vocês não são ligados à terra, vocês não sabem como é a conexão com a
mãe natureza. Porque qual é o filho que luta para desmatar e para matar a
sua mãe?
Que filhos são vocês? Que brasileiros são
vocês? Eu tenho dó. Não de vocês. Eu tenho dó das futuras gerações. Dos
filhos e netos de vocês. Vocês não têm o direito de acabar com a nossa
futura geração. A Amazônia e o Brasil não são só de vocês. São também
nossos. No mínimo, vocês têm que ter respeito e aprender a conviver”.
Raoni
pediria mais tarde a todos aqueles que defendem a Amazônia que
ajudassem a proteger Juma Xipaya. O pedido precisa ser ouvido para muito
além da floresta. Com um AI-5 não oficial já se instalando na região, a
sociedade civil precisa se organizar para criar uma rede de proteção
aos defensores da floresta e impedir o processo de criminalização das
ONGs que protegem estes defensores ― seja cuidando do seu bem-estar,
como faz o Saúde e Alegria há mais de 30 anos, seja ajudando a
implementar a economia da floresta, aquela que produz renda sem
desmatar, como faz o Instituto Socioambiental nas reservas extrativistas
da Terra do Meio, seja combatendo diretamente o desmatamento, como
fazem outras organizações. A disputa do futuro está sendo travada
exatamente agora.
Apesar das ilusões que todo povo
alimenta sobre as grandezas do seu país, o Brasil tem hoje importância
no cenário global principalmente por causa da Amazônia. É a maior
floresta tropical do mundo que empresta relevância estratégica ao
Brasil. É abrigar 60% de um bioma estratégico para o controle do
superaquecimento global que faz o Brasil um país necessário. O problema é
que o bolsonarismo, assim como uma parcela da elite econômica e uma
parcela dos militares, continua acreditando que a riqueza da Amazônia é o
minério embaixo da terra e a quantidade de terra para especulação.
Parte acredita nisso porque é burra e desinformada, parte porque só se
interessa por lucros privados e imediatos, colocando seus interesses
acima inclusive do futuro dos próprios filhos.
A riqueza
da Amazônia é a sua imensa biodiversidade e a capacidade da floresta de,
como um gigantesco coração, bombear água para a atmosfera. Sem essas
duas riquezas articuladas, a espécie humana, além de muitas outras,
estará condenada nos próximos anos e décadas a uma existência hostil num
planeta superaquecido. Como lembra o cientista da Terra Antonio Nobre, a
floresta inteira lança 20 trilhões de litros de água na atmosfera a
cada 24 horas. É o que se chama de rios voadores. Neste caso, um volume
maior do que o Amazonas ao desaguar no Atlântico é lançado sobre nossas
cabeças todos os dias. Cada árvore grande da floresta lança mil litros
de água por dia na atmosfera, pela transpiração. É essa sinapse que cada
um precisa completar na sua cabeça.
A qualquer hora que
qualquer pessoa pegar o carro e entrar na Transamazônica, especialmente à
noite, mas também de dia, vai encontrar caminhões cheios de toras na
carroceria. Na região de Altamira, a maioria delas foi arrancada da
terra indígena Cachoeira Seca, uma das mais invadidas e desmatadas do país desde a construção de Belo Monte.
Foi isso o que os ativistas do Fridays For Future e do Extinction
Rebellion viram ao viajar à Terra do Meio. Os caminhões de toras
passavam ao lado do microônibus dos participantes em pleno dia. Para os
habitantes locais, é uma cena corriqueira. Para os ativistas europeus,
foi um choque.
O
cálculo que precisa ser feito é que cada uma daquelas toras deixou de
colocar mil litros diários de água na atmosfera quando era uma árvore
viva, em pé na floresta. Com cada árvore que tomba morrem milhares de
outros seres vivos que se conectavam à sua vida e produziam outras vidas
no seu entorno. Sem compreender a dimensão do assassinato, é difícil
compreender a destruição da floresta. O planeta é orgânico. Cada morte
gera uma cadeia de acontecimentos. Alguns visíveis, a maioria
invisíveis. Ao final do encontro em Altamira, um estudante comentaria,
visivelmente abalado: “Quando falam na floresta os indígenas doem, né?
Eles não estão falando de outra coisa, fora deles, mas da mesma coisa.
Eles são floresta. Só entendi isso agora”.
Indígenas,
quilombolas e ribeirinhos protegem a Amazônia com o próprio corpo,
fazendo dele uma barreira entre a floresta e os que querem destruí-la.
Diferentemente do que aconteceu no evento, onde depois de provocar
confusão, fazendeiros e grileiros foram se retirando porque derrotados
no seu objetivo de silenciar as vozes, lideranças da floresta morrem no
massacre cotidiano no interior da floresta, lá onde não há câmeras para
registrar os crimes. Também são ameaçados e/ou morrem agricultores
familiares, como acontece hoje em Anapu, num número muito mais elevado
do que no ano do assassinato de Dorothy Stang. A sociedade brasileira
precisa decidir de que lado está e proteger quem a protege.
Apenas alguns dias depois do encontro Amazônia Centro do Mundo, em 25 de novembro, a Subcomissão Temporária da Usina de Belo Monte
do Senado foi a Altamira para “fiscalizar” a hidrelétrica e realizar
uma “reunião técnica”. A imprensa, porém, não pôde acompanhar a
“vistoria” pela manhã. À tarde, na reunião aberta ao público, as ONGs
viraram alvo. O senador Lucas Barreto (PSD) afirmou explicitamente que
recomendaria a inclusão do Instituto Socioambiental, uma das
organizações mais atuantes da região na defesa da floresta e de seus
povos, na “CPI das ONGs”. O antropólogo da banda podre perguntou então
se a CPI estava garantida para o próximo ano. E o senador confirmou.
Comemorações.
A ofensiva para eliminar os “entraves” para
converter a floresta de todos em fazenda de poucos está desenhada e já
foi colocada em curso. A ONG Saúde e Alegria pode ser só a primeira
vítima. Parte da imprensa tem colaborado com o método, ao divulgar
prisões sem verificar o contexto nem fazer investigação própria. Quando
alguém é preso no Brasil, o estigma gruda na pele, a condenação pública
precede todo o ritual legal. Os agentes de segurança e da justiça abusam
do poder para promover linchamentos. E é exatamente este o objetivo. A
suspeição lançada sobre pessoas e organizações pode durar para sempre,
como a história já mostrou.
É absolutamente necessário
que a sociedade, autoridades e instituições repudiem as evocações do
AI-5, como feitas por Paulo Guedes. Mas, junto com isso, é preciso
também entender que o autoritarismo está se infiltrando sem papéis e sem
documentos com uma velocidade inédita na Amazônia e nas periferias
urbanas. Esta é a estratégia deste Governo barulhento que, desde que
assumiu, controla o noticiário e leva a comoção pública para onde quer.
No dia 25, atingidos por Belo Monte compareceram ao Centro de Convenções de Altamira. Estas famílias moravam no Bairro Independente I
e ainda não foram reassentadas. A maioria é ligada ao Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB), que tem importante atuação na região.
Antes de os senadores entrarem para a reunião pública, acompanhados de
ruralistas e da direção da Norte Energia, dois policiais militares
ostensivamente armados atravessaram o salão para também fazer uma
vistoria.
A cena que ali se desenrolou é incompatível com
a democracia. Eles e suas armas paravam diante de cada pessoa e as
obrigavam a mostrar seus cartazes de protesto. É assim que se institui o
AI-5 sem nenhum documento, assinatura ou anúncio oficial.
Eliane Brum é
escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção
Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida
Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus
desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum
Neoliberais não suportam uma sociedade com contestação. Eles atiram quando o povo mostra seu descontentamento
Vladimir Safatle
“Eu
diria que, enquanto instituição de longo termo, sou totalmente contra
ditaduras. Mas uma ditadura pode ser um sistema necessário durante um
período de transição. Às vezes, é necessário para um país ter, durante
certo tempo, uma forma de poder ditatorial. Como vocês sabem, é possível
para um ditador governar de maneira liberal. E é possível que uma
democracia governe com uma falta total de liberalismo. Pessoalmente,
prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo”.
Estas são frases de Friedrich Hayek,
um dos pais do neoliberalismo e um de seus teóricos mais influentes.
Não por acaso, tais frases foram enunciadas em um jornal chileno, El Mercurio, em 1981: ano em que a ditadura de Augusto Pinochet estava no auge. Hayek estava entusiasmado com a transformação do Chile no laboratório mundial das ideias que ele, Milton Friedman, Ludwig von Mises e outros pregavam com afinco.
Que
o paraíso da liberdade neoliberal fosse uma ditadura, bem, isto não era
exatamente um problema. Como diz Hayek, às vezes, para alcançar a
liberdade é necessário se acostumar à violência de estado. Estranha
concepção de liberdade esta, que não vê problemas em andar de mãos dadas
com a tortura, a censura, a ocultação de cadáveres, o assassinato, o
terrorismo de agentes públicos. O paraíso virá depois que trucidarmos
aqueles que não concordam com nossa “liberdade”. Em um impressionante
documentário sobre a experiência neoliberal no Chile, Chicago Boys
(2015, Carola Fuentes e Rafael Valdeavellano), vemos a formação do
grupo de economistas que implementaram o neoliberalismo em nosso
continente pela primeira vez. Em dado momento, quando os entrevistadores
perguntam ao futuro ministro da economia de Pinochet, o sr. Sergio de
Souza, sobre o que ele sentiu quando viu o Palacio La Moneda ser
bombardeado por aviões militares até a morte do então presidente
Allende, ele afirma: “uma alegria imensa. Eu sabia que era isto que
devia ser feito”.
Esta é a verdadeira história do neoliberalismo.
Uma história de alegria com bombas, assassinato, golpes e aplausos à
ditadura. Neste sentido, não é um acaso se encontrarmos, neste mesmo
documentário, o mesmo sr. De Souza, quando falar de sua experiência no
que alguns gostavam de chamar de “milagre chileno”, dizer que não sabia
de nenhum crime contra a humanidade, que era apenas um técnico fazendo
seu trabalho. Esta é outra maneira de dizer: “Eu realmente não estava
importando. Eu sabia que meu real “trabalho” passava por fazer vista
grossa à morte dos descontentes”. Pois só através desta violência
ditatorial sua política econômica poderia ser implementada. Para massas
empobrecidas e em luta contra experiências seculares de desigualdade
extrema, toda a conversa a respeito de uma sociedade moldada na
liberdade de empreender, na livre concorrência, no mérito era apenas
mais um capítulo de um velho embuste. Cada época tem seu “emplastro Braz
Cubas”. Esse era apenas o mais novo na praça.
Ou seja, a
liberdade do mercado só pode ser implementada calando todos os que não
acreditam nela, todos os que contestam seus resultados e sua lógica.
Para isto, é necessário um estado forte e sem limites em sua sanha para
silenciar a sociedade da forma mais violenta. O que nos explica porque o
neoliberalismo é, na verdade, o triunfo do estado, e não sua redução ao
mínimo.
Que lembrem disso aqueles que ouviram o sr. Paulo Guedes falar em AI-5
nos últimos dias. Isso não foi uma bravata, mas a consequência
inelutável e necessária de sua política econômica. Como se costuma
dizer, quem quer as causas, quer as consequências. Quem apoia tal
política, apoia também as condições ditatoriais para sua implementação. O
neoliberalismo não é uma forma de liberdade, mas a expressão de um
regime autoritário disposto a utilizar todos os métodos para não ser
contestado. Ele não é o coroamento da liberdade, só uma forma mais
cínica de tirania. Por isto, é falaciosa a tentativa de alguns em vender
uma diferença entre “economia” e “política” no Governo Bolsonaro,
como se tudo estivesse bem na economia, enquanto o núcleo político do
Governo afunda em flertes ditatoriais. Não: esta é a única política
possível para tal economia.
Afinal, a “liberdade”
defendida pelos neoliberais tem duas faces, e não é possível ficar com
uma e apagar a segunda. Você precisa levar as duas para casa. Por um
lado, os amigos de Hayek e Friedman vendem a falácia de que quanto menos
estado na economia, maior liberdade. Quanto menos o estado pegar algo
de você, estabelecer obrigações, mais você terá como decidir por você
mesmo, fazer o que melhor lhe aprouver. Só que há um detalhe: isto vale
para você e para o banqueiro, para o caixa de supermercado e a executiva
de uma grande empresa. Você perde mais do que ganha porque perde seu
serviço público de saúde, sua universidade pública, sua aposentadoria e
ganha em troca uma desoneração de impostos que não dará para pagar nem
um terço do que se tornou agora serviço privado. Já a executiva e o
banqueiro só ganham porque não precisarão mais ter obrigação social
alguma com ninguém.
Só que a população não é tão estúpida
quando creem tais “economistas”. Por isto, eles sabem que necessitam de
um poder que exploda presidentes de oposição, que decrete AI-5, que
mate opositores até mesmo em situação “democrática”. E mais do que isto.
Eles sabem que necessitam de um poder disposto a intervir em todos os
poros da vida social a fim de impedir o desenvolvimento da contestação e
da crítica. Eles precisa de um estado agora muito mais forte contra
tudo o que lhe conteste, seja isto vindo da educação nacional, das artes
ou das organizações sociais.
Vejam a política cultural
do sr. Bolsonaro, sua nova pérola preciosa. Nunca vimos um nível tão
explícito de interferência, isto a ponto de seu secretário da cultura se
ver como ungido por uma missão de “renovar” a cultura nacional,
“combater” seus desvios, “recuperar” os valores do belo e do complexo
etc. No entanto, alguém deveria estranhar que um Governo que se diz
lutar pela “liberdade” transforme o estado no enunciador dos valores
culturais a serem realizados, do que é a verdade cultura nacional e qual
é a expressão real do povo. Agora, o povo é aquilo que o estado decide
como sendo o povo brasileiro, a cultura é aquilo que o estado decide o
que é a “cultura da maioria”. O belo é aquilo que o estado decide como
belo. Ou seja, temos agora mais estado, não menos.
No entanto, em uma democracia
real, o estado se abstém de decidir o que é “verdade”, o que é
“originário”, o que é “desvio”, o que é “belo” no campo das artes e da
cultura. Ele apenas facilita a circulação daquilo que tem dificuldade em
circular, seja porque o mercado não se interessa, seja porque as
classes hegemônicas não se interessam. E ele não faz isto em nome da
“verdade”, dos “valores morais do nosso povo” ou qualquer coisa que o
valha. Ele o faz em nome da multiplicidade. Por isto, ele não usa
dinheiro público para financiar posições religiosas (que não tem
dificuldade alguma em circular pois tem tudo o que necessitam nas mãos:
escolas, televisões, radios), não usa dinheiro público para louvar a si
mesmo ou para calar os que são descontentes com o próprio estado e com
sua própria política. Se alguns acham que isto não ocorria em governos
passados, eles deveriam então tentar realizar isto agora, ao invés de
construir falácias para justificar seus desejos de mando.
Mas
sabemos muito bem que isto nunca ocorrerá porque este tipo de
multiplicidade é o inverso de tudo o que o neoliberalismo procura impor.
Neoliberais não suportam uma sociedade com contestação. Eles atiram
quando o povo mostra seu descontentamento. Por isto, como diz Hayek,
preferem um ditador “liberal” (mesmo que isto seja apenas uma
contradição falaciosa) a uma democracia sem liberalismo ou seja a uma democracia que não acredita mais no embuste de uma liberdade apenas para os mais ricos.