A ditadura do sr. Guedes
Neoliberais não suportam uma sociedade com contestação. Eles atiram quando o povo mostra seu descontentamento
Vladimir Safatle
“Eu
diria que, enquanto instituição de longo termo, sou totalmente contra
ditaduras. Mas uma ditadura pode ser um sistema necessário durante um
período de transição. Às vezes, é necessário para um país ter, durante
certo tempo, uma forma de poder ditatorial. Como vocês sabem, é possível
para um ditador governar de maneira liberal. E é possível que uma
democracia governe com uma falta total de liberalismo. Pessoalmente,
prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo”.
Estas são frases de Friedrich Hayek,
um dos pais do neoliberalismo e um de seus teóricos mais influentes.
Não por acaso, tais frases foram enunciadas em um jornal chileno, El Mercurio, em 1981: ano em que a ditadura de Augusto Pinochet estava no auge. Hayek estava entusiasmado com a transformação do Chile no laboratório mundial das ideias que ele, Milton Friedman, Ludwig von Mises e outros pregavam com afinco.
Que
o paraíso da liberdade neoliberal fosse uma ditadura, bem, isto não era
exatamente um problema. Como diz Hayek, às vezes, para alcançar a
liberdade é necessário se acostumar à violência de estado. Estranha
concepção de liberdade esta, que não vê problemas em andar de mãos dadas
com a tortura, a censura, a ocultação de cadáveres, o assassinato, o
terrorismo de agentes públicos. O paraíso virá depois que trucidarmos
aqueles que não concordam com nossa “liberdade”. Em um impressionante
documentário sobre a experiência neoliberal no Chile, Chicago Boys
(2015, Carola Fuentes e Rafael Valdeavellano), vemos a formação do
grupo de economistas que implementaram o neoliberalismo em nosso
continente pela primeira vez. Em dado momento, quando os entrevistadores
perguntam ao futuro ministro da economia de Pinochet, o sr. Sergio de
Souza, sobre o que ele sentiu quando viu o Palacio La Moneda ser
bombardeado por aviões militares até a morte do então presidente
Allende, ele afirma: “uma alegria imensa. Eu sabia que era isto que
devia ser feito”.
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Esta é a verdadeira história do neoliberalismo.
Uma história de alegria com bombas, assassinato, golpes e aplausos à
ditadura. Neste sentido, não é um acaso se encontrarmos, neste mesmo
documentário, o mesmo sr. De Souza, quando falar de sua experiência no
que alguns gostavam de chamar de “milagre chileno”, dizer que não sabia
de nenhum crime contra a humanidade, que era apenas um técnico fazendo
seu trabalho. Esta é outra maneira de dizer: “Eu realmente não estava
importando. Eu sabia que meu real “trabalho” passava por fazer vista
grossa à morte dos descontentes”. Pois só através desta violência
ditatorial sua política econômica poderia ser implementada. Para massas
empobrecidas e em luta contra experiências seculares de desigualdade
extrema, toda a conversa a respeito de uma sociedade moldada na
liberdade de empreender, na livre concorrência, no mérito era apenas
mais um capítulo de um velho embuste. Cada época tem seu “emplastro Braz
Cubas”. Esse era apenas o mais novo na praça.
Ou seja, a
liberdade do mercado só pode ser implementada calando todos os que não
acreditam nela, todos os que contestam seus resultados e sua lógica.
Para isto, é necessário um estado forte e sem limites em sua sanha para
silenciar a sociedade da forma mais violenta. O que nos explica porque o
neoliberalismo é, na verdade, o triunfo do estado, e não sua redução ao
mínimo.
Que lembrem disso aqueles que ouviram o sr. Paulo Guedes falar em AI-5
nos últimos dias. Isso não foi uma bravata, mas a consequência
inelutável e necessária de sua política econômica. Como se costuma
dizer, quem quer as causas, quer as consequências. Quem apoia tal
política, apoia também as condições ditatoriais para sua implementação. O
neoliberalismo não é uma forma de liberdade, mas a expressão de um
regime autoritário disposto a utilizar todos os métodos para não ser
contestado. Ele não é o coroamento da liberdade, só uma forma mais
cínica de tirania. Por isto, é falaciosa a tentativa de alguns em vender
uma diferença entre “economia” e “política” no Governo Bolsonaro,
como se tudo estivesse bem na economia, enquanto o núcleo político do
Governo afunda em flertes ditatoriais. Não: esta é a única política
possível para tal economia.
Afinal, a “liberdade”
defendida pelos neoliberais tem duas faces, e não é possível ficar com
uma e apagar a segunda. Você precisa levar as duas para casa. Por um
lado, os amigos de Hayek e Friedman vendem a falácia de que quanto menos
estado na economia, maior liberdade. Quanto menos o estado pegar algo
de você, estabelecer obrigações, mais você terá como decidir por você
mesmo, fazer o que melhor lhe aprouver. Só que há um detalhe: isto vale
para você e para o banqueiro, para o caixa de supermercado e a executiva
de uma grande empresa. Você perde mais do que ganha porque perde seu
serviço público de saúde, sua universidade pública, sua aposentadoria e
ganha em troca uma desoneração de impostos que não dará para pagar nem
um terço do que se tornou agora serviço privado. Já a executiva e o
banqueiro só ganham porque não precisarão mais ter obrigação social
alguma com ninguém.
Só que a população não é tão estúpida
quando creem tais “economistas”. Por isto, eles sabem que necessitam de
um poder que exploda presidentes de oposição, que decrete AI-5, que
mate opositores até mesmo em situação “democrática”. E mais do que isto.
Eles sabem que necessitam de um poder disposto a intervir em todos os
poros da vida social a fim de impedir o desenvolvimento da contestação e
da crítica. Eles precisa de um estado agora muito mais forte contra
tudo o que lhe conteste, seja isto vindo da educação nacional, das artes
ou das organizações sociais.
Vejam a política cultural
do sr. Bolsonaro, sua nova pérola preciosa. Nunca vimos um nível tão
explícito de interferência, isto a ponto de seu secretário da cultura se
ver como ungido por uma missão de “renovar” a cultura nacional,
“combater” seus desvios, “recuperar” os valores do belo e do complexo
etc. No entanto, alguém deveria estranhar que um Governo que se diz
lutar pela “liberdade” transforme o estado no enunciador dos valores
culturais a serem realizados, do que é a verdade cultura nacional e qual
é a expressão real do povo. Agora, o povo é aquilo que o estado decide
como sendo o povo brasileiro, a cultura é aquilo que o estado decide o
que é a “cultura da maioria”. O belo é aquilo que o estado decide como
belo. Ou seja, temos agora mais estado, não menos.
No entanto, em uma democracia
real, o estado se abstém de decidir o que é “verdade”, o que é
“originário”, o que é “desvio”, o que é “belo” no campo das artes e da
cultura. Ele apenas facilita a circulação daquilo que tem dificuldade em
circular, seja porque o mercado não se interessa, seja porque as
classes hegemônicas não se interessam. E ele não faz isto em nome da
“verdade”, dos “valores morais do nosso povo” ou qualquer coisa que o
valha. Ele o faz em nome da multiplicidade. Por isto, ele não usa
dinheiro público para financiar posições religiosas (que não tem
dificuldade alguma em circular pois tem tudo o que necessitam nas mãos:
escolas, televisões, radios), não usa dinheiro público para louvar a si
mesmo ou para calar os que são descontentes com o próprio estado e com
sua própria política. Se alguns acham que isto não ocorria em governos
passados, eles deveriam então tentar realizar isto agora, ao invés de
construir falácias para justificar seus desejos de mando.
Mas
sabemos muito bem que isto nunca ocorrerá porque este tipo de
multiplicidade é o inverso de tudo o que o neoliberalismo procura impor.
Neoliberais não suportam uma sociedade com contestação. Eles atiram
quando o povo mostra seu descontentamento. Por isto, como diz Hayek,
preferem um ditador “liberal” (mesmo que isto seja apenas uma
contradição falaciosa) a uma democracia sem liberalismo ou seja a uma democracia que não acredita mais no embuste de uma liberdade apenas para os mais ricos.
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